Alexis de Tocqueville parece ter sido o primeiro a chegar a conclusão que a política é a arte do equilíbrio e do bom-senso.| Foto: Reprodução/ Wikipedia
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Duas das características mais negligenciadas no conservadorismo moderno são a observação atenta dos fatos e o abandono da política como salvação social – coisas nas quais se destacaram pensadores como David Hume (1711-1776), Edmund Burke (1729-1797) e Gilbert Keith Chesterton (1874-1936). Os expoentes conservadores, de maneira unânime até os dias atuais, observaram a história política e guardaram certo ceticismo frente a todas as pautas que prometeram resolver quase que magicamente as aporias metafísicas, éticas e econômicas da humanidade com métodos e cartilhas pré-assadas.

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O processo de olhar para a realidade tal como ela é e, na medida do possível, interpretá-la fidedignamente ante os arquivos do passado, as inovações do presente e as possibilidades do futuro marcou as primeiras análises “conservadoras” justamente porque esses críticos e analistas não se apegavam de maneira irracional aos dogmas tradicionalistas e nem aos mandatos revolucionários que atuavam como óculos ideológicos diante da realidade. E, se olharmos pela janela da história sem o bobo entusiasmo dos progressistas nem o alarmismo dos tradicionalistas, seremos então céticos quanto às receitas pré-definidas para um mundo perfeito, mas esperançosos quanto as possibilidades de, na medida do possível, melhorá-lo.

Ainda sobre o pensamento conservador, muitos dos seus expoentes falaram sobre o passado e alguns sobre o futuro, ao criticarem as sandices pré-programadas pelo progressismo. Mas foram poucos os que pararam para observar os fatos no presente, isto é, a história que está acontecendo agora. Poucos se questionaram sobre quais seriam as fibras que trançam as camadas de cada ideia e impulso que forma todo o tecido sócio-político.

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Um dos poucos ― repito, poucos mesmo ― a fazer isso foi Alexis de Tocqueville (1805- 1859), o historiador francês que fez de suas ideias e ciências um binóculo agudo apontado para a nova democracia advinda do iluminismo do século XVIII e XIX.

Baseando-se em observações in loco do desenvolvimento democrático norte-americano, o visconde de Tocqueville extraiu vários insights filosóficos que, até hoje, compõem o esqueleto acadêmico das observações sociológicas e filosóficas referente à democracia. Por exemplo, a filósofa francesa Simone Goyard-Fabre, catedrática em Filosofia do Direito em Caen, considera Tocqueville um dos principais teóricos da democracia moderna, ao mesmo tempo em que destaca que as críticas do visconde se tornaram, até hoje, uma das mais profundas e cortantes ao sistema.

Justamente por estar pautado pela observação primária, Tocqueville conseguia exprimir uma paixão contida pela democracia ― advinda das revoluções pregressas que deram origem à democracia moderna ― e, ao mesmo tempo, temperar o caldo analítico com profundas considerações críticas que alimentam até hoje os principais críticos de tal sistema moderno advindo dos seios inglês, francês e americano.

Origens aristocráticas

Alexis-Charles-Henri Clérel, mais conhecido como Alexis de Tocqueville, ou visconde de Tocqueville, é filho de Hervé Louis François Jean Bonaventure Clérel (1772-1856), conde de Tocqueville e de Louise Madeleine Le Peletier de Rosanbo (1771-1836), ambos de famílias aristocráticas com forte teor intelectual, jurídico e patriótico em relação à França de Luís XVI.

Hervé de Tocqueville tinha fortes ligações com a monarquia de Luís XVI e chegou a se alistar no exército que tinha por missão defender a família real das investidas dos jacobinos. Ele foi preso pelos revolucionários e quase morto, sendo poupado somente poucos dias antes da data marcada para a sua execução e foi solto por ocasião da prisão de Robespierre.

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Ele é ainda bisneto de Chrétien Guillaume de Malesherbes (1721-1794), magistrado que atuou no conselho que condenou o Rei Luís XVI à morte. A esperança dele era salvar o Rei, que também era seu amigo pessoal. Além disso, Alexis de Tocqueville era cunhado de François-René de Chateaubriand, o visconde de Chateaubriand, que tardiamente seria considerado o precursor do pré-romantismo na França e ensaísta expoente do tradicionalismo pós-Revolução da Bastilha.

