Cerca de 4,3 mil projetos de lei foram apresentados na Câmara dos Deputados em 2021. A maior parte nem sequer será votada .| Foto: Agência Câmara
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O governo Bolsonaro chega ao último ano de mandato com baixo desempenho na aprovação de pautas que se identificam de forma mais clara com o público conservador. Essa constatação, naturalmente, frustra seu eleitorado mais fiel, mas historicamente não chega a ser inédita. Apesar dos 13 anos que passou no poder, o Partido dos Trabalhadores (PT) também não conseguiu avançar muito nas matérias com teor ideológico mais evidente, ao menos naquilo que dependia de aprovação do Congresso Nacional – felizmente não houve legalização do aborto e da maconha, por exemplo.

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Mesmo assim, sem evidências de que serão bem-sucedidos na tramitação, projetos de lei feitos sob medida para satisfazer os anseios da militância, seja de esquerda ou de direita, são constantemente apresentados por deputados, senadores e pelo próprio Poder Executivo. Se as chances de se tornarem lei são mínimas, o que os motiva a investir nesse tipo de proposta?

Analistas apontam que parte da resposta passa pela principal força motivadora das ações de qualquer político eleito: a expectativa de voto. Quando há sinais de que determinado tema está despertando interesse em fatia considerável da população, políticos tentam se vincular a esse tema de algum modo. Apresentar um projeto de lei relacionado ao assunto é um desses meios de vinculação.

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Assim, mesmo que as chances da proposta se tornar lei sejam pequenas, o ato de protocolar um projeto sobre o tema em questão favorece o autor que pode dizer ao seu público-alvo que está fazendo algo a respeito. “Ao agir dessa forma, o parlamentar quer passar uma mensagem que mantém sua posição e fidelidade ao eleitor”, explica o doutor em Direito Eduardo Faria Silva, professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo. Ele lembra que, em regra, a atuação parlamentar é direcionada para sua base eleitoral, tanto presente como futura. É por isso que aprovar tudo o que propõe acaba não sendo, necessariamente, o objetivo de um parlamentar quando protocola uma proposta. Além de serem tentativas de alterar a legislação, os projetos de lei também atendem a propósitos políticos.

Homeschooling 

O aumento do interesse pelo tema do homeschooling serve de exemplo para ilustrar essa dinâmica. Em 2019, o PL 2401/2019, que propõe a regulamentação da modalidade e é de autoria do Poder Executivo, foi a proposta de educação mais acompanhada no site da Câmara entre todas as 24.101 que estavam em tramitação até aquele momento. O projeto não teve avanços significativos desde então, mas, ciente do interesse de seu eleitorado, o governo o anunciou como prioridade tanto no início do mandato, em 2019, quanto na mudança da presidência da Câmara, em 2021. Não por acaso, a Frente Parlamentar em Defesa do Homeschooling, criada também em 2019, atingiu o impressionante número de 233 signatários, superando, por exemplo, o tamanho da Frente Parlamentar Evangélica, que tem 196. O volume de projetos de lei que tratam sobre homeschooling também cresceu e hoje são oito só na Câmara, sendo que a metade deles foi protocolado nos últimos três anos.

Convém destacar que não são apenas os entusiastas que tentam se vincular a um tema em ascensão. Ganhar destaque como antagonista também rende capital político ao parlamentar. Essa é a razão pela qual entre os projetos de lei sobre homeschooling citados há um que não regulamenta a prática, mas a proíbe de forma explícita. A autora é a deputada petista de primeiro mandato Natália Bonavides (RN), proveniente da militância estudantil de esquerda e ex-advogada do MST. Na justificativa da proposta, a parlamentar acusa o homeschooling de “anular” o direito à educação. Embora seja altamente improvável que seu texto se torne lei nesta legislatura, a proposta garantiu à deputada a simpatia dos opositores mais virulentos da educação domiciliar.

O mesmo fenômeno é observável com quaisquer outras pautas com potencial para engajar militância, garantindo visibilidade ao parlamentar nos acalorados debates em redes sociais, grupos de WhatsApp ou mesmo em numerosas manifestações de rua, como ocorreu nos meses de agosto e setembro de 2021, quando o voto impresso se tornou uma das principais bandeiras políticas para os atos do Dia da Independência. Ainda que os parlamentares diretamente envolvidos nas articulações daquela pauta tivessem ciência de que a mesma seria derrotada em votação, o engajamento social provocado lhes garantiu considerável visibilidade. O voto impresso perdeu, mas não é possível afirmar o mesmo de seus defensores mais notórios. Politicamente, ganharam pontos junto ao seu eleitorado.

