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Opinião

Como os intelectuais da USP inventaram o racismo negro no Brasil

Racismo à brasileira: ideias soviéticas importadas para se firmar como vertente da luta de classes.
Racismo à brasileira: ideias soviéticas importadas para se firmar como vertente da luta de classes. (Foto: Pixabay)

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O militante inventou que racismo é relação de poder, de maneira que só quem tem poder pode ser racista. Isso é uma evidente falsidade, já que, segundo esse critério, Adolf Hitler não era racista antes de 1933, isto é, antes de virar chanceler. O presidiário que escrevia Mein Kampf não poderia ser um racista, senão uma “pessoa em privação de liberdade”, uma “vítima da sociedade”, que escrevia um livro contra a raça dos banqueiros. Um livro. Livro é coisa de intelectual, gente fina e elegante. Ler livro não dá redução da pena?

Felizmente, o senso comum do brasileiro não se deixa iludir. Racismo, entre nós, é entendido como o ato de julgar das qualidades intelectuais ou morais de alguém em função de características físicas ou étnicas. Trocando em miúdos, é julgar a alma de alguém pelas coisas irrelevantes do corpo. Ninguém escolhe ser judeu, nem negro, nem branco, nem mulato; é tudo acidente de nascença. É abominável considerar alguém melhor ou pior por causa de um acidente de nascença. É isso que entendemos usualmente como racismo.

Por isso, é evidente que o racismo negro é possível. Basta que alguém se julgue melhor do que os outros por ser negro, ou que trate alguém como escória pelo mero fato de não ser negro. Com o progressismo, muita gente pensa – mas pouca gente tem coragem de falar – que essa forma de racismo cresce e cresce.

Mas de onde surgiu ela?

Negros admiradores de Hitler

Ao contrário do que pensa o senso comum brasileiro, o racismo foi uma corrente ideológica reivindicada por seus adeptos. As pessoas diziam “sou racista”. A palavra “racista” não surgiu como xingamento. Criou-se em alguns países o “Dia da Raça”, comemorado até hoje na Argentina (embora rebatizado por Cristina Kirchner como “Dia do Respeito à Diversidade Cultural”). O verdadeiro racista não crê que tenhamos apenas corpos, à maneira cristã. Crê que os corpos têm algo a ver com nossa alma, como já expliquei aqui.

O racismo floresceu no século XX, ao mesmo tempo que o fascismo e o comunismo. O fascismo não necessariamente era racista. Em países de cultura ibérica, tendia a associar-se a um catolicismo militante e a usá-lo como traço de união, em vez da raça. Entre nós houve o integralismo. O movimento brasileiro, seguindo sua cultura ibérica, foi majoritariamente de natureza católica. Plínio Salgado era o nome mais importante de um triunvirato composto também por Miguel Reale e Gustavo Dodt Barroso. Plínio e Reale eram católicos, mas Gustavo Barroso era um entusiasta do arianismo.

No seio da Ação Integralista Brasileira (AIB) havia a Frente Negra Brasileira (FNB), um típico movimento fascista criado em São Paulo que tinha milícia, empastelava jornais e exaltava a raça. Tinham eles próprios um jornal chamado A Voz da Raça, que afirmava coisas como a seguinte: “Hitler, na Alemanha, anda fazendo uma porção de coisas profundas. Entre elas a defesa da raça alemã. […] Que nos importa que Hitler não queira, na sua terra, o sangue negro? Isso mostra unicamente que a Alemanha Nova se orgulha de sua raça. Nós também, brasileiros, temos raça. Não queremos saber de arianos. Queremos o brasileiro negro e mestiço que nunca traiu nem trairá a nação!”

Tiro esta citação de Os movimentos negros e a utopia brasileira, de Antonio Risério, que a seu turno usa a pesquisa de Roger Bastide – ele próprio um nome importante dessa história, um sociólogo francês que participou da criação da sociologia na USP.