Alexis nasceu em 29 de junho de 1805, numa época tão incerta e socialmente tortuosa que faria a aristocracia logo se misturar em várias camadas aos demais cidadão comuns, se não nos modismos, com certeza nas novas tradições e imposições legislativas. Na infância, Alexis assistiu às guerras napoleônicas (1803-1815). Posteriormente, à restauração da monarquia de Luís XVII, que durou até 1824, sendo esse último sucedido por Carlos X e logo derrubado, em 1830, por Luís Felipe.

No mesmo ano, ele entrou para a Câmara dos Deputados. Apesar da origem aristocrata, suas posições se mesclavam entre as duas posições radicais daquele tempo. A democracia aberta e igualitária era uma necessidade humana, um impulso da história que não era refreável. Mas Tocqueville, agora magistrado e deputado federal, destacava ainda que a igualdade democrática deveria ser misturada à prudência filosófica para não descambar na pura e simples tirania. Para ele, apesar de a busca pela igualdade social ser um dever, há coisas, como o talento e o intelecto, que jamais serão iguais e que forçá-los a isso seria conclamar a sociedade à mediocridade.

Em 1830, Tocqueville viajou aos Estados Unidos para observar o movimento democratizante que alí dava o ar da graça. Tal investida lhe renderia a mais profunda imersão filosófica na democracia real, se afastando por ora da pura ideia iluminista francesa. A obra escrita por ele, após retornar da viagem em 1832: A democracia na América, lhe rendeu um lugar na Academia Francesa e em demais representações políticas e intelectuais do país, além do título de historiador da democracia, o que espalharia para o mundo como a sua principal placa.

Após a proclamação da Segunda República (1849-1852) por Luís Napoleão (1808-1873), Tocqueville assumiu o posto de ministro das Relações Exteriores até o golpe perpetrado pelo mesmo Luís Napoleão, em 1852. Neste ano, ele pediu demissão e escreveu O antigo regime e a revolução que, junto à Reflexões sobre a revolução na França, de Edmund Burke, seria a obra mais influente sobre a revolução durante as décadas subsequentes e, ainda hoje, é obra obrigatória na maioria das grandes universidades humanísticas.

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Alexis de Tocqueville morreu em 16 de abril de 1859, em Cannes, em decorrência de uma tuberculose que o perseguiu desde 1850. A sua obra seria eternizada e estudada, por progressistas e conservadores. Ele ainda hoje é reverenciado como o primeiro teórico-ativo, o que até então, no mundo francês. parecia uma antinomia clara, mas que no mundo inglês o fazia se aproximar do grande Edmund Burke.

Observando as mudanças

“Somente os bárbaros não têm curiosidade em saber de onde vieram, como chegaram a ser o que são, aonde parecem estar indo, se desejam rumar nessa direção e, se querem, por quê, e, se não, por que não”. Essa frase, tirada de um ensaio de Isaiah Berlin, pode bem amalgamar o pensamento de Alexis de Tocqueville por ocasião da sua missão de desvendar os motivos de tantas mudanças sociais em seu tempo. Essa é a missão presente em seus dois livros mais famosos. O antigo regime e a Revolução e A Democracia na América. Agora a missão era além-mar, nas terras norte-americanas.

A principal obra intelectual de Alexis foi uma investigação filosófica sobre o que constitui a tal democracia popular, tão aclamada por iluministas e plebeus, por filósofos e até alguns clérigos, por reformistas e revolucionários, em meados do século XVII, XVIII e XIX. As mudanças políticas estavam em curso e a verdade é quem ninguém sabia ao certo quais seriam os resultados gerais de uma mudança tão profunda no seio popular e histórico de um país como a admirada França.

A Europa via, desde o advento do Renascimento, o reaquecimento de ideias nas artes, arquitetura, filosofia e política e, com isso, a ideia de república e democracia voltaram às bocas dos filósofos europeus. Isso, seguido da clara mudança no modo de pensar filosofia e política, que se aproximava de uma independência quase que total da teologia católica e protestante, gerou três grandes certezas.

