Embora compartilhem um vasto vocabulário e um punhado de metáforas, os médicos e os economistas trilham caminhos diferentes, em matéria de reputação. Se, por definição e por mérito, os legionários de Hipócrates curam doenças e salvam vidas, a legião das finanças suporta nos ombros a carga de todas as acusações pelos males do mundo — seja por atos, seja por omissão. Fazer o quê?... Mas, afinal, e o humour? Quanto a isso, sempre teremos o consolo da mais fina e vingativa ironia, como a sugestão de que os médicos podem, no fim das contas, “enterrar seus erros”.
Mas, se os economistas não podem ser coveiros, alguns ao menos conseguem identificar e diagnosticar doenças. O economista austríaco Ludwig von Mises (1881-1973) deu um belo testemunho disso, quando cunhou com exatidão cirúrgica a expressão Complexo de Fourier, para identificar um dos males que assolam a humanidade há séculos, e que vem se agravando de modo exponencial nos últimos tempos: o ressentimento mascarado de igualitarismo extremo.
Sociopatologia da vida cotidiana
Distúrbio antigo que já recebeu vários nomes, a versão atualizada por Mises tem o duplo mérito da clareza de raciocínio e da linguagem simples e didática – por sinal, marca singular do mestre austríaco. No livro 'Liberalismo, segundo a Tradição Clássica', lançado originalmente em 1927 e atualizado várias vezes ao longo dos anos, assistimos ao nascimento e descrição em poucos traços da sintomatologia dessa forma extrema do igualitarismo, velho fantasma que ronda a Humanidade.
O Complexo de Fourier define uma forma patológica da velha aspiração humana que sensibiliza sobretudo os jovens – e, entre eles, os mais “desavisados” e menos informados. Em linhas gerais, consiste em desejar, apregoar e inclusive ajudar a implantar a pobreza generalizada, mesmo que seja ao limite da miséria e da desnutrição, como forma de igualar o bem-estar de todos os integrantes da sociedade.
Parece estranho, opinam os sensatos – e é, de fato. Por caminhar completamente na contramão de qualquer racionalidade mais elementar e do próprio instinto de preservação, Ludwig von Mises a descreveu como uma neurose ou transtorno psíquico desencadeado antes de tudo pela inveja e, em muitos casos, pela misantropia. Traduzindo em linguagem mais simples (missão didática do mestre austríaco), teremos o que senso comum costuma chamar de um... “complexo”.
Quanto ao antropônimo, Mises o tomou emprestado do famoso socialista francês Charles Fourier (1772-1837), que semeou suas ideias suspeitíssimas de igualdade e acabou fazendo com que intelectuais, jovens estudantes e demais “desavisados” de todo o mundo as colhessem, e até ajudassem no replantio. Destaque-se que, para Fourier e seus pares do grande Sanatório Geral das ideias fora de ordem, “igualdade” é sempre igualitarismo, uma cepa variante comparável a outros casos virais da mesma gravidade – como ecologismo, naturalismo, nacionalismo e outros ismos vendidos como remédios para os males humanos e sociais.
Por apregoar — e praticar — ideias que nivelem por baixo (socialmente, economicamente) todos os membros da sociedade, não há como discordar: o Complexo de Fourier é uma patologia psicológica séria, que deveria interessar antes à psicologia do que à política. Mas, como neste caso os médicos se omitiram ou nem perceberam, um economista fez a sua parte.
O ressentimento (e todos os seus derivados, como este assombroso Complexo) ocorre sempre alguém odeia ou inveja tanto outra pessoa, por ela estar em circunstâncias mais favoráveis, que chega ao ponto de aceitar grandes perdas e danos desde que a pessoa odiada também saia perdendo. Por acaso lhes soa familiar? Mises fecha um pouco mais o foco:
“Muitos daqueles que atacam o capitalismo sabem muito bem que sua situação seria menos favorável ainda, sob qualquer outro sistema econômico. No entanto, mesmo com pleno conhecimento deste fato, defendem uma reforma – isto é, o socialismo – porque anseiam que o rico, a quem invejam, também sofra com isso”. (em tradução livre)
Assim são os “complexados” – e assim era Fourier, que sem querer acabou emprestando seu nome à doença.
Socialista, utópico, ressentido
As biografias favoráveis (e são muitas, talvez a maioria), apresentam Charles Fourier como um filósofo e economista político – um pensador “utópico”, mais até: um homem “idealista”.
Nascido na província francesa de Besançon, de uma família empobrecida pela crise em que o país estava submergindo, Fourier cresceu ouvindo os parentes repetirem em família que a culpa de suas dificuldades era “dos outros” – no caso, do Ancien Régime, que àquela altura pagava a conta pela centralização excessiva do poder, matriz irrecorrível da maioria das derrocadas políticas e institucionais. Seu pai, comerciante arruinado, tentou legar ao filho o gosto pelos negócios – mas o jovem Fourier herdou apenas o “ABC do Ressentimento” no homeschooling intensivo que recebeu.
