A luxuosa loja envidraçada de seis andares, que lembra a famosa Saks, da novaiorquina Quinta Avenida, é um dos ícones de Las Mercedes, a “pequena Manhattan de Caracas”, na zona leste da capital da Venezuela. O cenário composto por itens de grifes famosas, como Gucci, Versace, Balenciaga e Dolce Gabana, perto de restaurantes badalados e carros importados nas ruas (em 2021, inclusive, uma concessionária da Ferrari foi inaugurada nas imediações), em nada faz lembrar um país cujo salário mínimo beira U$$ 5 (menos de R$ 25). Enquanto três em cada quatro venezuelanos não têm dinheiro sequer para cobrir os gastos com a cesta básica, uma pequena parcela da população ostenta hábitos luxuosos no bairro, que tem dezenas de cassinos e uma intensa vida noturna.
Inaugurada em novembro, a Galeria Avanti pertence a um empresário palestino-venezuelano e comercializa artigos sofisticados como uma televisão Samsung de US$ 110 mil (valor suficiente para pagar o salário mensal de 22 mil trabalhadores do país), que chegou a gerar lista de espera. No Instagram da loja de departamento, que conta com um pianista para entreter os clientes durante as compras, é possível conferir os preços de alguns itens, como um par de tênis feminino de US$ 250 (R$ 1.240), uma caçarola de US$ 94 (R$ 466) ou um tônico pós-barba de US$ 80 (R$ 397).
Nos arredores, empreendimentos futuristas, casas noturnas luxuosas e restaurantes caros, como um inaugurado recentemente, suspenso em um guindaste e que dá vista para a cidade, completam o cenário dos privilegiados da ditadura de Nicolás Maduro. O serviço de caminhar virtualmente pelas ruas com a ferramenta Google Street View não é ativado no país, mas é possível acessar algumas fotos panorâmicas e em 360 graus da região de Las Mercedes pelo Maps.
A Venezuela está ao lado de países latinos como Paraguai, Suriname, Guiana e Guiana Francesa que não autorizam a instalação da ferramenta de visualização das ruas. Fora do continente, Turquia, Áustria, Índia e Alemanha também estão na lista dos que vetam o serviço do Google, por motivos de segurança e privacidade.
Bolha dentro da bolha
Até o início do século 20, o bairro era majoritariamente residencial, formado por algumas casas de dois andares. As lojas e restaurantes começaram a ganhar espaço em Las Mercedes a partir do fim dos anos 1990, que aos poucos se consolidou como a “zona rosa” da capital, um local de diversão e compras para a elite bolivariana.
"Las Mercedes era uma bolha dentro de uma bolha", disse à BBC o prefeito de Baruta, Darwin González, região de Caracas onde fica o bairro. Oposicionista de Maduro, ele garante que há "vários anos" não recebe relatos de crime na região, em oposição a Caracas, uma das cidades mais violentas do planeta. Um relatório do Observatório Venezuelano da Violência (OVV) relativo a 2021 apontava a taxa de mortes violentas em 77,9 por 100 mil habitantes no Distrito Capital de Caracas, o dobro do índice de Cali, a cidade mais violenta da Colômbia, e sete vezes mais do que Bogotá e Medellín. Venezuela e Honduras são, de acordo com o levantamento, os países mais violentos da América Latina.
O skyline do bairro é composto de projetos arquitetônicos colossais, como a Torre Sena, composta de 19 andares dedicados a escritórios de luxo, e o Centro Financeiro Madrid, com 30 mil metros quadrados de área total. Entre os arranha-céus em construção em Las Mercedes está o Skypark, de 38 andares (com telão externo para publicidade, como o da Times Square, em Nova York), onde será inaugurado um hotel, além de apartamentos particulares e pontos comerciais.
Em 2021, uma reforma de Nicolás Maduro permitiu a abertura de cassinos na Venezuela, até então proibidos por Hugo Chávez, que os considerava equivalentes à prostituição e às drogas na deterioração da sociedade. A reportagem da BBC conversou com um jovem de 21 anos, moradora de um bairro pobre no outro extremo da cidade, que foi a Las Mercedes apostar em um caça-níqueis do cassino do hotel Tamanaco, estabelecimento cinco estrelas situado no ponto mais alto do bairro. Um pernoite para um casal, com café da manhã, custa quase R$ 1.000 no estabelecimento, de acordo com o Booking.
"Não havia comida em casa porque minha mãe perdeu o emprego recentemente, por isso vim tentar a sorte", disse o jovem, depois de apostar US$ 50 (R$ 248), ganhar US$ 100 (R$ 496) e seguir apostando. "No oeste de Caracas, também existem cassinos, mas gosto mais de Las Mercedes. É como estar em outro país", contou.
Contrastes
Embora o ditador Nicolás Maduro venha se gabando da melhoria nos índices de inflação no país (a economia cresceu 15% em 2022, em relação ao ano anterior), economistas alertam tratar-se de um crescimento enganoso, já que vem após anos de profundas quedas. Ainda que a pobreza também tenha diminuído pela primeira vez em sete anos (cerca de metade dos venezuelanos vivem na pobreza atualmente, contra 65% em 2021), a Venezuela está entre os países mais desiguais do mundo, sendo o mais desigual das Américas, segundo a Pesquisa sobre Condições de Vida na Venezuela (Encovi), uma espécie de censo venezuelano.
Atualmente, os 10% mais ricos ganham 70 vezes mais que os 10% mais pobres. O nível de desigualdade venezuelano é comparável a nações africanas profundamente desiguais, como Namíbia, Moçambique e Angola. Segundo reportagem escrita pelo jornalista venezuelano Tony Frangie-Mawad para a revista americana Foreign Policy, “mesmo que tenha caído, a pobreza ainda é abismal. É comparável aos piores anos da crise humanitária, quando a escassez de alimentos foi generalizada, a hiperinflação devastou os salários e os venezuelanos estavam perdendo uma média de 11 quilos por ano".
Uma professora universitária de direito entrevistada por ele, com 32 anos de experiência, recebia cerca de R$ 35 a cada duas semanas, valor “pago em bolívares, que desvalorizam rapidamente”.
Segundo a Datanálisis, há quase dois milhões de ricos venezuelanos (a classe alta representa 2% da população do país e a média-alta, 4%). Entre os frequentadores de Las Mercedes, estão pessoas que ganham dinheiro em setores que voltaram a crescer, como comércio e construção, e gastam com luxos por medo de que seus recursos sejam congelados. A BBC destaca que também há empresários e políticos ligados ao governo, que sofreram sanções e ficaram impedidos de gastar suas fortunas no exterior, além de dinheiro de corrupção circulando no bairro - a Venezuela está entre os quatro países mais corruptos do mundo, no Índice de Percepção da Corrupção (IPC) de 2021, divulgado pela organização Transparência Internacional.
Os chamados boliburgueses são aqueles que enriqueceram ao manter íntimas relações com o chavismo (primeiro com Hugo Chávez, entre 1999 e 2013, depois com Maduro). Além de frequentar restaurantes caros, usar roupas de grife e dirigir carros importados no país, eles também ostentam no exterior. Em 2018, pelo menos 7 mil apartamentos de luxo na capital da Espanha pertenciam a venezuelanos. “Nos fins de semana os lugares mais luxuosos, os restaurantes mais caros estão sempre cheios. Há locais onde não se sabe de crise alguma”, diz a jornalista Daisy Galaviz, do portal venezuelano El Pitazo. “Chávez e Maduro desapareceram com quase toda a classe média, mas tem gente que ainda vive muito bem, que consome produtos importados e movimenta milhões de dólares”, completa.