A primeira é que a razão social depende tão somente dos indivíduos ― cogito ergo sum. Ou seja, a realidade fundante está em mim. Depois, a razão humana é capaz de compreender toda ― ou a necessária parte da ― composição da realidade e, se a compreendo de maneira abrangente, temos a terceira certeza: sou capaz de manejar e modificar a realidade como bem entender.

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Os iluministas ― principalmente os franceses ― estavam crentes de que poderiam modificar a realidade política e, com certo grau de violência, moldá-la tal como os intelectuais despachavam de seus gabinetes e universidades. No entanto, esse movimento de pensamento abstrato para a realidade era algo que não parecia tão real para Alexis de Tocqueville. Lembremos, o visconde de Tocqueville era naturalmente da aristocracia e, com certeza, ele se adaptou à realidade cultural nobre assim como aprendeu os ditames morais da sua classe por meio das convenções sociais.

Para Alexis, era natural que a realidade política nascente e o contexto social e moral dessem os filetes a serem investigados, e que aos poucos tais problemas se vissem sanados, vencidos ou ao menos mais conhecidos pelo caminhar seguro das experiências e da justa inteligência comunitária, e não a partir de qualquer pensador em específico que jurava possuir o remédio para todas as doenças políticas de seu tempo.

Por isso, para Tocqueville, era indispensável que se investigasse a democracia por meio dos arroubos naturais do próprio movimento democratizante, e não a partir de imposições intelectuais e revoluções construídas violentas. Sobre isso, escreve a historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb:

“A Revolução Francesa não foi uma revolução social, e o terror foi instituído não por compaixão para com os pobres, mas por propósitos de 'segurança pública', a segurança do regime. Le peuple, em cujo o nome Robespierre estabeleceu a república, não era o povo no sentido ordinário, ainda menos les misérables, mas um povo singular e abstrato, representado por uma vontade geral apropriadamente singular e abstrata”.

Viagem aos Estados Unidos

Ao chegar nos Estados Unidos, em 1830, Tocqueville sentiu ainda o cheiro de pólvora misturado ao entusiasmo patriótico de um povo compostos, em sua maioria, por religiosos, ruralistas e aventureiros, indivíduos que ainda ostentavam cicatrizes e certo louvores calvinistas em suas paróquias. Ele percebeu que a democratização, em curso desde 1783, com a assinatura do tratado que dava a independência aos Estados Unidos, era algo estupendo e completamente novo. Afinal no país com uma herança completamente diversa da tradição francesa ― como bem afirma Gertrude Himmelfarb em Os caminhos para a modernidade: os iluminismos britânico, Francês e Americano ―, a democracia ali nascente traria certo ar de selvageria política, virgindade filosófica e, talvez, rudeza elementar frente aos teores abstratos da democracia francesa.

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Os americanos traziam em suas constituições um imaginário cultural completamente diverso do que rondava o universo francês. Dizia Himmelfarb:

"O contraste com a França estava implícito. Em busca de uma fuga das paixões religiosas do Velho Mundo, os americanos não se voltaram, como os franceses, contra a própria religião. Em vez disso, eles incorporaram a religião, em quase todos os graus e variedade, nos costumes da sociedade. Eles 'moralizaram' e 'socializaram' a religião, mesmo quando observavam os rituais e dogmas de suas igrejas particulares ― ou mesmo quando não observavam tais rituais e dogmas".

Para entender a democracia dos Estados Unidos, a primeira coisa que Tocqueville percebeu é que precisaria abdicar das correntes e dogmas culturais do iluminismo francês. A religião cristã, para os americanos, era o arrimo republicano, a própria manteiga que unta a forma para que o bolo possa ser bem assado. Como vemos, novamente, com Gertrude Himmelfarb: “A religião seria 'a primeira de suas instituições políticas' porque era o pré-requisito tanto da liberdade quanto da moralidade -- assim como do próprio governo republicano”.

E isso fará toda a diferença na análise do francês pois, para Alexis, há uma tensão natural entre a igualdade e a liberdade, esteios necessários em qualquer democracia, mas que necessariamente se repelem mutuamente. No entanto, na democracia americana parecia haver uma complementariedade entre o individualismo de estilo quase lockeano e a igualdade de princípios quase francês.