Pouco depois de abandonar os estudos (tinha então 17 anos), Charles Fourier entrou para o Exército, numa conjuntura que lhe serviu como verdadeira graduação em rancor e desejo de retaliação: a Revolução Francesa. Mas logo foi afastado da ativa por problemas de saúde, arrumando emprego modesto de balconista – mas a dura realidade do trabalho apenas acentuou suas tendências vingativas.
Como repetia o barranqueiro Riobaldo (o protagonista-narrador de Grande Sertão: Veredas), “quem mói no asp’ro não fantaseia – ou, em português corrente, “quem mói no áspero não fantasia”, quem trabalha duro não dá asas à imaginação. Fourier, no entanto, deu asas a seus devaneios. Mais até, passou-os para o papel, começando a escrever sobre questões sociais e econômicas, ao mesmo tempo em que filosoficamente defendia a existência de “uma ordem social natural, paralela à ordem física do universo”. Ocorre que, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a ideia não deitava raízes na teoria do direito natural, que a Igreja Católica abraçava e resguardava. Na verdade, o “Evangelho Segundo Fourier” apontava na direção de um anticlericalismo coletivista e justiceiro (quer dizer, vingativo).
Em 1822, Charles Fourier lançou o jornal Falanstério, mais tarde rebatizado como A Falange, onde difundia um Credo claramente influenciado pelo idealismo de Jean-Jacques Rousseau – por sinal, outro ressentido. Sua ideia central era que a sociedade devia se organizar em comunidades chamadas falanstérios, espécie de edifícios-cidades onde as pessoas trabalhassem apenas naquilo que quisessem. Defendia, com isso, o fim da “dicotomia entre trabalho e prazer”.
Nos falanstérios, comunidades cooperativistas e autônomas, os bens seriam distribuídos conforme a necessidade, e a educação deveria se adaptar às inclinações de cada criança – tal qual o pedagogo Johannes Amos Comenius (1592-1670) apregoava. Outra pérola do Fourierismo: também não haveria quaisquer restrições morais à prática de sexo. Não é difícil deduzir que Fourier ajudou a disseminar a agenda que chegou aos nossos dias. Se você quiser um monumento, basta olhar em volta: tudo aquilo acabou dando... “nisso”.
Ao morrer em Paris, aos 65 anos, Fourier deixou alguns livros publicados, mas seu magnum opus continuou sendo o falanstério, amarga variante do socialismo mais distópico e radical, que desde então vem ajudando a ampliar a messe legada os pobres do mundo. As biografias mais favoráveis (provavelmente a maioria) garantem à sua doutrina – o Fourierismo – o posto de precursora do socialismo marxista e da psicanálise.
Tudo somando, não deixa de ser ironia ou justiça poética o “detalhe” tão de que tenha cabido a um economista, não a um médico da área psiquiátrica, a descoberta do Complexo de Fourier – a loucura moral em sua forma extrema.
A alegria diante da ‘dor alheia’
Lênin, Stálin, Mao Tse-tung, Fidel Castro, Pol-Pot, Nicolás Maduro… Para além da lista de insanos notáveis, o Mal de Mises – perdão: de Fourier! –capilariza suas raízes nas psicopatias cotidianas, dessas que precipitam o drama sem máscara. E qualquer um de nós, mesmo sem ter olhos para o identificar, já terá sentido na pele ou testemunhado um caso de quadro sintomático, ou mais de um. Imagino que todos conheçam algum (ou mais de um) que testou positivo para o Complexo de Fourier.
Eu mesmo conheço e presenciei várias dessas infestações. Por economia e prudência, limito-me ao mais exemplar:
Lá se vão anos. Na bilheteria de um museu carioca, creio que da Marinha, eu acompanhava uma amiga que por sua vez tinha trazido uma amiga sua. Eu e minha amiga estávamos na frente e – por razões que desconheço ou de que já não me lembro – ganhamos um desconto nos ingressos. Mas, pelos mesmos desconhecidos ou esquecidos motivos, a “amiga da minha amiga” não teve direito ao mesmo abatimento.
Nervosa e mesmo afetadamente indignada, a moça reclamou e eu e minha amiga naturalmente a apoiamos, perguntando por que a “amiga da minha amiga” não tinha acesso à dedução. Mas, para nosso espanto (meu e de minha amiga), a conversa logo ultrapassou as fronteiras da sanidade – quando a “amiga da minha amiga” disse não fazer questão do desconto, mas exigia (lembro-me de que foi o verbo que usou) que nós pagássemos também o preço integral!
