Li um artigo publicado pelo Prof. Carlos Alberto Di Franco sobre os sucessivos e preocupantes desvios do Supremo Tribunal Federal. Ao mesmo tempo que acompanhava a argumentação de Di Franco sobre a arrogância e a falta de bom senso que parece ser predominante na instituição máxima da justiça brasileira, lembrava-me de O Senhor dos Anéis e, antes de continuar, gostaria de fazer um parêntese. Ei-lo aqui: (qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência fortuita. Este texto é um texto de ficção).
Como dizia, lembrei-me da obra de Tolkien e da força misteriosa e dominadora do Anel. O Anel, ao mesmo tempo que dá poder, subjuga a vontade das pessoas de tal maneira que não se trata apenas do fato de que os que usam o Anel se tornarem escravos e subservientes ao Senhor dos Anéis. O problema é que eles chegam inclusive a perderem sua identidade, sua essência, seu ser. Aqueles que utilizam o Anel para o seu próprio benefício acabam se tornando espectros do Anel.
No livro, há um momento em que Gandalf explica que o Anel é um poder maligno que corrompe os corações, porque esse anel foi feito por Sauron e “a única medida que Sauron conhece é o desejo de poder, e assim julga que são todos os corações”.
É claro que não conheço o coração dos ministros e nem quero conhecer, Deus me livre! Mas quando leio sobre esse desejo do poder que não é um desejo abstrato, e sim bem concreto, porque é um poder que dispõe, determina, consagra, estabelece, muda, tira de aqui e coloca acolá... É um poder que pode. Pode fazer e desfazer, construir e destruir, fazer o bem ou instaurar o mal, estabelecer a justiça ou a injustiça. Então, quando leio esse desejo de poder de que nos fala Tolkien, é difícil não pensar no poder do Judiciário, poder que foi dado aos ministros pelo povo, por meio da Constituição, e não por uma instância diferente, nem por algum Sauron perdido. O que será que eles pensam?, me pergunto. O que será que cada um deles tem nesse seu coração?
Acredito que a grandeza da obra de Tolkien está em não ter falado de um reino do bem e outro do mal. Sua grandeza está em insistir na ideia de que a única coisa que poderá salvar o mundo é se descobrirmos o valor da pena, da misericórdia e da generosidade. É claro que nos tempos que vivemos isso parece muito além de qualquer utopia, mas, por outro lado, não esqueçamos que a obra de Tolkien foi escrita precisamente durante os trágicos eventos da Segunda Guerra Mundial. É como se Tolkien, olhando para todos os destroços do mundo, reafirmasse que o único que pode trazer uma nova aurora é a consciência de que, nesta Terra Média em que vivemos, não há ninguém absolutamente bom nem ninguém absolutamente mau, e que, precisamente por isso, temos de ter pena, misericórdia e generosidade.
Não há ninguém (nem Gollum, nem Saruman, nem Sauron, nem mesmo os espectros do Anel) que não tenha mais jeito. Ninguém, absolutamente ninguém é ou será tão perverso e cruel que precise ser eliminado. A única certeza que poderá salvar o mundo, como também diria Dostoiévski, é que todos somos culpados, que todos tivemos nossa parte de bondade e de maldade neste mundo em que vivemos e que todos poderemos nos salvar juntos. Todos contribuímos, de uma ou outra forma, para tornar esse mundo um pouco melhor e também um pouco pior. Todos somos mesmo responsáveis pelo bem e pelo mal que há no mundo.
Tolkien nos fala de um mundo de seres criados, e não um mundo de ministros super-poderosos. Um mundo de seres com imperfeições, mesmo que sejam magos ou elfos ou hobbits ou árvores que andem e falem. Seres que não são nem a encarnação do bem nem a encarnação do mal. Seres que fazem coisas boas e coisas más, dependendo do caráter de cada um e da capacidade de cada um, porque nem todos são iguais nisto de resistir à força destrutiva, corruptora e dominante do Poder do Anel.
O lado certo da história
Infelizmente, na Terra Média nem todos conseguem enxergar as pequenas réstias de luz no meio da escuridão humana. Esses são aqueles que, como o próprio Saruman, olham para o mundo e o definem e o classificam: onde eles estão, seu lugar na História é o “do bem” e, por contraste, onde os outros estão é precisamente o “lugar do mal”.
É irônico tudo isso a que estamos assistindo. O primeiro a falar do eixo do bem e do eixo do mal, nos últimos tempos, foi George W. Bush, logo depois do atentado do 11 de Setembro. Naquele tempo, a fala de Bush era vista como a coisa mais insensata e mais ultradireita que poderia ser dita. E agora, olha só, agora esse lugar da fala do bem é ocupado por aqueles que eram do mal.
O lugar certo da história é onde tudo é bom e tudo é justiça e tudo é bondade. Do outro lado, só tem horror e trevas. A maldade pura. Esse é precisamente o diálogo entre os dois magos, Saruman e Gandalf. Saruman – que, para quem não sabe, já foi mago, mas acabou se estragando precisamente pelo Poder do Anel – pretende consertar a Terra Média. Ele sabe até que as medidas que pretende adotar não serão tão boas assim, tão éticas assim, tão puras assim. Mas compensarão porque, no fim, os motivos são nobres: consertar o mundo, fazer da Terra Média um lugar melhor, eliminar a erva daninha... O remédio será amargo e terá alguns efeitos colaterais perversos, mas, como ele mesmo diz, serão incidentais e “o que vem a ser isso diante dos altos propósitos que temos?!”.
Realmente é muita bondade. Tanta que a gente desconfia. Será mesmo que depois de consertar o mundo todo, deixando uma “pequena e inevitável” trilha de sangue e de truculências e de injustiças, Saruman e Sauron vão parar por aí? Depois que a Constituição for interpretada de todas as formas possíveis, “porque todas as formas de amor valem a pena”, como já disse o artista, será que vai ficar por isso mesmo?
Galadriel, a rainha dos elfos, tomou uma atitude diferente. Quando Frodo lhe ofereceu o Anel e lhe propôs que, sendo ela “do bem”, poderia usar o poder do Anel para colocar as coisas no lugar certo e fazer com que algumas pessoas pagassem pelo trabalho sujo que fizeram, Galadriel se recusa, não sem antes ter ficado um uma dúvida tensa e expectante. Por fim, ela diz de forma definitiva: “Sim, eu poderia fazer isso. Mas isso seria apenas o começo. Infelizmente, as coisas não parariam aí”.
É fácil criar a “necessidade de fazer alguma coisa”. É fácil encontrar argumentos que provem à opinião pública e a nós mesmos que é preciso, que é inevitável, por exemplo, que o acusado de um possível delito seja ao mesmo tempo o seu próprio juiz. E mais, voltando ao artigo de Di Franco, é fácil dizer que em outro caso isso já não pode porque aí é suspeição mesmo. Até porque num caso o juiz está do “lado certo da história” e no outro, não.
O poder é forte. O desejo de poder é mais forte ainda. E quem tem muito poder é muito poderoso. O único problema é que o poder é mais poderoso que o próprio homem que o detém. Quem tem o Anel do Poder acaba sendo possuído pelo Anel. E, então, não se trata mais de ter ou não poder, e sim de ser ou não possuído por ele. E, infelizmente, na maior parte dos casos, muitos acabam perdendo a sua própria essência e se tornam incapazes de resistir ao domínio maligno do Anel. Muitos acabam sendo apenas espectros, os espectros do Anel.