A filosofia moral greco-cristã mostra que o que nos separa dos demais animais são os nossos freios éticos e escolhas racionais diante de situações complexas; situações essas que exigem de nosso raciocínio ético uma resposta rápida e satisfatória. Porém, não basta ser somente “satisfatória” e “utilitária”, a resposta também precisa ser coerente com o complexo civilizacional das moralidades sociais que nos cercam e nos fazem ser mais do que meros transloucados brincando de The Sims na vida real.
Em condições normais, um cachorro faminto não pode refrear seus instintos diante de um suculento bife. Nós, entretanto, não só podemos recusar um bife ao ponto, como podemos dar sentido à abstinência dizendo ser um sacrifício virtuoso de amor a Deus; ou um empenho vegano para conscientizar mentes carnívoras.
A maioria dos homens responderia a uma agressão covarde com um revide na mesma altura; a não ser que, por algum processo de maturação de caráter, aprenda que dar a outra face acabará evidenciando a histeria vergonhosa do algoz ― deixando o agressor em uma posição social mais vexatória que o agredido. Agora, dê um tapa na face de um leão para ver se ele declamará o evangelho de São Mateus.
Somente o homem é capaz de praticar atos éticos, pois somente um indivíduo lúcido é capaz de escolher livremente, e a liberdade de ação é a condição mínima para a ética; somente nós possuímos capacidade de julgar os fins que almejamos, pesando os meios que utilizaremos, e com isso verificar se vale a pena a empreitada.
Imaginar que uma ação humana possa ser julgada apenas pela consequência que ela poderá gerar ao final do processo é o que os filósofos chamam de consequencialismo, porém é o que eu chamo de receita para o genocídio. Consequencialismo é um termo recentemente usado pelo editorialista e colunista da Folha de S. Paulo Hélio Schwartsman. Vamos analisar de maneira mais apurada tal visão ética e tentar chegar a algumas conclusões.
Como nascem os deuses
Para entender o consequencialismo, precisamos antes entender onde nasce a mentalidade moderna que dá origem a essa visão ética.
Após o famigerado ― e tão negligenciado ― Renascimento, um período da Idade Média tardia tão escorregadio e arredio que muitos analistas políticos e filósofos fazem questão de ignorar. Uma obra elementar para entender tal contexto é A crise da consciência europeia: 1680-1715, de Paul Harzard (1878-1944), lançado no Brasil em 2015 pela UFRJ Editora.
Em geral, foram duas novas vertentes que acabaram se sobressaindo: a primeira se trata da vertente protestante ― quase anarco-capitalista ― de cepa calvinista, que traria uma nova abordagem social a partir do raciocínio livre e de uma ética pautada pelas ações dos indivíduos, e não de grupos ou aglomerações.
O segundo se trata do movimento laicista que enxergava em qualquer processo dogmático e religioso uma quebra incisiva no livre processo intelectual dos indivíduos. “O que motivava a rebelião moderna era a convicção de que a humanidade havia sido até então impedida de desabrochar pela influência obscurantista do cristianismo”.
As correntes de ideias que saiam dessas abordagens alimentariam o que mais tarde denominaríamos de “iluminismo” ― em todas as suas vertentes, nos mais variados países, da França à Holanda, da Inglaterra aos Estados Unidos.
A primeira corrente intelectual que merece destaque é o racionalismo de René Descartes (1596-1650), que com seu cogito ergo sum libertou a razão humana de qualquer necessidade exterior de iluminação, interpretação ou guia. O “penso logo existo” deu à consciência humana uma fundamentação filosófica para a abolição da razão frente aos artigos de fé; a razão, agora, se encontra empoderada ante a realidade, tendo no homem o mínimo necessário para decompor os fatos. Qualquer metafísica se torna mero ilusionismo de mentes tacanhas, qualquer fé não passa de exigências dogmáticas sem fundamentações.
Do tronco racionalista vieram os empiristas, filhos rebeldes de Descartes e teorizadores morais de primeira ordem. Diziam que somente o que era passível de análise pelos sentidos era digno de ser denominado realidade. Os empiristas encontravam no desconcerto da fé ante ao óbvio pragmático, no silêncio consternador dos metafísicos frente aos palavrórios fanáticos dos filósofos das coisas, uma espécie de deleite intelectual materialista. Seus principais expoentes são John Locke (1632-1704) e George Berkeley (1685-1753).
