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A cada três ou quatro dias entre 2020 e 2021, um policial militar tirou a própria vida no Brasil. Segundo dados do 16º Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a quantidade de suicídios entre agentes da polícia aumentou cerca de 55% neste período, resultando em um número superior ao de policiais mortos em confronto.
À esquerda e à direita, o cenário preocupante vivenciado pelos agentes de segurança pública no país levanta o debate acerca das condições de trabalho às quais estes profissionais estão submetidos, bem como seu acesso a programas de cuidado com a saúde mental: na última semana, o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) surpreendeu ao propor um projeto de lei que inclui na Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio a previsão de políticas e ações voltadas a agentes de segurança pública, incluindo policiais civis, agentes socioeducativos e guardas municipais.
Ocorre que a própria natureza da atividade policial exige que as condições psicológicas destes profissionais sejam tratadas como prioridade desde o recrutamento. “Os protocolos de cuidado com a saúde mental dos policiais precisam acontecer em vários níveis, e o primeiro deles é a seleção. Em vários países do mundo, o processo é desenhado para identificar problemas de comportamento, falta de autocontrole e hábitos perniciosos como o consumo de álcool e drogas – o que não acontece no Brasil”, explica Leandro Piquet, coordenador da Escola de Segurança Multidimensional (IRI/USP).
“Podemos citar, como exemplo, o caso de Honduras que, com apoio dos Estados Unidos e da Organização dos Estados Americanos (OEA), passou por um processo de depuração e reorganização da polícia que foi muito bem-sucedido. Acabaram com as exigências intelectuais para a seleção de agentes e estabeleceram exigências de aptidão psicológica, através da aplicação de testes parametrizados que identificam traços como integridade, coragem e respeito à hierarquia. Parece uma coisa pontual, mas é assim que você elimina de partida o cara que é inteligente, esperto, mas descontrolado, insubordinado ou corrupto”, explica o especialista.
O antropólogo Paulo Storani, ex-instrutor do Bope (Batalhão de Operações Especiais) do Rio de Janeiro e consultor do filme ‘Tropa de Elite’, afirma que a polícia brasileira precisou flexibilizar o perfil psicológico, em decorrência de constantes demandas judiciais. “Todo traço ou característica de personalidade que você possa determinar por testes projetivos psicológicos e em que alguém fica contraindicado no processo seletivo para ser policial militar, recorre-se ao Ministério Público e normalmente se ganha. Isso acaba quase que impedindo que a polícia estabeleça um perfil psicológico, um recorte desse universo que é muito difícil, porque a sociedade em geral não está preparada para enfrentar circunstâncias ambientais de grande estresse”, critica.
O passo seguinte a uma boa seleção é o fornecimento de um treinamento coerente com as habilidades socioemocionais que se deseja fomentar nas forças policiais, somada à repetição contínua dos testes e à criação de sistemas de apoio aos policiais submetidos a situações de estresse. “Em São Paulo, entre as décadas de 1990 e 2000, havia um programa que previa que sempre que um policial disparasse a arma, era obrigado a se apresentar ao serviço de acompanhamento psicológico e ficar um tempo fora da rua. Eles não gostavam, mas era uma forma importante de monitorar e controlar o estresse, ajudava o cara a ‘desacelerar’. O estresse do confronto é muito grande e, aos poucos, vai ‘desativando’ os gatilhos de autocontrole. O cara que acabou de subir o morro, trocou tiro, precisa parar, ter a pressão medida, ter uma conversa”, reforça Piquet.
Nesse sentido, Storani pondera que a medida de afastar policiais após situações traumáticas se mostrou inviável com o tempo. “O que aconteceu é que você tinha quase que um batalhão inteiro afastado do serviço por terapia, e os batalhões sem condição de suprir a demanda. Os efetivos policiais hoje são muito abaixo da demanda de serviços policiais, então você acaba sobrecarregando esse policial”, afirma.
Diante de um cenário bastante diverso do europeu, o antropólogo defende como saída investir em treinamentos de tolerância ao estresse, como os dos criticados cursos de operações especiais. “Precisaria de praticamente um batalhão de psicólogos para atender a demanda da Polícia Militar. Quem está preparado para uma situação de guerra permanente como no Rio de Janeiro? Não há como desacelerar processos quando a violência aumenta. Treinamento não existe melhor do que submeter o capacitando a situações de estresse, porque o corpo tem capacidade de desenvolver tolerância, e os que não têm, pedem para sair. É um treinamento voluntário. Então, é preciso criar uma margem de perfil policial que se possa selecionar e que possa ser preparado para enfrentar a realidade", diz.
