Em ‘Para Você, Quando Eu Não Estiver Mais Aqui’, Steve Leder resgata uma antiga tradição: a do “testamento ético”.| Foto: Unsplash/Rolands Zilvinskis
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No livro ‘Para Você, Quando Eu Não Estiver Mais Aqui’ (editora Sextante), o rabino americano Steve Leder resgata uma antiga tradição: a do “testamento ético”.

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Trata-se de um documento em que transmitimos às pessoas que amamos nossos valores, desejos e lições de vida.

Por meio de 12 perguntas essenciais, Leder nos convida a escrever nosso próprio testamento, relembrando alegrias e arrependimentos, episódios que nos trouxeram sabedoria, sofrimentos marcantes e dores possíveis de serem evitadas.

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Leia a seguir um recorte da obra em que o autor mostra como a memória, se bem direcionada, pode nos ajudar a transcender a dor da perda de nossos entes queridos.

Quando conheço idosos, faço um tipo de joguinho na minha cabeça. Aprendi essa técnica muitos anos atrás, com o capelão de um hospital.

Ele me disse que, ao visitar idosos no hospital ou em clínicas de repouso, muitas pessoas acabam cometendo o erro de tratá-los como crianças. Elas falam alto e devagar, evitam assuntos complexos e emoções fortes, e tentam ir embora logo.

“O que eu faço para me policiar”, explicou ele, “é, assim que entro na sala, olhar bem para o rosto da pessoa e tentar imaginar como ela era 30 ou 40 anos mais nova”.

“Então falo com ela como se tivesse essa idade. É importante lembrar que todo mundo já foi mais jovem – mais vibrante, feliz, apaixonado, divertido e cheio de sonhos. A pessoa pode ter envelhecido, mas boa parte dessa juventude resiste no seu interior. Respeite e se identifique com ela o máximo possível.”

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Faz mais de 30 anos que sigo esse conselho, e não apenas em hospitais e clínicas de repouso.

Faço esse joguinho quando estou na fila do mercado e vejo uma senhora em sua cadeira de rodas motorizada. Ela está demorando muito para passar as compras, querendo usar seus cupons de desconto, fazendo um monte de perguntas e testando minha paciência.

Então eu a imagino no dia do seu casamento, vestida com renda branca. Ela tem 20 e poucos anos, é linda, tem olhos castanhos e exibe um sorriso tímido. O noivo acabou de voltar da guerra.

Ela usa um batom vermelho forte, suas sobrancelhas são grossas, escuras e perfeitamente desenhadas, e seu cabelo cacheado pretíssimo está coberto por um véu. Acima do decote em V, um colar simples de pérolas adorna seu pescoço.

Eu a observo servindo o primeiro pedaço do bolo ao marido enquanto um flash estoura, e então os dois dançam. Ela gira, feliz, rindo, ficando tonta. Os dois têm sede de viver e de amar.

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– Próximo – anuncia o caixa, me arrancando da fantasia enquanto a senhora segue na direção da porta automática.

Meu pai passou dez anos sofrendo com Alzheimer. No começo, a doença o envelheceu; com o tempo, o transformou em outra pessoa. De certa forma, ele morreu duas vezes.

Primeiro, quando a doença mudou seu cérebro e o transformou em alguém que não era mais meu pai, que já não me reconhecia como filho.

Anos depois, ele morreu de novo quando seu coração parou de bater, falecendo silenciosamente no meio da noite, como uma brisa. Eu estava a mais de 3 mil quilômetros dali.

Sempre que eu visitava meu pai na clínica de repouso, me inclinava para ficar na altura da cadeira de rodas, aproximava meu rosto do dele e pedia para alguém tirar uma foto de nós. Tenho dezenas dessas fotos no meu telefone.

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Quis tirá-las para o caso de aquela acabar sendo a última foto da última vez que vi meu pai vivo. Na época, parecia o certo a fazer, e não consigo apagá-las, mas agora odeio essas fotos em que estou sorrindo para disfarçar meu coração partido, enquanto ele encara o nada com a boca aberta.

Não é assim que quero me lembrar do meu pai. É assim que quero me esquecer dele. Hoje, mais de quatro anos após sua morte, prefiro olhar outras fotos.

Por exemplo, uma que minha irmã me mandou no ano passado, tirada por volta de 1980. Meu pai está de patins ao lado de seu melhor amigo, Joey, deslizando pelo ringue com um sorriso largo, despreocupado e relaxado.

Ele estava se divertindo. Minha mãe devia estar papeando com a esposa de Joey, Nancy, quando viu a cena e bateu a foto.

Há outra dele sentado diante de um sorvete, com três jarros extras de uma deliciosa calda quente de chocolate.

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Ele está usando sua camisa de flanela vermelha larga, com um lenço levemente sujo no bolso, a colher a caminho da boca e uma gota da calda escorrendo pelo queixo logo abaixo do seu sorriso lindo e dos seus olhos azuis brilhantes.

– Cadê você, pai? – pergunto em voz alta no meu escritório silencioso enquanto olho para essas imagens de épocas mais felizes. – Cadê você?

Sei a resposta: ele está na minha cabeça, graças ao dom mais extraordinário com que os seres humanos foram agraciados – a memória.

Ao contrário de qualquer outra criatura no planeta, nós temos a capacidade de invocar o passado no presente e levá-lo conosco para o futuro.

Podemos imaginar as pessoas que amamos como elas eram antes da demência, do tumor, dos médicos, das agulhas e dos tubos; antes do funeral e do enterro; antes do peso avassalador do começo do luto e do fluxo misericordiosamente mais calmo da perda ao longo da vida.

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Ao nos levar a revisitar o passado, como o declínio de alguém que amamos, a memória pode nos infligir dor.

Mas ela também nos permite transcender essa dor para nos lembrarmos de nossos entes queridos em seus melhores momentos, quando estavam mais satisfeitos, mais realizados, mais felizes.

Que memórias você deseja que seus entes queridos carreguem? Que imagens dançarão no coração deles como uma noiva girando em meio ao ar perfumado, feliz e cheia de vida?

Quando seus entes queridos quiserem pensar em você após a sua morte, o que deseja que vejam? Onde você está? Com que idade? Quem está ao seu lado? O que você está vestindo? O que está fazendo?

Aos seres humanos foi dada uma bênção: não apenas temos a capacidade de lembrar, como também somos capazes de conscientemente criar lembranças para os outros guardarem.

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Com frequência, em meio a um momento maravilhoso, digo aos meus filhos: “Lembrem-se de mim assim. Contem sobre isso para os seus filhos.”

Às vezes, eles reviram os olhos e me mandam parar de ser tão “brega”. Mas, em geral, eles me escutam e em silêncio eternizam mentalmente o momento, para resgatá-lo dali a décadas.

Eles sabem que o conselho de capturar um momento não vem apenas de mim como pai, mas de alguém que já ouviu milhares de famílias compartilharem suas memórias no dia seguinte à morte de um ente querido.

De alguém que sabe o que resiste na mente e no coração muito tempo depois de partirmos, e que nunca teremos certeza do dia em que isso vai acontecer.

Enquanto você estiver vivo, pode decidir que memórias e momentos deseja que seus entes queridos guardem; a qual beleza eles podem se apegar quando a tristeza da perda se infiltrar em seus corações.

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Ajude-os a enxergar você da maneira como deseja ser visto, a se lembrarem de você da maneira como deseja ser lembrado, a sentir seu amor por eles quando restarem apenas memórias e amor.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]