Em poucas horas de evento, o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi palco para manifestações contra a democracia, por parte dos militantes, e para declarações de ministros denotando um cenário crescente de perseguição a ideologias de direita no país. Na noite de quarta-feira (12), o ministro da Justiça, Flávio Dino, defendeu a regulamentação das redes sociais por serem “plataformas das ideias da direita e do poder econômico”. Já Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), confessou ter enfrentado o “bolsonarismo”, que equiparou a uma ameaça à democracia, como a ditadura.
Enquanto discursava na abertura da 59º edição do evento, Barroso foi vaiado por estudantes trotskistas ligados ao Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT). Intitulado Faísca Revolucionária, o grupo que atua na oposição à atual direção da UNE, atacou a democracia por meio de uma faixa acusando o ministro de “articulador do golpe de 2016”, em referência ao impeachment de Dilma Rousseff (PT). Apesar do discurso da esquerda nesse sentido, que o próprio Lula tem reforçado, o processo de responsabilização e destituição da Presidente da República por crime de responsabilidade, chamado de impeachment, está previsto na Constituição Federal de 1988 e foi avalizado pelas instituições do país, como o próprio STF.
Outro motivo das vaias foi a suspensão da lei que estabelecia o piso salarial da enfermagem pelo magistrado, em setembro do ano passado. O próprio Barroso revalidou a legislação do piso em maio, depois da liberação de R$ 7,3 bilhões pelo governo. Chamado pelos militantes de “inimigo da enfermagem”, o ministro disse que “nada que está acontecendo aqui me é estranho”. “Já enfrentei a ditadura e já enfrentei o bolsonarismo. Não tenho medo de vaia, porque temos um país para construir. Nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas”, disse.
Durante a abertura do evento, o ministro do STF e o ministro Flávio Dino participaram do “Ato Justiça, reparação e democracia”, cujo objetivo era a “defesa da democracia” e “o enfrentamento ao autoritarismo e ao discurso de ódio no Brasil”. Em seu discurso aos estudantes, Dino voltou a falar em regulamentação das redes sociais pelo governo, justificando que essas plataformas são usadas para divulgar as “ideias da direita e do poder econômico”.
Se a primeira tarefa democrática, na opinião de Dino, é combater a desigualdade e construir um país mais justo, a segunda “é enfrentar o poder de quatro, cinco empresas que mandam na internet e veiculam extremismo”. “Todo mundo aqui é contra o fascismo, contra o golpismo e contra a extrema-direita. Todo mundo defende a educação pública gratuita de qualidade para todos no Brasil. Todos são contra a discriminação dos negros, das mulheres e da comunidade LGBT”, declarou.
O evento
Fundada em 1937, a União Nacional dos Estudantes se define como “um espaço e um veículo de lutas sociais e bandeiras do movimento estudantil do Brasil”, encabeçando bandeiras como o passe estudantil, a meia-entrada para atividades culturais e esportivas, “a desmilitarização da polícia, o respeito à diversidade e o fim do genocídio da juventude negra nas periferias urbanas” e a “democratização dos meios de comunicação”. Entre os militantes mais conhecidos da UNE estão a ex-presidente Dilma Rousseff, o ex-governador de São Paulo José Serra, o cineasta Cacá Diegues, o religioso Frei Betto e o poeta Ferreira Gullar.
Considerado "o maior encontro político da juventude brasileira", o Congresso da UNE espera reunir mais de 10 mil estudantes em Brasília, nesta edição (que ocorre entre 12 e 16 de julho), juntamente com "personalidades de todos os espectros políticos do campo progressista". Neste ano também será realizada a eleição da nova diretoria da UNE, que ocorre a cada dois anos.
O Planalto confirmou a presença de Lula no evento, no fim da tarde desta quinta-feira (13). Na ocasião, o petista receberá uma carta dos estudantes com demandas para a educação. Também estão previstas as presenças dos ministros da Secretaria-Geral da Presidência, Márcio Macêdo, da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, além do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica. O governo definiu o Congresso da UNE como “o maior espaço de debates entre estudantes universitários do país e um dos maiores do mundo”.
Repressão da dissidência
Especialista em liberdade de expressão, o advogado André Marsiglia opina que “sem dúvida, a fala do Dino aponta no sentido de possível perseguição do governo a ideologias de direita, inclusive se valendo da regulação das mídias para tanto”. Já “a fala de Barroso, mesmo não sendo em nome da instituição STF, mostra que se normalizou a crença de que ideologias de direita são sinônimo de ditadura ou de visão antidemocrática”. “Se a esquerda não reconhecer e legitimar a existência de uma direita no país, não haverá jamais uma democracia saudável. É muito ruim que ministros de Estado tenham essa visão tão estreita do processo político”, pontua.
