| Foto: Ilustração/Felipe Lima

Nos últimos tempos da União Soviética, uma piada corria o país: dois russos, irritados por estarem numa longa e demorada fila para comprar vodca, culpavam Mikhail Gorbachev, o líder soviético. Um deles diz: “Não aguento mais. Vou ao Kremlin matar Gorbachev”. E sai. Uma hora depois, volta e encontra, ainda na fila da vodca, o “camarada” com quem havia conversado – que pergunta: “E então? Matou Gorbachev?” Ele responde: “Não, a fila estava maior do que essa”.

CARREGANDO :)

A anedota ilustra com bom humor algumas das causas do esfacelamento do socialismo soviético: a ineficiência da economia comunista e sua incapacidade prover bens de consumo para a população, além da total ausência de apoio popular para manter um regime marcado pelo autoritarismo.

O comunismo ruiu em 1989, com a queda do Muro de Berlim. Foi uma experiência histórica fracassada que começou há exatos 100 anos, com a Revolução Russa, iniciada em março de 1917 (fevereiro pelo antigo calendário russo).

Publicidade

Veja os principais momentos da história do comunismo

Em seu estado “original” – sem propriedade privada de meios de produção e ditadura do partido único – sobrevive apenas na Coreia do Norte. Outras nações ainda comunistas já dão passos, ora mais lentos ora mais rápidos, em direção ao capitalismo – caso de Cuba e China. Mas isso significa que o comunismo está definitivamente morto e que nunca mais voltará?

A resposta

É difícil fazer uma previsão histórica – os marxistas sabem muito bem disso porque profetizaram, equivocadamente, que o fim do capitalismo e a ascensão do socialismo era a marcha inevitável da história. Mas a resposta mais perto da realidade é: sim, o comunismo está enterrado, mas na sua versão soviética. Não é possível, contudo, descartar a possibilidade de haver novas experiências anticapitalistas e socialistas. O bolivarianismo latino-americano é um exemplo.

“O socialismo de tipo soviético me parece historicamente morto, sem condições de abrir perspectivas de futuro”, diz o historiador Daniel Aarão Reis, professor da Universidade Federal Fluminense que estuda revoluções socialistas.

Publicidade

O sociólogo Demétrio Magnoli, autor de vários livros sobre história e geopolítica do século 20, prefere não dizer que o comunismo morreu, por ser um conceito amplo. Mas sim que o que foi enterrado é o leninismo, definido por ele como “a ideia que presidiu a Revolução Russa: de que um partido tomaria poder, estatizaria a economia e conduziria a nação ao comunismo [pela teoria marxista, a sociedade sem classes]”. O leninismo é a versão do marxismo defendida por Lênin, principal líder revolucionário da Rússia.

Comunismo e socialismo são a mesma coisa?

Os dois termos costumam ser tratados como sinônimos. Mas, de acordo com a teoria marxista, há diferenças

Leia a matéria completa

Anticapitalismo vivo

Apesar disso, Magnoli não descarta a possibilidade de surgirem projetos políticos alternativos para se opor ao capitalismo. “As ideologias anticapitalistas não morreram. Sempre vão existir em função das desigualdades econômicas e sociais dentro do capitalismo.”

Especialista em história soviética e autor do livro Rússia: Europa ou Ásia? (Ed. Contexto), o historiador da USP Angelo Segrillo também prefere não assinar o atestado de óbito do comunismo. Ele lembra que hoje o polo mais dinâmico da economia mundial é uma nação que, embora venha adotando um modelo capitalista de produção, ainda se declara oficialmente comunista e controla fortemente os agentes econômicos: a China. “Como o futuro será quando a China se tornar a maior economia do mundo e passar a hegemonizar a economia mundial, como os EUA a hegemonizaram por longo tempo, é uma incógnita.”

A revolução pela cultura

O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) foi um teórico do marxismo que ainda hoje influencia, com sua teoria da hegemonia, adeptos do socialismo. Marxistas contemporâneos veem nas ideias de Gramsci a chave para implantar uma sociedade socialista não pela revolução armada, mas por meio da cultura, educação e comunicação. A ideia de quem se inspira em Grasmci é, inicialmente, “converter” os intelectuais ao socialismo. O controle dos aparelhos culturais, então, conduziria à conversão das massas. Nesse momento, não seria necessário tomar o poder com violência. A sociedade já teria uma nova hegemonia cultural; e seria socialista de forma quase consensual.

Publicidade

A grande controvérsia: comunismo produziu conquistas sociais do Ocidente?

O legado da experiência socialista soviética no mundo contemporâneo é complexo e controverso. Um dos pontos que mais gera discussão é a tese de que, se não houvesse o medo da ameaça comunista, as democracias ocidentais não teriam edificado após a II Guerra o modelo de Estado de Bem-Estar Social que assegurou amplos direitos aos cidadãos.

As políticas sociais, nesse sentido, seriam “concessões” capitalistas aos trabalhadores para que eles não fossem seduzidos pelo projeto comunista. E também resultado da luta de sindicatos e trabalhadores que, em grande medida, tinham o ideal de construir um socialismo democrático.

“Indiretamente, o socialismo contribuiu para conquistas sociais importantes, que beneficiaram trabalhadores de todo o mundo, especialmente na Europa Ocidental”, diz o historiador Daniel Aarão Reis.

O sociólogo Demétrio Magnoli discorda. Para ele, o Estado de Bem-Estar foi resultado da liberdade que existe no mundo ocidental e que permitiu que partidos e sindicatos se organizassem para reivindicar direitos. Magnoli afirma que argumentar que essas conquistas representam uma reação ao comunismo é uma forma de desqualificar as lutas sociais do Ocidente.

Outras marcas

O socialismo também deixou outras marcas no mundo contemporâneo. Do ponto de vista ideológico, o fim do comunismo soviético deixou órfã a esquerda anticapitalista, que ainda não encontrou uma alternativa concreta de projeto político-econômico. Mas, para o historiador Angelo Segrillo, ainda sobrevive “o ideal de que é possível um mundo melhor, mais cooperativo”, porque o capitalismo não resolveu os problemas básicos da humanidade.

O historiador Daniel Aarão Reis lembra ainda de outro legado da União Soviética: a independência de inúmeros países, conquistada com a retaguarda de Moscou. Com isso, embora tenha se dividido em 15 repúblicas, a União Soviética contribuiu para a formação do mapa-múndi como ele é atualmente.

A atual Rússia também herdou um papel na geopolítica que, embora muito atenuado em relação aos tempos socialistas, ainda é significativo devido ao arsenal bélico-nuclear construído muito em função da bipolaridade com o Ocidente. Demétrio Magnoli afirma que o ideal soviético de grandeza sobrevive hoje na Rússia de Vladimir Putin.

Voltar ao topo

Publicidade