Um nome que integrou tanto a Frente Negra Brasileira quanto a Ação Integralista Brasileira é Abdias do Nascimento, de São Paulo. Guardem este nome.

Freyre contra o Eixo

Isso foi tudo antes do golpe do Estado Novo (1937 – 1945), quando Getúlio monopolizou todos os poderes da república e pôs fim aos partidos e associações políticas. Perseguiu sua antiga apoiadora AIB e o PCB de Prestes. Plínio foi para o autoexílio em Portugal, Gustavo Barroso, o arianista, foi para o Itamaraty, onde ficou perseguindo judeu europeu em pleno Holocausto. Getúlio fez ainda de outro arianista – Oliveira Vianna – uma espécie de ideólogo oficial do regime. Oliveira Vianna inventou a tese de que o Brasil é um país caracterizado pela monocultura de latifúndio e essa tese foi incorporada ao marxismo local por Caio Prado Jr. (que Jorge Caldeira chega a acusar de plágio – de maneira convincente, diga-se). Oliveira Vianna desdenhava dos portugueses por serem mestiços e explicava os seus êxitos a partir dos louros do norte, da diminuta área de Portugal que não pertenceu ao Califado Omíada.

No mesmo ano da ascensão de Hitler, o sociólogo Gilberto Freyre lançava seu primeiro livro, o célebre Casa Grande & Senzala. Tornou-se livro proibido por Getúlio, incendiado em praça pública. Nele, Freyre nadava contra a maré racista da academia e dizia que o Brasil não estava fadado ao fracasso por ser mestiço. Ao contrário, ele celebrava a mestiçagem brasileira e elogiava a conduta sincrética portuguesa, avessa à noção de apartheid. Freyre não era uma andorinha solitária: estudou em Columbia e era um discípulo de Franz Boas, o pai da antropologia cultural. (A antropologia que vemos hoje no Brasil descende de Levy Strauss, antropólogo estruturalista aproveitado pelo marxismo e espécie de patrono da antropologia da USP).

Como Freyre fazia sucesso celebrando o Brasil mundo afora, e isso enquanto vigiam nos Estados Unidos as leis de segregação racial, a UNESCO contratou cientistas sociais instalados em algumas cidades do Brasil para explicar como as “relações raciais” se davam aqui. (Uso aspas porque aqui não temos relações entre “raças” ou entre grupos unidos pela raça. Temos relações entre indivíduos, que são de cores diferentes). Em São Paulo, a redação ficou por conta de Roger Bastide e do jovem uspiano Florestan Fernandes, que escreveram Brancos e negros em São Paulo no ano de 1955. O livro inaugurava a tese de que Freyre é uma farsa.

O trabalho premiado foi o de Thales de Azevedo, um médico da Universidade da Bahia que se convertera à antropologia cultural. Escrevera para a UNESCO Les élites de couleur dans une ville bresilienne (1953), publicado depois em português como As elites de cor numa cidade brasileira. Tratava-se de um estudo de ascensão social de negros e mulatos em Salvador, que descrevia em minúcias todo um balé social que conciliava as contradições entre o preconceito contra a cor escura e a aceitação de escuros na elite. O livro descrevia inclusive o fiasco que foi uma parada organizada por um militante do movimento negro recém-chegado de São Paulo: ele pôs uma porção de mulatos em andrajos para desfilar na rua, discursou sobre a miséria dos mulatos e enfureceu a elite mulata local, que detestava ver a sua cor representada daquele jeito. Depois o militante teve que voltar para São Paulo, mesmo sendo baiano.

