Um cozinheiro aposentado por invalidez, um traficante de drogas ex-integrante da Legião Estrangeira francesa e um aristocrata espanhol com estreitas ligações com o governo ditatorial de Kim Jong Un formam a improvável tríade que conduz a história do documentário “The Mole” (“O Informante”), da rede britânica BBC.
Com pouco mais de duas horas de duração, o filme é o produto final de um trabalho de espionagem realizado por mais de uma década e mostra a forma escusa e quase desesperada como o governo de Pyongyang tenta burlar as sanções econômicas da ONU contra a Coreia do Norte.
A mais brutal de todas as ditaduras
O informante que dá nome ao documentário é o chef de cozinha dinamarquês Ulrich Larsen, que vivia uma vida pacata e tranquila na capital Copenhague. Fascinado pela influência exercida nas pessoas pelo socialismo desde a infância – ele conviveu com crianças que cresceram na Alemanha Oriental – Larsen se viu compelido a expor o horror daquela que o filme trata como “a mais brutal de todas as ditaduras: a Coreia do Norte.”
A ideia ganhou força após o lançamento do documentário “Red Chapel”, dirigido pelo também dinamarquês Mads Brügger, em 2009. Nos moldes do “Borat” de Sacha Baron Cohen, Brügger fez um filme sobre a visita de dois atores, um deles com uma severa deficiência de fala, à Pyongyang: “um filme sobre arte em um país que não tolera arte; um filme sobre ser humano em um país que não tolera humanos”, como descrito em um dos trailers.
Larsen achou que ainda havia muito a se mostrar sobre o governo de Kim Jong Un, e mandou e-mails para Brügger se oferecendo para fazer o papel de infiltrado em um novo documentário. Assim foi feito, e ele entrou em contato com a unidade local da Associação de Amizade com a Coreia (KFA, na sigla em inglês).
Em pouco tempo, Larsen ganha prestígio e garante um lugar entre os cabeças da KFA dinamarquesa. Isso explica a facilidade com que o informante faz as gravações em sua primeira viagem à Coreia do Norte, pretensamente usadas como material de divulgação do trabalho realizado pela Associação.
Animador de torcida
E foi em 2012, nessa viagem a Pyongyang, que o informante se encontrou pela primeira vez com Alejandro Cao de Benós, o autointitulado “guardião” da Coreia do Norte. Ele é o fundador da KFA central, e afirma ser essa a única ponte entre o país e o resto do mundo. Como resumiu uma reportagem da Bloomberg: “Quer fazer negócios com Pyongyang? Chame o cara da Coreia do Norte na Espanha.”
Membro da aristocracia espanhola, Cao de Benós é um ferrenho defensor do socialismo norte-coreano e atua, como descrito por Brügger, como um animador de torcida daqueles que enxergam na Coreia do Norte um paraíso na Terra.
Sobre o sistema econômico comandado por Kim Jong Un, o espanhol é bastante assertivo: “É muito diferente de um sistema capitalista, regido pela economia de mercado e onde a vida é, em parte, determinada pela família, por uma herança ou por ter ou não trabalho. Se trata de um sistema social e político igualitário, onde todos têm o necessário para viver e se sentem completos. Esta igualdade se consegue através de moradia gratuita, saúde e serviços sanitários gratuitos, alimentação e todos os produtos básicos também [gratuitos]. Tudo subsidiado pelo Estado.”
Jantares em bunkers
Do encontro entre os dois surge a janela de oportunidade para a entrada do terceiro personagem nessa história. Em resposta ao pedido de Cao de Benós sobre algum empresário disposto a investir na Coreia do Norte, Larsen o apresenta a um homem nada discreto de nome Sr. James, um multibilionário do ramo de petróleo. O que o espanhol não sabe é que o Sr. James na verdade é o traficante de drogas condenado e ex-integrante da Legião Estrangeira Jim Latrache-Qvortrup, que vai trabalhar ao lado de Larson para expor o que puder sobre o regime de Pyongyang.
O que se segue no filme é uma sucessão de encontros com pessoas influentes, jantares em bunkers com decoração espalhafatosa e situações no mínimo incoerentes, como altos membros do governo norte-coreano cantando uma versão local karaokê do clássico “My Way”, de Frank Sinatra, e o Sr. James assinando um contrato para a construção de uma fábrica de armas e drogas a ser construída na capital de Uganda sob o disfarce de um resort de luxo.
Toda a tecnologia, mão de obra e matérias primas seriam enviadas pela Coreia do Norte sem nenhuma interferência do governo africano, com quem Kim Jong Un demonstra ter uma boa relação.
Em um país onde qualquer acesso à informação é controlado pelo governo é estranho ver a forma tranquila como os dois espiões disfarçados transitam livremente entre oficiais do partido socialista. Em certo ponto da história, o suposto empresário Sr. James até mesmo inventa o nome da empresa por ele representada – fato que parece não ter sido checado pelas autoridades locais.
Apesar do uso de câmeras escondidas, a maior parte das ações de Larsen e Latrache-Qvortrup na Coreia do Norte são filmadas de forma aberta, o que leva o documentário aos limites da credibilidade. Mas de acordo com um ex-membro da ONU ouvido pela BBC, apesar de aparentemente amador o filme traz aspectos “altamente verossímeis”.
Nenhuma negociação chegou a ser fechada, e assim que as outras partes começaram a exigir seus pagamentos o Sr. James foi prontamente tirado de cena pela produção do documentário. Os governos de Dinamarca e Suécia emitiram um comunicado em conjunto endereçado ao Conselho de Segurança da ONU e à União Europeia no qual se mostram profundamente preocupados com o conteúdo do documentário e cobram respeito e suporte às sanções contra a Coreia do Norte. Mas até a publicação dessa reportagem nem a ONU nem a União Europeia publicaram qualquer informação a respeito do documentário.
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