Autor do livro “Modelos de Polícia”, o tenente-coronel Sérgio Carrera de Albuquerque Melo Neto, da PM do Distrito Federal, atuou por quatro anos e meio na ONU e começou a observar as polícias ao redor do mundo, de onde surgiu o estudo comparado, por hobby. “A carreira é uma das cinco mais estressantes do mundo, e hoje ainda há uma série de fatores que contribuem com isso, como ansiedade, estresse, burnout, questões pessoais. No Brasil, cada estado tem sua autonomia para estruturar a grade curricular dos treinamentos e a legislação das instituições policiais. Algumas polícias têm psiquiatras, psicólogos, mas a quantidade é pequena. Também há convênios com clínicas. Em alguns estados, existem portarias que dizem que o policial deve ser afastado [após uma situação em que precisa atirar], pelo bem dele, alguns dão bom suporte para o efetivo, já outros não têm suporte pela questão orçamentária. É um ciclo em que se fica impossibilitado, muitas vezes, de prover o ideal”, explica.
Experiências internacionais
Um dos destaques em suporte ao policial, segundo o tenente-coronel Carrera, é o Canadá. “Só de sacar a arma do coldre ele já tem afastamento, se houver tiro, ele vai passar por sessões de terapia e, quando estiver ok, faz o treinamento de tiro novamente para ver se está apto”, explica. Em países como Noruega e Suécia, o porte de armas pela polícia não faz parte da cultura (evidentemente inviável para a conflagrada situação brasileira), ficando restrito apenas a policiais de operações especiais. “Em todos esses países, também há suporte para a família do policial, em situações traumáticas”.
Na Inglaterra, o Código de Prática sobre Policiamento Armado e Uso Policial de Armas Menos Letais, publicado em 2020, determina que “O modelo britânico de 'policiamento por consentimento' baseia-se no princípio de que o poder da polícia provém do consentimento comum do público, em oposição ao poder do Estado. O serviço de polícia na Inglaterra e no País de Gales tem estado desarmado há muito tempo. O uso de armas de fogo pela polícia deve ser sempre o último recurso, considerado apenas quando houver sério risco para a segurança pública ou policial. No entanto, quando surgir uma necessidade operacional, oficiais de armas autorizados devem estar disponíveis para serem implantados”.
Por isso, “armas de fogo e munições especializadas devem ser emitidas apenas para oficiais avaliados como competentes para usá-los de acordo com os procedimentos de treinamento e avaliação”, dispõe o documento. Além disso, também há oficiais treinados especificamente para aconselhamento tático sobre uso de armas e outros para comandar incidentes. Estes últimos, em caso de ocorrências com mortos ou feridos graves, são responsáveis por garantir o bem-estar físico e emocional dos funcionários envolvidos, por considerar a presença de médicos e conselheiros de saúde e garantir o contato dos oficiais com a família.
Quando um policial britânico mata ou fere gravemente alguém por disparo de arma de fogo, o primeiro procedimento é uma entrevista por um gerente pós-incidente e, em seguida, ocorre o encaminhamento do oficial para suporte de bem-estar no longo prazo. Nessas situações, a Convenção Europeia de Direitos Humanos determina que o Estado realize uma investigação oficial, para checar se a força utilizada foi justificada, assegurando a responsabilização de envolvidos em caso de abusos.
Os protocolos operacionais também incluem acordos de longo prazo para o bem-estar dos oficiais envolvidos e de suas famílias, quando necessário, além do retorno dos policiais, se apropriado, para as funções operacionais.
Estados Unidos
Para integrar as forças policiais dos Estados Unidos, por exemplo, todos os candidatos são submetidos a testes psicológicos que consideram desde o histórico de uso de drogas e capacidade de controle de impulsos e gerenciamento de estresse a confiabilidade, integridade e coragem, além de habilidade para trabalhar sob supervisão.
Além disso, em janeiro de 2018, foi sancionada a Lei de Saúde Mental e Bem-Estar das Forças Policiais, reconhecendo que as instituições encarregadas de guardar a aplicação da lei precisam de apoio contínuo para garantir a saúde mental e o bem-estar de seus funcionários. "Uma boa saúde mental e psicológica é tão essencial quanto uma boa saúde física para que os policiais sejam eficazes em manter nosso país e nossas comunidades a salvo do crime e da violência", descreve o relatório da Community Oriented Policing Services [N/E: trata-se da sigla que deu origem à expressão "cops", referente a guardas municipais, xerifes e outros cargos policiais no país], ligada ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ).