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Passado o ápice das mobilizações em torno do tema, o interesse objetivo dos principais entusiastas do voto impresso pela segurança das urnas eletrônicas acabou sendo colocado em dúvida, meses depois, no final de novembro, quando o Tribunal Superior Eleitoral fez testes públicos com os equipamentos, deixando-os à disposição de 26 hackers, durante seis dias, para que encontrassem brechas que permitissem adulteração do resultado. Nenhum dos deputados que se engajaram publicamente pelo tema compareceu para acompanhar os testes, dando aos críticos a oportunidade de afirmar que tudo não passou de produção de narrativa.

Por que pautas “ideológicas” não avançam? 

Pesquisadores do campo da ciência política apontam que um dos fatores mais relevantes para explicar por que projetos de lei com forte teor ideológico enfrentam dificuldade para avançar, mesmo quando são publicamente apoiadas pelo governo, é o presidencialismo de coalizão. Consolidado no Brasil desde a redemocratização, ele se origina do próprio sistema eleitoral brasileiro que torna bastante remota a possibilidade de um único partido alcançar a maioria das cadeiras do Congresso Nacional.

Um dos trabalhos acadêmicos mais citados por pesquisadores desse campo é Presidencialismo de Coalização: o dilema institucional brasileiro, do sociólogo e pós-doutor em Ciências Sociais Sergio Abranches, originalmente publicado em 1988. Nele, o autor define esse sistema como “caracterizado pela instabilidade”, explicando que sua sustentação se baseia, entre outros fatores, “na disposição de respeitar estritamente os pontos ideológicos ou programáticos considerados inegociáveis, os quais nem sempre são explícita e coerentemente fixados na fase de formação da coalizão”.

Após a eleição, dada a multiplicidade de partidos com representantes eleitos, o governo ou qualquer parlamentar que pretenda ver seu projeto aprovado é praticamente obrigado a buscar a cooperação de diferentes siglas que lhe permitam formar maioria. Nesse sistema, historicamente, vem se provando muito difícil a construção de coalizações ideologicamente puras, formadas exclusivamente por siglas de direita ou de esquerda, o que acaba levando o poder decisório para os partidos de centro, sem o qual nenhum dos extremos é capaz de formar maioria.

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Conforme frase dita em mais de uma ocasião pelo atual líder do governo na Câmara, o deputado federal Ricardo Barros, “os extremos não governam”. Ele se referia justamente ao fato de que, no Brasil, ainda que um presidente eleito se identifique de forma mais clara com algum lado político, ele vai depender do apoio dos partidos de centro. "Se o governo é de direita, então é centro-direita; se o governo é de esquerda, então é centro-esquerda”, resumiu o parlamentar em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, concedida em 2020, logo após assumir a posição de líder. Embora hoje trabalhe pelo governo Bolsonaro, Barros já foi ministro de Temer e vice-líder dos governos Dilma e Lula.

Assim, devido às coalizões, projetos com forte teor ideológico tendem a passar por um processo de moderação, gerado da necessidade de encontrar o consenso possível entre a ideia original e aquilo que é aceitável pelos partidos de centro. É durante esse processo que sacrifícios se tornam necessários e algumas pautas de difícil construção de consenso, mas caras ao eleitor ideologicamente mais exigente, acabam sendo abandonadas.

No entanto, se por um lado o presidencialismo de coalizão tende a proteger o país de extremismos, a permanente dependência do governo – seja ele qual for - de forças políticas mais fisiológicas do que ideológicas, também é apontada como responsável por travar muitos avanços dos quais o país precisa, como reformas estruturais, privatizações e mais rigor no combate à corrupção. Além disso, o suposto vácuo deixado pelo Congresso em temas sobre os quais não se chega a um consenso, tem sido usado como justificativa para a prática do ativismo judicial, com invasões de competência do Poder Judiciário sobre o Poder Legislativo, como no caso da criminalização da homofobia, que foi equiparada ao crime de racismo pelo Supremo Tribunal Federal, e a autorização para o aborto de anencéfalos.

Volume de projetos de lei na Câmara é enorme 

Por ser, em regra, a casa iniciadora do processo legislativo e abrigar 513 parlamentares, a Câmara dos Deputados possui uma produção de propostas bem superior a do Senado. Só em 2021, foram apresentadas 4.305 propostas legislativas, incluindo projetos de lei, propostas de emenda constitucional, entre outros tipos, mas o número de matérias aprovadas em plenário foi de apenas 246, grande parte delas criadas em anos anteriores. Outras 114 propostas tiveram tramitação conclusiva na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), portanto não precisaram de votação em plenário.

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Quanto às rejeições, foram 89. Esse, aliás, tende a ser um resultado menos comum, pois ocorre somente quando há verdadeira indefinição sobre o resultado da votação ou quando as forças políticas mais influentes na casa desejam passar uma mensagem ao governo. Normalmente, projetos de lei que serão evidentemente rejeitados tendem a nem sequer entrar em pauta.