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Comunismo e nazismo: quando a política se transforma em autoridade religiosa do mal

Comunismo e nazismo não deram errado, são errados | Ilusreação/Gazeta do Povo
Comunismo e nazismo não deram errado, são errados (Foto: Ilusreação/Gazeta do Povo)

Leszek Kolakowski (filósofo polonês, 1927-2009), um dos principais estudiosos do marxismo, afirma que via no partido comunista polonês todos os elementos componentes e ritualísticos do cristianismo: escatologia (ciência teológica do fim do mundo), pecado original, redenção, encarnação, conflito entre fé e razão, natureza e graça, revelação e mistério, paraíso e danação. O que quero mostrar, de início, é: a comparação entre religião e política vai muito além da mera acusação de “fanatismo”, isto é, uma forma de acusar algum interlocutor num assunto de política de ser exacerbado e fundamentalista. 

Quem consolidou a expressão “religião política” como conceito analítico para a ciência política foi o filósofo germano-americano Eric Voegelin (1901-1985) – posteriormente, Raymond Aron falou em “religião civil”, recuperando o vocabulário contratualista de Hobbes e Rousseau. Embora em suas “Reflexões Autobiográficas” o próprio Voegelin ponha a nomenclatura religião política em xeque (visto que reunir sob o mesmo nome tantas manifestações diferentes como “religião” já é controverso, imaginemos incluir ideologias políticas nesse balaio), Voegelin não ofereceu sugestão substituta e praticamente toda bibliografia crítica derivada de sua obra acerca do tema mantém a expressão “religião política”. A despeito da dificuldade nominal, devemos manter nossas atenções para o fenômeno descrito por Voegelin. 

O conceito de religiões políticas não pode ser compreendido senão à luz de um outro conceito, que é o de gnosticismo. Embora as raízes gnósticas dos movimentos políticos remetam ao início da modernidade, Voegelin vai até a Idade Média tardia e até antes para explicitar a gênese de tais ideias. Muito embora, também, seja apenas no século XX que a aplicação do conceito ganha sua adequação máxima, ao ver a ascensão dos movimentos de massa e os genocídios nazista e comunista.

O gnosticismo é uma heresia já combatida pela Igreja antes de sua influência alcançar a seara da política. Pode ser definido como a crença que a ordem estabelecida do universo é hostil, mas isso pode ser atenuado ou alterado, desde que certas medidas de conhecimento dos próprios gnósticos (e reveladas em caráter esotérico) sejam tomadas, então a ordem universal poderá ser corrigida em favor do homem. Sem meias palavras, já podemos dizer (junto com Paul Johnson em “Tempos Modernos”) que o marxismo é uma doutrina gnóstica. O marxismo crê que a ordem social é totalmente corrompida, que suas bases precisam ser radicalmente alteradas e que o materialismo dialético é o método equipado com os conhecimentos necessários para tal realização, desvelando a própria realidade do véu da “ideologia” (ideologia, para o marxismo, possui um significado muito particular, é basicamente tudo que não seja marxismo).

Comunismo

Uma vez implementado o ideário comunista, o resultado final será o ordenamento paradisíaco prometido pelo marxismo: o fim da História, uma sociedade sem Estado e em que as pessoas podem fazer tudo que bem entenderem, pois a sociedade “regulará” a produção das coisas necessárias conforme a necessidade de cada um (“Ideologia Alemã”, 1986, p. 47). 

É assim que se estabelece aquilo que Olavo de Carvalho chamou de “a autoridade religiosa do mal”, presente em estado perfeito no nazismo e no comunismo. O ponto final da História humana está inserido dentro da própria História (uma sociedade sem classes, sem raças inferiores etc), numa paródia de paraíso e de vida pós-morte (e com um claro rompimento com a concepção cristã de História, prevalente no Ocidente) e pode ser alcançado mediante a tomada das “medidas corretas” em termos de sociedade e política. Se compreendida corretamente, essa explicação constitui outra evidência que comunismo e nazismo não “deram errado”, mas que são errados.

A autoridade religiosa do mal dos totalitarismos do século XX vem justamente do fato de acreditarem estar imbuídos do conhecimento e da capacidade para instalar um estado paradisíaco na terra. Como não matar judeus, padres, reacionários, kulaks, etc se tudo que estes fazem é se colocarem como um empecilho para o paraíso vindouro? Não apenas se torna lícito matar, mas recomendável. É o pináculo da moralidade dos fins justificando os meios. 

Por fim, o espírito revolucionário é afligido por uma doença que Eric Voegelin chamou de “fé metastática”, talvez melhor expresso pela sentença de Antonio Gramsci de que “tudo será mais belo” graças a uma mudança radical e repentina na estrutura da realidade ou, ainda, assim expressa pelo próprio Voegelin: “do problema metastático (...) verá imediatamente que a concepção profética de uma mudança na constituição do ser está na base de nossas crenças contemporâneas na perfeição da sociedade, seja mediante o progresso ou uma revolução comunista” (VOEGELIN, “Ordem e História”, vol. 1, 2009, p. 31). Essa é a convicção que moveu as mentes nazistas e move as mentes comunistas e de todos que aderem à ideia que o paraíso terrestre será alcançado pela revolução, formando o pacote completo de uma “religião política”.

*É professor de Filosofia das redes pública e privada do Estado de São Paulo, tradutor e assessor editorial das editoras Linotipo Digital e Armada.

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