O ato exige que o DOJ apresente um relatório ao Congresso sobre práticas e serviços de saúde mental oferecidos pelo Departamento de Assuntos de Defesa e Veteranos que possam ser adotados por agências federais, estaduais ou locais para promover o preparo psicológico dos policiais.
O último relatório disponível no portal apresenta um estudo de caso da experiência do Departamento de Polícia de Dallas (DPD), o 9ª maior do país. Após o ataque de 7 de julho de 2016, perpetrado por um policial da reserva ao final de um protesto do Black Lives Matter, que resultou na morte de cinco policiais e dois civis, além de nove policiais feridos, houve grande mobilização para que os agentes da lei tivessem mais acesso a programas de saúde mental.
O DPD então fez parcerias com o Centro de Saúde do Cérebro da Universidade do Texas, considerado uma liderança importante no desenvolvimento de programas de saúde mental. Em 2018, um estudo com 101 participantes que passaram pelos treinamentos desenvolvidos pela universidade mostrou uma redução significativa nos relatos de pensamentos intrusivos, estresse e consumo excessivo de álcool.
Alemanha
Com leis restritivas ao uso privado de armas, tiroteios policiais são ocorrências pouco comuns na Alemanha, uma vez que os suspeitos são menos propensos a portarem armas de fogo. A legislação policial tem seus próprios regulamentos em cada um dos 16 estados do país, sendo que na maioria deles há regras restritivas semelhantes ao uso de armas, com permissão para disparar apenas quando todas as medidas tiverem se esgotado - o que inclui atirar preventivamente contra um objeto para alertar o suspeito.
O treinamento para a polícia alemã dura cerca de três anos e, além das tradicionais aulas de tiro ao alvo, inclui capacitações sobre situações estressantes e exercícios de dramatização, que levam o recruta a aprender a controlar ocorrências com calma, por meio do diálogo, e a não agir imediatamente. A ideia é que o policial evoque esse padrão em uma emergência futura. “Se a falta de visão periférica se instala quando estamos em uma situação estressante, recorremos a táticas comprovadas e testadas, todo mundo faz isso”, explica Gerd Enkling, chefe da polícia no estado da Baviera.
"Não atire", inclusive, nomeia um treinamento de armas da polícia na Renânia do Norte-Vestfália, estado mais populoso da Alemanha. Além do treinamento para decidir quando o uso da arma é necessário, o policial alemão recebe ajuda para processar o pós-evento. Em boa parte dos estados, há serviços de saúde mental 24 horas por dia e o profissional precisa passar por um aconselhamento após disparar a arma, mesmo que não haja mortos ou feridos. O procedimento logo após uma ocorrência é o envio de uma equipe treinada, composta por policiais experientes, psicólogos e conselheiros (católicos e evangélicos) para atender o policial.
Embora seja conhecida como uma das polícias que menos atira no mundo, o número de disparos contra suspeitos tem crescido na Alemanha nos últimos anos. Dados policiais coletados pelo tablóide Bild mostram 14 mortos após serem baleados pela polícia, em 2019, quase o dobro do registrado cinco anos antes.
Estima-se que três quartos dos mortos pela polícia nos últimos anos eram doentes mentais, o que demandaria uma atualização nos treinamentos psicológicos para policiais mais antigos. "Muitos policiais não estão cientes de que estão lidando com doentes mentais", afirma Thomas Feltes, criminologista da Universidade Ruhr Bochum. "Precisamos que eles sejam treinados de forma mais sólida."
Segundo o site de notícias alemão Tagesschau, todos os estados informaram haver unidades para lidar com doenças mentais no plano de formação da polícia, mas admitiram que não há treinamento adicional obrigatório para policiais que já estão na ativa.
A psicóloga clínica Birgitta Sticher, que trabalha no treinamento de policiais há mais de duas décadas, afirma que a gama de serviços psicológicos na polícia melhorou significativamente nos últimos anos, mas reforça que o processo precisa ser contínuo. “Como terapeuta, tenho que provar todos os anos que estou continuando minha educação - isso também seria importante para os inspetores que estão expostos a um estresse mental tão grande. Especialmente na área de homicídios ou investigações de casos de abuso, precisamos de uma proporção significativamente maior de supervisão e aprendizagem ao longo da vida. Você não pode cobrir tudo completamente no treinamento - nem mesmo a preparação para o estresse mental que esse trabalho envolve."
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