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, o advogado Hugo Freitas afirma que Flávio Dino está transpondo o “argumento velhíssimo da esquerda” de suposto oligopólio – o que justificaria uma intervenção de regulação estatal – “para uma arena nova, que são as redes sociais, de uma forma totalmente disparatada”. “No Direito da Concorrência, o conceito de ‘haver muitos agentes atuando’ ou poucos (‘quatro ou cinco empresas’) tem a ver com o número de ‘centros decisórios’, não com o número de empresas. Como as redes sociais são neutras (em teoria) em relação ao conteúdo, não são ‘quatro ou cinco agentes’, são 200 milhões. Se 200 milhões de pessoas usam a internet e a direita sai na frente, isso é próprio da democracia: quem tem mais gente e mobilização ganha”, pontua.
Para Freitas, portanto, o discurso de Dino “é uma confissão do que todo mundo já sabia: antes, as redes sociais eram saudadas pela imprensa, eram tudo de bom, quando o Obama era o ‘mestre das redes sociais’, em 2008, quando teve a Primavera Árabe… Foi só chegar 2016, quando a direita ganhou tração, que começou o discurso de vilanização e censura das redes sociais”. Ele recorda que, nesse contexto, “o controle de grupo, a repressão de dissidência política, o uso da censura e da coerção estatal para promover o seu lado na política” sempre vêm disfarçados de combate a culpados: “a Rússia (que supostamente teria manipulado as redes pra favorecer o Trump), as fake news de zap, os robôs, o impulsionamento em massa de mensagens de zap ou de tweets”.
“Não preciso dizer que é autoritário usar a estrutura do Estado para reprimir as ideias da oposição política. O Brasil está claramente num processo de escalada autoritária, do qual o ministro Dino é o expoente mais explícito”, lamenta o advogado.
O advogado especialista em Direito Civil Miguel Vidigal recorda que na sessão de abertura da constituinte, em 1987, o então presidente do STF, Moreira Alves, destacou que “prudência e sabedoria” deveriam pautar a tarefa. “Não me parece que o ministro Barroso tenha agido com prudência e sabedoria na fala dele. Primeiro, porque se espera de um juiz a imparcialidade. Quando ele diz que ‘nós derrotamos’, ele se coloca como parte dentro de um processo. O Código de Ética da Magistratura, no artigo 8º, fala da imparcialidade que um juiz é obrigado a ter e exige que, para isso, se tenha distância das partes”, explica.
Vidigal analisa que “um juiz que se coloca como parte em uma contenda judicial, anula todo o processo”. “E o juiz que declara publicamente sua preferência política ou sua participação em processos ou movimentos políticos, declara sua parcialidade. Recentemente, tivemos a anulação do processo do presidente Lula, justamente porque, segundo a decisão do STF, houve parcialidade do juiz de primeira instância. Será que vão agir da mesma forma com os processos julgados pelo ministro Barroso em relação ao ex-presidente Bolsonaro e aos bolsonaristas?”, completa.
Hugo Freitas acrescenta que um dos aspectos mais preocupantes da fala de Barroso é sua “narrativa contínua” de militância desde o movimento estudantil, em 1986, até hoje. “‘Derrotamos a ditadura, derrotamos o bolsonarismo’. Não tem uma quebra de continuidade. Ele está dizendo que continua encarnando o mesmo papel de militante político em 2023, como ministro do STF, que tinha em 1986. Ele é que está fazendo o paralelo. E isso é preocupante, porque assumir o cargo de ministro do STF exige assumir uma postura diferente de antes”.
Assim, mesmo que não seja possível “fazer nexo direto com nenhuma atuação específica dele” em relação a Bolsonaro, “fica para a imaginação de cada um”. “A gente pode ficar imaginando que ele tinha motivação política quando fez x. É como aquela fala: não basta à mulher de César ser honesta, tem que parecer honesta”, ressalta.
Em nota, o STF afirmou nesta quinta-feira, que “como se extrai claramente do contexto da fala do Ministro Barroso, a frase ‘Nós derrotamos a ditadura e o bolsonarismo’ referia-se ao voto popular e não à atuação de qualquer instituição”. Por meio do Twitter, o ministro justificou, no fim da tarde de quinta-feira, que utilizou “a expressão 'Derrotamos o Bolsonarismo', quando na verdade me referia ao extremismo golpista e violento que se manifestou no 8 de janeiro e que corresponde a uma minoria”. “Jamais pretendi ofender os 58 milhões de eleitores do ex-Presidente nem criticar uma visão de mundo conservadora e democrática, que é legítima. Tenho o maior respeito por todos os eleitores e por todos os políticos democratas, sejam eles conservadores, liberais ou progressistas”, publicou.
A Gazeta do Povo entrou em contato com o Ministério da Justiça para obter um posicionamento sobre as falas de Flávio Dino, mas não houve retorno até o fechamento desta reportagem.