Não demorou muito para que das análises empiristas surgissem mentes dispostas a colocar tudo à prova. Mas, para provar-se algo, deve-se antes erigir estruturas metodológicas seguras para dominar a empiria, organizar a razão suprema, e gerar certezas estruturais dogmáticas ― mas aqui, agora, o dogma é da razão, e aí está tudo bem. Nasce então o cientificismo até hoje conclamado com púrpuras e báculos modernistas.
Ora, se o homem é o centro gravitacional da realidade, se é de sua mente que sai as portas para os fatos; se ele possui os instrumentos racionais necessários para descortinar as valas das incertezas metafísicas; se possui os instrumentos empíricos para construir a arqueologia da humanidade, a metodologia inerrante para entender o passo-a-passo do funcionamento das leis do universo; o que o impediria então de fabricar a própria realidade tal como imaginam ser o ideal? Por que seria a utopia algo impossível, se já detemos as engrenagens da história, a arquitetura das dos fatos e os esqueletos dos átomos? Por que não fazer o céu na terra?
Assim explica Isaiah Berlin (1909-1997):
Os racionalistas do século XVII entendiam que as respostas poderiam ser encontradas por uma espécie de insight metafísico, uma aplicação particular da luz da razão da qual todo homem gozava. Os empíricos do século XVIII, maravilhados com as vastas áreas do conhecimento descortinadas pelas ciências naturais calcadas nas técnicas matemáticas ― as quais dissiparam tantos erros, superstições, dogmatismos sem sentido ―, perguntavam-se, como o fez Sócrates, por que os mesmos métodos não poderiam também funcionar na construção de leis irrefutáveis no campo das relações humanas. Tendo em mãos os novos métodos descobertos pelas ciências naturais, uma ordem também poderia ser introduzida na esfera social ― uniformidades poderiam ser observadas, hipóteses, formuladas e comprovadas por meio de experimentos; sobre elas se baseariam leis, e posteriormente essas mesmas leis levariam a leis mais específicas em campos ainda mais circunscritos; por sua vez, essas leis específicas seriam ramificações de outras mais gerais e por aí em diante, até que um sistema completo e harmonioso, todos interconectado por elos lógicos inquebrantáveis e passíveis de serem elaborados em termos precisos ― ou seja, matemáticos ―, pudesse ser erigido.
Quando o homem suplantou o dogmatismo exacerbado da religião, acabou jogando fora o ponto de equilíbrio da própria existência humana: a consciência de suas limitações, seus pecados e sua pequenez ante às perfeições ideárias.
O pessimismo das constantes quedas carnais, as constantes fraquezas de caráter dos homens, o inferno prometido aos maus, tudo isso sempre trouxe aos indivíduos uma verdade que eles buscavam a todo custo esquecer: os seres humanos não são capazes de perfeição, apenas de correção e de tentativas de melhora. O homem é falho, limitado, quebradiço e, sem saída, vai inevitavelmente se encontrar todos os dias com a degradação de sua matéria. Nem mesmo suas ideias, construídas com as mais perfeitas das interações lógicas, costuradas no tear maravilhoso de uma ideologia altruísta, até mesmo as suas utopias sucumbirão ante à imponente verdade do real.
“Rejeitando a religião metafísica, esses primeiros ideólogos acreditavam que poderiam descobrir um sistema de leis naturais ― sistema que, caso obedecido, poderia tornar-se o fundamento da harmonia e do contentamento universais”.
Agora os homens são deuses.
A mentalidade moderna
A mentalidade revolucionária da modernidade, de origem iluminista radical ― basicamente o francês ― se edificou nesses pressupostos.
Se o homem é capaz, domina os instrumentos e tem os meios de construção de uma sociedade perfeita; por que não tentar edificá-la? E para acrescentar o plano ético da coisa; se nós sabemos onde iremos chegar, será que realmente importa com qual veículo iremos e por quais pavimentos iremos passar?
Vejam, se a perfeição é logo alí, por qual motivo eu devo me segurar em princípios éticos e moralidades velhacas? É o eterno drama de Karl Marx (1818-1883): “a revolução comunista indiscutivelmente vai acontecer, pois a organização econômica do capitalismo é insustentável. Mas vamos acelerar essa “bagaça”, pegar em armas e derrubar esses porcos imundos”. Ora, se o paraíso político está depois daqueles homens carrancudos e velhas religiosas, não é tãããããão imoral assim guilhotina-los para acelerar o processo...