Não me recordo do desfecho, mas é perfeitamente dispensável: tenho ainda bem nítido o desconforto que me acometeu naquele dia. Todos os homens (disse Aristóteles) têm por natureza a necessidade de conhecer. Àquela altura da vida, eu já tinha lido o Estagirita – mas não sabia ainda de Ludwig von Mises. Desconhecia o Complexo de Fourier, que a “amiga da minha amiga” exalava em fase bem aguda. Da mesma forma, eu não conhecia o termo alemão que dá nome a um sintoma específico doença, que é o de sentir satisfação ou alegria pelo infortúnio, sofrimento ou prejuízo de alguém. Schadenfreude: literalmente, alegria diante do dano (ou da dor) do outro.
Desconheço como – e por que – a “amiga da minha amiga” chegou a tal ponto, ela e os milhões que “testam positivo” para o Complexo de Fourier. Mas se um louco pode ajudar a explicar o desvario de seus pares, peço licença para concordar com um vilão do cinema contemporâneo, para quem a loucura é como a força da gravidade: depende apenas de um pequeno empurrão…
A igualdade impossível: somos essencialmente diferentes
A maioria das pessoas não reconhece a verdade, nem mesmo quando ela avança implacável em seus calcanhares. Na contramão do brilho e do otimismo de um Santo Tomás de Aquino, que apostava na experiência imediata dos cinco sentidos, o mundo parece mais inclinado à verdade poética de T. S. Eliot, para quem “o gênero humano não pode suportar tanta realidade” (in Burnt Norton, um dos Quatro Quartetos).
Mas a realidade, como o talento de Mises não cansa de nos lembrar, é que os homens são diferentes, essencialmente desiguais – e sempre serão. Mesmo pessoas riquíssimas são desiguais entre si. A questão é: longe de representar um defeito ou de ser a fonte de nossas maiores desventuras, a desigualdade amplia nossas chances de trilhar novos caminhos, de alterar os rumos do conhecimento. E, no fim das contas, só ela pode gerar mais riquezas para todos.
Ao longo de sua obra, livro após livro, Mises defendeu a estratégia de que a Verdade pode (e deve) ser alcançada sempre com o auxílio de argumentos racionais – aos quais também cabe o importante papel de combater o ressentimento matricial do Complexo de Fourier. Mas será tão difícil assim explicar aos ressentidos que a cura para seus males definitivamente não é piorar a situação do próximo, mas melhorar a sua própria? Temo que a resposta seja afirmativa. Afinal, são poucos os pastores, mas o proverbial rebanho dos que contraíram o Complexo de Fourier é imenso – e o “gado” não parece disposto a buscar a “cura”. Mais uma vez, com a palavra, Mises:
“Para o fracassado social, que é nossa única preocupação aqui [i.e., no livro Liberalismo], o consolo consiste em acreditar que sua incapacidade de alcançar as sublimes metas a que aspira não se deve à sua própria incapacidade, mas às deficiências da ordem social. O descontente espera que a derrocada desta ordem traga o sucesso que o atual sistema lhe recusou”. (mais uma vez, em tradução livre)
Por trás das palavras da “amiga da minha amiga”, podemos ouvir o eco secular de socialistas, comunistas, anarquistas e milhões de espíritos acometidos por ideias e emoções desordenadas. Semelhantes em tudo à “amiga da minha amiga”, é como se repetissem que o prejuízo de todos é mais aceitável do que o sucesso de alguns. Ou, nas palavras inflamadas de um Fourier, “a miséria material na sociedade socialista será mais suportável porque pelo menos teremos a certeza de que ninguém estará em melhor situação”.
“Todo neurótico”, como diagnosticou o grande economista austríaco, “insiste em sua mentira salvadora – e, quando precisa escolher entre renunciar a ela ou à Lógica, prefere sacrificar a segunda”. Em breve síntese: para os que “testam positivo” para o Complexo de Fourier, é como se a vida parecesse insuportável sem o alívio da ideia de socialismo — espécie de paliativo que os libera temporariamente de um sentimento agudo de inferioridade.
Mas… e a cura?
Os pessimistas (e também os mais “sensíveis”) sempre irão apostar que o Complexo de Fourier é em grande parte incurável – ao menos até que otimistas demonstrem o contrário. Mas algum otimismo e um pouco de confiança não são sinônimos de “salvacionismo social”.
Mais uma vez, Mises vem em nosso socorro lembrando que existe, sim, um tratamento eficaz – talvez único – que seria o de confiar ao próprio doente a cura de sua mazela. Nossa ignorância, em suma, pode ser tratada e revertida a tempo, ministrando-se porções generosas de humildade, alternadas com doses sistemáticas de leitura e reflexão. Leituras de Mises, por certo, e reflexões temperadas de honestidade e coragem.
Por meio do conhecimento, arremata o exímio pensador austríaco, encontraremos a honestidade de entender as leis básicas da cooperação social entre os homens. E, pela via do autoconhecimento, teremos enfim coragem para enfrentar nosso destino imperfeito e eventualmente injusto, sem sair mundo afora à caça de bodes expiatórios.
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