Agatha Félix foi vítima de bala perdida durante ação da polícia militar no Complexo do Alemão| Foto: Reprodução
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Existe um exercício de imaginação muito famoso em filosofia que desafia a moral consequencialista: Cinco crianças brincam na linha do trem e, distraídas, não percebem que ele se aproxima. Mas antes do trem chegar existe uma bifurcação e, por sorte, você está no local. Basta puxar uma alavanca para desviar o trem para outra via. Eis que você percebe que na outra linha existe outra criança, solitária. O que fazer?

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Normalmente a maioria das pessoas faz o cálculo que é preferível matar um e salvar muitos. Utilitariamente, é o certo a ser feito.

Agora vamos fazer outro exercício de imaginação: você é um médico e cinco crianças que estão sob seu cuidado precisam de diferentes órgãos para sobreviver. Mas há uma criança saudável brincando do lado de fora do hospital. Basta sequestrá-la para roubar os órgãos e transferi-los para as crianças doentes. Da mesma forma que no dilema do trem, uma morte em troca de cinco vidas. No entanto a decisão não parece tão clara quanto no exemplo anterior.

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A morte da menina Ágatha Felix, de oito anos, baleada no Complexo do Alemão, na sexta-feira (20), expôs o lado consequencialista de muita gente que se proclama conservadora. Argumentos como o de que a morte seria um “efeito colateral” no combate ao crime organizado pipocaram. Na luta contra os bandidos, valeria a pena perder uma vida inocente se os bandidos fossem colocados fora de circulação e no futuro mais pessoas sejam salvas.

O consequencialismo é uma visão de mundo que privilegia os resultados: uma decisão seria mais correta moralmente ao produzir melhores consequências. Os problemas com esse tipo de pensamento são evidentes. O hedonismo é uma forma de consequencialismo, em que o prazer é a medida final das ações. E no utilitarismo, a moralidade é medida pelos resultados da ação, e não pela ação em si. Assim, matar uma criança inocente seria aceitável se as consequências fossem positivas.

Um conservador precisa ver a questão pela ética do filósofo Emanuel Kant, segundo a qual as ações têm um valor moral em si mesmas, e não pelo resultado que elas produzem. Matar uma criança inocente é errado em qualquer circunstância, não importa se por algum acaso tal ação tenha consequências positivas.

“O fim pode justificar os meios enquanto houver algo que justifique o fim.”, já afirmou Trotski, um assassino sem escrúpulos. O sistema que ele defendia produziu milhões de mortos. Nem os consequencialistas vão contestar essa: a doutrina utilitarista de Trotski nunca produziu bons resultados.

Além do dever

Enquanto os resultados da perícia das armas dos policiais envolvidos na suposta troca de tiros com criminosos não ficar pronta, é irresponsável apontar culpados. Mas os policiais envolvidos em situações do tipo precisam lembrar que existem ações que vão além do dever. Existem as obrigações morais básicas que seguimos no dia a dia (ou deveríamos seguir). Não matar, não roubar, e assim por diante.

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Um policial que dispara sua arma durante um confronto com bandidos não está cometendo um ato imoral. Mas ele pode ir além do dever e do que chamamos de moralidade ordinária e cumprir mais do que o seu dever.

Quem assistiu o filme Capitão América deve lembrar de uma das melhores cenas quando o jovem soldado Steve Rogers pula em cima de uma granada para salvar o pelotão inteiro. Se ele se omitisse naquele momento, alguém poderia acusá-lo de cometer um ato imoral, de ser culpado? Não, é claro. Ele prova seu valor ao realizar um ato heroico, ou supererrogativo, quando vai além do que se espera.

Não se espera que policiais abaixem as armas para criminosos, como cordeiros. Mas quando há vidas de inocentes em jogo, como a de Ágatha, é preciso ir além do dever.

O Estado Leviatã

“Esse grande LEVIATÃ, ou antes (para falar com mais reverência)… esse Deus Mortal, ao qual devemos, sob o Deus Imortal, nossa paz e defesa”, Thomas Hobbes cunhou essa frase ao falar de um estado que abusa de seu poder e autoridade. A polícia é um braço do Estado e quando ela mata um inocente, quem pode nos defender dela?

Todo conservador deve ter um pé atrás com o poder excessivo do Estado. Ele existe como garantia de lei e ordem, e por isso mesmo, mesmo que em guerra contra criminosos, deve manter suas ações dentro da lei. Por isso não se aceita tortura, execuções sumárias, e outras ações fora da lei de agentes públicos.

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"O grande valor da democracia está no fato de ser a única forma de governo que respeita plenamente a dignidade humana e permite aos seus cidadãos serem os autores de seu destino", afirma uma das convicções da Gazeta do Povo. Um Estado que ceifa a vida de inocentes está descumprindo suas mais básicas atribuições.

Além disso, como Roger Scruton nos lembra no livro ‘Como Ser Um Conservador’, “os privilégios dos membros da sociedade não deveriam ser negados às pessoas por critérios — como de raça ou classe — puramente irrelevantes ao seu exercício.” E que “faz parte da verdadeira liberdade civil proibir tais formas de segregação.” Parece difícil de negar que Ágatha tenha sido morta justamente por sua classe e raça, mesmo que não de forma deliberada. Não se veem ações policiais com tal nível de letalidade em bairros mais abastados.

Scruton ainda diz que a força policial “existe não para controlar o indivíduo, mas para libertá-lo. O common law está do lado do cidadão contra os que desejam subjugá-lo sem o seu consentimento — sejam políticos usurpadores ou criminosos comuns. É essa concepção de lei que constitui a base da política conservadora no mundo.”

Em um Brasil em que os homicídios ultrapassam a marca de 60 mil homicídios por ano, e os criminosos exibem um grau de crueldade quase inédito, é necessário não perder de vista o importante papel das forças policiais, para que o país não caminhe para a barbárie pura e simples. Não se pode aceitar o domínio dos bandidos, nem uma polícia que aja da mesma forma.

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