E, de alguma maneira, isso tem a ver com o estilo advindo da própria Sola Scriptura e Sola Fidei, heranças do luteranismo e do calvinismo europeu que dotaram cada indivíduo de uma capacidade única de discernimento e individualidade perante aos outros. O protestantismo, ainda que mantenha certo caráter comunitário, crê que as raízes da salvação estão em um poder além da compreensão dos homens, cabendo a eles apenas viverem em um certo conformismo e modéstia ante a realidade de Jesus Cristo e seus ensinamentos ― pois a salvação vem pela justificação de Deus e de maneira individual.

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Tudo isso coloca a cultura americana ante um individualismo de termos, pois ao homem cabe se conformar e ao mesmo tempo que resguardar diante de sua fé. Ao mesmo tempo, essa cultura dota o indivíduo de autonomia na sua complacência, isto é, sob certos direitos ― que são antes divinos do que humanos ― como o direito de propriedade, autodefesa e o de educar sua prole.

Ao mesmo tempo, o cristianismo, em sua faceta comunitária, nos força a abdicarmos forçosamente de nossas posições individualistas confortáveis e agir com caridade comunitária a fim de evidenciar os frutos de nossa salvação. A salvação, segundo Calvino, é determinada, e não conquistada. Dessa forma, a fim de reafirmar psicológica e socialmente as suas salvações, com o intuito de cumprir os mandatos do Evangelho, os indivíduos se tornavam comunidades nas paróquias e nas livres ações comunitárias. Na comunhão comunitária, então, refirmavam individualmente a todos os frutos das suas salvações. A igualdade e a liberdade em plena comunhão ― o que era de certa forma assustador para a herança católica de Alexis de Tocqueville.

A Carta de Direitos dos Estados Americanos, formado pelas dez primeiras emendas da constituição americana, dão conta de mostrar como a igualdade americana se tornava ímpar em comparação com as demais democracias insurgentes. No artigo 1º, por exemplo, lê-se: “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos”.

Ainda que a igualdade esteja implícita no aparato da liberdade, o fundo original, dizia Alexis, é a igualdade mesma e não a liberdade. A igualdade, segundo o francês se mostra como o sentido mesmo de democracia, aquilo que cria seus arcabouços de costumes, leis e regras morais.

Se uma constituição garante que todos são livres, de maneira implícita ela afirma que todos têm os mesmos direitos sob aquela tutela legal. Mas no caso dos Estados Unidos o que os destaca das demais culturas democratizantes está no apelo central contra a centralização de poder, um processo inverso do que houve na França e talvez por isso tão observado por Alexis.

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No segundo artigo da Carta de Direitos dos Estados Americanos, lê-se: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido”. Ou seja, a garantia constitucional: a) da possibilidade de formação de milícias caso haja abuso do poder central; b) e do direito inalienável de posse/porte de armas pelos cidadãos como medida não de segurança pessoal (pelo menos não em um primeiro instante), mas como garantia política de autopreservação democrática ante a possíveis tiranias.

Veja, pois, que a igualdade, apesar de figurar como a matriarca da democracia, e aqui falando no contexto cultural da mentalidade americana, só faz sentido com a conjunção da liberdade individual. Podemos dizer, assim como percebeu Alexis de Tocqueville, Gertrude Himmelfarb, Isaiah Berlin e Naill Furgson, entre outros, que a democracia americana se faz igualitária quando pede licença para ser individualista. O que é uma certa antinomia de termos para Alexis de Tocqueville, como veremos no próximo tópico.

Por fim, a viagem de Tocqueville aos Estados Unidos mostra a ele o crescimento de uma democracia orgânica, com fundamentos fortemente religiosos e com um imaginário político baseado no que Edmund Burke denominou de “pequenos pelotões”. Isto é, na common law, nos costumes e experiências do populacho, nas riquezas morais adquiridas por meio dos testes naturais do tempo e não por meio de laboratórios sociológicos ou teorias racionalistas.

Em seu sentido ético-cultural, e não somente jurisprudencial, os americanos confiavam mais nas soluções caseiras, se remetendo ao Estado somente em casos não negociáveis. Se a França olhava para o Estado como via de manutenção e imposição de igualdades, os americanos olhavam para o Estado com eterna desconfiança ― e historicamente tinham motivos para tal. O papel do Estado é garantir a igualitária liberdade para os cidadãos, e não forçá-la, impô-la.

