Um dia antes da retomada do julgamento sobre a criminalização da homofobia e da transfobia no Supremo Tribunal Federal (STF), suspenso há três meses, o Congresso Nacional reagiu à tendência que se forma no tribunal. Quatro ministros já votaram pela equiparação da discriminação contra homossexuais e transgêneros ao racismo, reconhecendo a omissão do Legislativo em editar legislação criminal para proteger a população LGBT.
Nesta quarta-feira (23), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou um projeto de lei, de autoria do senador Weverton (PDT-MA), para reformar a Lei 7.717/1989, a Lei de Racismo, que em sua redação original previa apenas a punição de “crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor”. Atualmente, a lei prevê punição para “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Pela proposta aprovada na CCJ, alguns artigos passariam a prever hipóteses de crime também em razão de discriminação “por sexo, orientação sexual e identidade de gênero”.
O relator da proposta, senador Alessandro Vieira (CD-SE), acrescentou a punição para quem “restringir a manifestação razoável de afetividade de qualquer pessoa em local público ou privado aberto ao público, ressalvados os templos religiosos”. O relatório foi aprovado por 20 votos a 1 e será votado mais uma vez, em turno suplementar na própria CCJ. Se não houver recurso, o texto seguirá direto para a Câmara, sem passar pelo plenário do Senado.
Um dos artigos da Lei 7.716/1989 modificado pelo projeto é justamente o que mais cria polêmica com lideranças religiosas: o artigo 20 prevê o crime de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” e passaria também a punir as mesmas condutas relativas “a sexo, orientação sexual e identidade de gênero”.
Leia também: Criando um tabu
O PL 122/2006, que chegou a ser aprovado pela Câmara e foi definitivamente arquivado pelo Senado em 2014, previa a mesma modificação, mas incluía a ressalva de que não se aplicaria “à manifestação pacífica de pensamento decorrente de atos de fé, fundada na liberdade de consciência e de crença de que trata o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal”, inserida pela ex-senadora Marta Suplicy, então no PT de São Paulo.
Na Câmara, lideranças da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e aliados avaliam que o projeto aprovado no Senado não tem condições de ser aprovado na casa. O que mais preocupa os deputados é a expressão “identidade de gênero”, que abre as portas para a ideologia de gênero, conjunto de ideias que tentam dissociar a identidade pessoal da identidade biológica dos indivíduos.
Os parlamentares entendem também que alterações na legislação que tenham impacto sobre a liberdade de expressão e de crença, mesmo se as manifestações religiosas forem excetuadas, são perigosas, porque "abrem espaço para interpretação judicial".
Leia também: Homofobia no STF, ativismo judicial e liberdade de expressão
O deputado Pastor Marco Feliciano (Pode-SP) chegou a apresentar um projeto, no início do mês, para reformar a Lei 7.716/2019, que passaria a prever hipóteses de discriminação por orientação sexual – mas não identidade de gênero –, ressalvados aqueles que “professarem visão discordante a determinado comportamento social, desde que a mesma se dê no contexto do uso regular dos direitos de liberdade de crença e de livre exercício dos cultos religiosos, e que não incite a prática de violência”.
O deputado, porém, retirou a iniciativa do projeto para que um novo texto de consenso seja apresentado. A tendência é que o projeto a ser protocolado não modifique a Lei 7.716/1989, nem preveja qualificadora do crime de injúria contra pessoas LGBT, para evitar conflitos com a liberdade de expressão e de crença. Os deputados pretendem focar nos crimes de homicídio e lesão corporal, para combater a violência.
Na Câmara, as lideranças envolvidas com o tema reconhecem que, mesmo nesse caso, o termo "identidade de gênero" não teria consenso. Uma opção seria trocá-lo por “pessoas transgênero”.
Na tarde desta quarta-feira (22), a FPE se reuniu com o presidente do STF. Os parlamentares têm a expectativa de que o Congresso possa votar um projeto de consenso antes que o tribunal termine o julgamento. Deputados da FPE já haviam se reunido com Toffoli no dia 12 de fevereiro, véspera do início do julgamento, para ver se seria possível retirar o tema da pauta da corte, mas Toffoli manteve o calendário.
Como está o julgamento no STF
A última vez que o Supremo esteve reunido para discutir o assunto foi no dia 21 de fevereiro, na quarta sessão plenária dedicada ao tema. Naquela ocasião, o julgamento foi encerrado com quatro votos reconhecendo a omissão do Poder Legislativo em criar legislação que proteja a população LGBT e favoráveis à equiparação da homofobia e da transfobia ao conceito jurídico de racismo, suprindo essa lacuna.
O relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, ministro Celso de Mello, que inaugurou a posição do tribunal, argumentou que os incisos XLII (“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”) e XLI (“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”) do artigo 5º da Constituição são “mandados expressos de criminalização, tendo em vista os bens e valores envolvidos”.
Convicções da Gazeta: Liberdade de expressão
Diante da omissão do Congresso em editar legislação criminal, Mello defendeu que o STF teria duas opções: ou a "certificação do Congresso Nacional para que adote as medidas necessárias para efetivação da norma constitucional” ou o “reconhecimento de que homofobia e transfobia, quaisquer que sejam as formas pelas quais se manifestam, enquadram-se, mediante interpretação conforme da Constituição, na noção de racismo”.
Citando precedentes de outros casos mais recentes, em que o STF adotou uma postura mais ativista, Mello chamou a demora do Congresso de “irrazoável” e “abusiva” e propôs que, enquanto o Legislativo não adotar uma legislação específica, a discriminação por “orientação sexual” e “identidade de gênero” seja considerada racismo para fins de aplicação da Lei 7.716/1989, que atualmente prevê uma série de crimes de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
O ministro Edson Fachin, relator do Mandado de Injunção (MI) 4.733, segui a mesma posição, lembrando que, sem legislação específica, “a omissão legislativa estaria a indicar que o sofrimento e a violência dirigida a uma pessoa homossexual ou transexual é tolerada, como se fosse uma pessoa não digna de viver em igualdade com as demais”. Alexandre de Moraes e Roberto Barroso acompanharam a posição de ambos os relatores.
Controvérsia nos dados
A principal fonte de estatísticas sobre a violência contra a população LGBT, citada inclusive pelos ministros do STF em seus votos, é o levantamento anual do Grupo Gay da Bahia (GGB), produzido há 39 anos e que este ano foi colocado em dúvida por uma revisão de pesquisadores independentes. Em entrevista à Gazeta do Povo em março, o antropólogo Luiz Mott, fundador do GGB, reconheceu o problema, mas creditou-o à falta de dados oficiais – atualmente, o governo não organiza nenhum levantamento oficial. O que mais se aproxima os números do Disque 100, que recebe denúncias de violações de Direitos Humanos.
“Nós somos os primeiros a reconhecer que nosso levantamento é incompleto, porque não é feito por órgãos oficiais, que deveriam ter acesso aos relatórios anuais das delegacias de polícia, dos fóruns dos estados, dos fóruns municipais, das secretarias de segurança pública e de direitos humanos”, afirmou Mott. “É claro que há dados contraditórios, às vezes equivocados, mas não chegam a 5%”, disse ainda.
O problema é que a revisão independente encontrou equívocos bem maiores que os 5%. O grupo de pesquisadores checou cada um dos 347 casos contabilizados como morte homofóbica no levantamento de 2016, usando a mesma metodologia do GGB: o recurso a notícias de jornal e internet. A conclusão do grupo é que em 49,2% dos casos a informação é inconclusiva, em 38,8% não houve motivação homofóbica nas mortes, o que só foi observado em 12% dos casos.
Leia também: Por que o caso de um confeiteiro virou um debate fundamental sobre liberdade de expressão
Em entrevista à Gazeta do Povo, o biólogo Eli Vieira, homossexual que já questionou o pastor Silas Malafaia por ter afirmado que boa parte dos homossexuais tinha histórico de abusos na infância, explicou que há várias inconsistências metodológicas no levantamento.
“Apesar do relatório se referir ao Brasil, estão incluídos seis casos de mortes no exterior. Há alguns casos duplicados. Em alguns casos descobrimos uma leitura incompleta do relato jornalístico: por exemplo, um casal heterossexual supostamente viciado em drogas foi assassinado por um traficante no Ceará. Aparentemente, o caso foi incluído pelo GGB somente porque a manchete omitiu o sexo da mulher, dando a entender erroneamente que poderia ser um casal gay”, disse.
Os organizadores do levantamento defendem que a inclusão de certas mortes, como suicídio, se justifica porque a homofobia no Brasil é “estrutural” – raciocínio também aceito pelos ministros. A revisão, contudo, contesta esse raciocínio circular: “Casos incertos foram incluídos nos dados porque a homofobia é estrutural. A homofobia é estrutural porque esses dados mostram”.
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Quem são os indiciados pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado
Bolsonaro indiciado, a Operação Contragolpe e o debate da anistia; ouça o podcast
Seis problemas jurídicos da operação “Contragolpe”
Deixe sua opinião