Thales de Azevedo é um escritor muito prazeroso de ler, e é uma pena que esse livro esteja esgotado. Ele antecipava inclusive um problema que os tribunais raciais trouxeram: entregava a baianos fotos de membros de clubes e mandava classificar os fotografados como branco, negro, mulato ou moreno. A classificação nunca era igual.Mais uma palavra útil sobre Thales de Azevedo: ele escreveu uma novela baseada em sua experiência como médico no interior, chamada Foi Deus não acontecer nada!, hoje abundante em sebos virtuais. Nela, víamos o típico médico do racismo científico, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, desprezando todos os doentes de tuberculose. Bastava dizer que a tuberculose era um mal terminal e natural aos mestiços, que são todos degenerados. Era um médico assim que o jovem Thales substituía. E eram explicações dessa ordem, para a miséria brasileira, que o antirracista Gilberto Freyre rechaçava em Casa Grande & Senzala, lançado no ano de 1933, quando Hitler subia ao poder.

Florestan importa o racismo soviético

Florestan Fernandes (1920-1999) cresceu em lar alemão de elite, na condição de filho da empregada solteira. Tornou-se garçom e, nessa função, conheceu estudantes da USP que o achavam muito inteligente e lhe deram todo o apoio para ingressar numa carreira universitária. Tornou-se sociólogo e socialista. Pesquisou tupinambás, virou literatura obrigatória no tema. Em 1960, criou com outros intelectuais paulistas a União Cultural Brasil-URSS, existente até hoje, embora com o nome de União Cultural pela Amizade dos Povos. Mais tarde, ele seria um dos fundadores do PT e deputado constituinte eleito por São Paulo.

Retomando a temática racial, Fernandes publica, em 1964, A integração do negro na sociedade de classes. Esse é o livro responsável por difundir, no Brasil, a ideia de que a luta de classes é indissociável da luta de raças, porque os negros são a mesma coisa que os proletários e os brancos são a mesma coisa que os donos dos meios de produção.

A partir daí, as linhas entre comunismo e nazismo começam a se borrar. Afinal, o discurso oficial do nazismo era que os arianos eram uma maioria oprimida por judeus parasitários, os donos do capital e dos meios de produção. Usar a expressão “luta de raças” daria muito na vista e chocaria a moralidade ocidental do pós-guerra, então os soviéticos enganavam os trouxas dizendo que a “luta antirracista” era uma pré-condição para uma sociedade sem classes. Hoje os progressistas fazem a mesma coisa, e com outros traços humanos também: guerra dos sexos, homo contra hétero, cis contra trans, gordos contra magros, e sabe-se lá o quê. Nem falam mais contra rico, se o rico for “do bem”.

Stalin tinha um plano o Brasil. Quem conta é Oswaldo Peralva, um ex-comunista que foi à União Soviética, desiludiu-se com o que viu, e escreveu o livro O Retrato, lastimavelmente esgotado. Peralva criticava como um absoluto inepto um tal Sivolóbov, burocrata responsável pela América Latina e antissemita convicto. Conta Peralva: “A um escritor brasileiro em visita a Moscou ele informou que no Brasil — ‘cuando tomemos el poder’ — teria que ser formada a República Autônoma dos Negros. Explicou-lhe o escritor que o número de negros puros em nosso país era pequeníssimo, que nossos descobridores e colonizadores portugueses, destituídos de preconceito racial, se misturaram com a população negra, produzindo magníficas gerações mulatas. Mas não adiantou a explicação, ele não podia compreendê-la, pois esse fenômeno não tinha sido considerado nas obras do camarada Stalin sobre a questão nacional e colonial...”

(A propósito: existiu na URSS uma República Autônoma Hebraica, criada por Lenin, lá perto do Japão. Sivolóbov reclamava justo da dificuldade de deixá-los lá e considerava os judeus sem solução).

Assim, consoante o espírito soviético, Florestan difundiu entre nós que era necessária uma guerra racial, que negros têm a obrigação de ser anticapitalistas e que – infâmia das infâmias – o Brasil é um país ainda pior do que os Estados Unidos da segregação, porque o nosso racismo seria velado, ao passo que os norte-americanos são ao menos honestos quanto ao próprio racismo.

Mas tinha um problema: Florestan era branco. Ungiu então como “o” intelectual negro um agitador integralista e ator fracassado, chamado Abdias do Nascimento. Que fica para a próxima.

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