Para os americanos, mais importante do que dominar via jurisdições todos os aspectos rebeldes e problemáticos de um país era deixar com que as próprias mãos comunitárias tivessem a chance de solucionar as aporias por meio dos costumes e moralidades intrínsecas às comunidades. Cabe salientar que seria um erro ― como apontou o próprio Alexis de Tocqueville no segundo livro de A Democracia na América ― pensar que a democracia americana é individualista e que não versa sobre o coletivo.

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Vejam o artigo 9º da já referida Carta dos Direitos: “A enumeração de certos direitos na Constituição não poderá ser interpretada como negando ou coibindo outros direitos inerentes ao povo”. O sentido de povo elimina, segundo Alexis, a pura junção tribal ou anárquica da população americana. Os cidadãos dos Estados Unidos da América são um povo, e isso quer dizer que eles compartilham culturas semelhantes, uma linguagem unificadora, uma religião mais ou menos unânime e sentidos experenciais aglutinadores ao redor de um território determinado. Os americanos são um povo e isso dá a cada indivíduo uma cola que o gruda aos demais. Geralmente isso é chamado, por lá, de patriotismo.

Alexis, agora em seu livro Antigo Regime a Revolução (e por isso se trata de um Alexis de Tocqueville mais maduro do que escreveu A Democracia na América), parece entender que a diferença entre as revoluções americana e francesa está no pragmatismo, no teor de realidade que se sobrepõe, no caso americano, ao abstratismo francês. Ele assim escreve: “Os americanos pareciam apenas executar o que nossos escritores haviam concebido, como se dessem a substância de realidade àquilo que sonhávamos”.

A democracia real e a democracia sonhada

Alexis de Tocqueville argumenta que há uma tensão nas entranhas da democracia, a tensão entre os dois pilares que sustentam a própria: liberdade e igualdade. Para ele, é aqui que jaz todo o debate real que deve ser travado sobre a democracia. Até onde devo levar a igualdade de condições para afirmar que há uma democracia real e até que ponto devo permitir a liberdade individual a fim de que ela não interfira na igualdade democrática?

Para o francês, a igualdade é o impulso fundador da democracia, e isso se dá por motivos óbvios: o que levou os indivíduos a buscarem um novo modelo de governo baseado nos cidadãos em geral, e não num grupo de líderes ungidos e gloriosamente nascidos, foi a falta dessa igualdade básica no trato de assuntos públicos que a todos, de alguma maneira, tocavam. O que é um tanto quanto discutível, cabe salientar, pois o impulso para a criação monarquia parlamentarista inglesa foi justamente o autoritarismo da monarquia absoluta de James II. Por isso mesmo, a virtude inicial da Revolução Gloriosa, que depois traria uma democratização lenta ao Reino Unido, foi antes a liberdade e não a igualdade.

A desigualdade, para Tocqueville, era o dissabor que levava a população a abandonar as taças das monarquias absolutistas. No entanto, diz Alexis, há um fator complicador que indistintamente compõe esse panorama: se não há igualdade para todos, naturalmente não haverá liberdade para todos. E, se o que se busca é igualdade, em algum momento haveremos que nos deparar com os limites da própria liberdade.

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No livro primeiro de A Democracia na América, Alexis afirma que as sociedades democráticas buscam a igualdade a fim de que todos tenham acesso ao aparato social de maneira abrangente. Mas a igualdade traz dois problemas internos. O primeiro deles é o problema da maioria. O francês afirma que a democracia sempre tenderá a composições de governo segundo a vontade da maioria, excluindo ou marginalizando setores e partes da sociedade que não conseguem compor maioria e, dessa maneira, na busca democrática por equalizar os tratos e as condições, a democracia acaba tendo certo teor aristocrático. Uma aristocracia agora não estruturada a partir de riquezas, hereditariedade ou postos, mas a partir da participação da maioria. A isso ele chamaria de “ditadura da maioria”.

Há um conteúdo interno de justiça democrática que impossibilita, por exemplo, que a maioria seja governada pela vontade da minoria. Afinal, isso seria como cair novamente nos vícios do velho regime. Entretanto, seguindo a vontade da maioria, a igualdade democrática se torna débil se pensarmos no todo. Como resolver isso?

O segundo problema é a tendência natural que há na massificação social e na tirania como modelo de imposição de igualdades. Tocqueville previu a possibilidade de a própria democracia levar ao cabo, de maneira radical, a missão de equalizar todos em modelos pré-definidos de cidadãos, gerando uma espécie de uniformização na mediocridade. As desculpas para tal são as mais variadas, desde questões sócio-culturais até as econômicas. Na busca por criar uma igualdade de condições, dizia Tocqueville, pode-se criar uma igualdade medíocre, baseada na inaptidão ― o único patamar onde o nivelamento impositivo pode colocar a sociedade.

Para tal questão, o insight de Tocqueville era evidente: não há como homogeneizar o talento, a inteligência e a competência. Tais questões, para o visconde, parecem ter a origem em Deus ou na natureza. E eu acrescentaria aqui: na abnegação e no esforço. Esses penduricalhos de caráter, que não podem ser amalgamados e repassado à multidão, geram uma desigualdade natural entre os homens. Cada indivíduo parece formar seu próprio composto único. Uma tremenda pedra no sapato da necessária igualdade democrática.

Mas Tocqueville piora o panorama quando ele vislumbra a questão econômica em relação à liberdade individual, afirma o francês que se a competência, a aptidão e a inteligência não são igualitárias ― e de fato não são ―, a frustração dos indivíduos são fatores certeiros dentro de uma sociedade, seja ela democrática ou não. Ora, aqueles que possuem maiores habilidades e competências tendem a ter maiores poderes e riquezas, enquanto aqueles outros menos capazes, tendem à miséria ou à massificação entre os “normais”. O bem-estar social está fadada ao fracasso. O que Tocqueville destaca é que a democracia, por fim, não é capaz de garantir a felicidade e nem de salvaguardar a própria liberdade que é seu fundamento primeiro. Em palavras mais exatas, o historiador francês não acredita que o projeto teórico de uma democracia de cunho iluminista seja algo plenamente realizável; ainda que ele mantenha sua quase-devoção ao aparato democrático como tal.

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Desromantização da democracia

Dessa forma, Alexis de Tocqueville “desromantiza” e diminui as pretensões utópicas da democracia iluminista. A democracia, apesar de ser o modelo sócio-político mais adequado à possível igualdade e à possível liberdade humana, não é nem de perto um modelo perfeito e sem manchas. Quando Tocqueville não continua a jogar purpurinas nas teorias democráticas dos filósofos, dando um banho de realidade e prudência ante as pretensões da teoria democrática, ele retira do seio rousseauniano toda herança religiosa que há na civilidade política da França iluminista.

Lembremos que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teorizou que uma sociedade harmoniosa dependeria de uma religião civil que lhe desse abnegação e sacrifícios. Alexis de Tocqueville tira dos ombros da democracia o peso de ser religiosa e, consequentemente, de portar certo teor de salvação ante a realidade humana. A política não é via de libertação metafísica e nem mesmo de redenção social, afirma o francês. A política é um campo de equilíbrio e ponderações, de regulamentações e possibilidades, e não de utopias e sonhos academicistas. Se a democracia é o melhor sistema (e realmente parece ser), ela não depende exatamente de ativistas e militantes, mas de pessoas temperadas e constantemente prudentes.

O visconde de Tocqueville, assim, derruba toneladas de realidades sobre as pretensões francesas de redenção a partir da política. Ele coloca a democracia e a política em seu devido lugar na história do homem, devolvendo à análise social o devido fulgor da temperança. Alexis de Tocqueville antecipa o que depois seria o dilema conservador de Russell Kirk (1918-1994): a política é regida pela virtude da prudência, a política é o manejo das possibilidades e não das utopias.

Assim, Alexis inaugura o esteio da prudência e a virtude da temperança como meios analíticos da política, abdicando de ideologias e sonhos sociais ao pautar a realidade comunitária de um grupo ou uma nação no equilíbrio entre igualdade e liberdade. A política se torna, então, a via do meio, a opção que foge aos extremos, que não abraça o individualismo anárquico e nem se abandona no igualitarismo fraticida.

Alexis de Tocqueville parece ter sido o primeiro francês, pós Revolução, a chegar à conclusão que a política é a arte do equilíbrio e do bom-senso.

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