Ah o processo... “a receita para a perfeição me parece a fórmula para o derramamento de sangue, ainda que receitada pelo maior dos idealistas, com o mais puro dos corações”.
A engenharia social a partir de teorias belíssimas e, sinceramente, emocionantes, não deu em outra coisa a não ser em desastres políticos que fariam o demônio pedir prudência aos homens. De Hitler a Mao Tsé-tung, de Mussolini a Pol Pot, há um vírus imaginativo na mente dos revolucionários que fica a repetir constantemente: é possível construir uma sociedade plenamente igual, ordeira e livre. Não importa o que faremos para isso, se encheremos vagões e fornalhas com judeus, se mataremos de fome os ucranianos ou fuzilaremos os dissidentes cubanos; o que importa é a causa, o fim, o comunismo/fascismo/nazismo. O que importa não é a intenção, o plano, mas a consequência... Entenderam?
A ética dos monstros
Vocês dirão: tudo bem Pedro, já entendi onde você quer chegar. Mas consequencialismo não é isso. É uma ética baseada nos fins de uma ação e não nos mei... Pois é, é o mesmo raciocínio, é a mesma lógica, e se tal conceito ético fosse materializado, não tenho dúvidas que cheiraria a putrefação. “O fim sublime desculpa meios horríveis”.
“Ah, mas o consequencialismo vem do utilitarismo; a vertente liberal de Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873)”; sim, filhas da mesma mentalidade, com nomes e roupinhas diferentes, mas com o mesmo DNA doentio. No fim, a estrutura se encerra em um hedonismo macabro.
Não vou afirmar que Helio Schwartsman seja um apoiador de genocídios ou que sequer aplauda a mentalidade que patrocinou os maiores shows de horrores que a humanidade possivelmente já assistiu; mas não tenho como chegar a outra conclusão além daquela que diz que o consequencialismo traz em sua genética tudo aquilo que a humanidade produziu de mais abjeto no século XX.
Tendo a crer, inclusive, que se Stálin e Hitler estivessem vivos, e se defrontassem com o paradigma ético que investigamos, pautados em suas ideologias, não tardariam em dizer que “não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos”, “a causa é maior que os indivíduos”. Talvez completassem gloriosamente: “hoje vocês nos julgam, mas nós só queríamos acelerar o processo”.
Ah o processo... “o ideal pelo qual se morre segue sem ser realizado. Os ovos são quebrados, e o habito de os quebrar se fortalece, mas o omelete continua invisível”.
Tudo é justificável
Em 1994, o famoso historiador marxista Eric Hobsbawm (1917-2012), em entrevista a Michael Ignatieff ― então jornalista da BBC e, posteriormente, político no Canadá ―, afirmou que o Grande Terror patrocinado pelos bolcheviques na União Soviética, sob a liderança de Stálin, teria valido a pena caso o período tivesse gerado a revolução mundial. O entrevistador então perguntou “Caso o comunismo tivesse feito surgir o amanhã radiante, então a morte de 15 a 20 milhões de pessoas estariam justificadas”? Hobsbawm prontamente respondeu: “Sim”!
A consequência é o que importa, não os 20 milhões de corpos amontoados. Hobsbawm nos deu, talvez, um dos maiores e melhores exemplos do que significa o “consequencialismo” ético-político levado a sério. Poderão acusar a fala de Hobsbawm de criminosa ― talvez ―, abjeta e nojenta ― acredito ―, mas jamais poderão chamá-lo de incoerente. O deadline desta ética sinistra é exatamente esse raciocínio do historiador: em nome de um pressuposto, ideologia, causa, etc., tudo é justificável. Em nome do fim glorioso, não importa se o meio for asqueroso. A lógica do consequencialismo, quando esticada ao seu cume, sempre dará de cara com o genocídio e o morticínio.
Russell Kirk (1918-1994) afirmava que a “ideologia é a política da irracionalidade apaixonada”. Nunca uma definição fez tanto sentido. O que Hélio deveria lembrar é que ideias têm consequências reais, e que ainda que ele tenha liberdade para dizê-las, deve ter consciência dos efeitos imprevisíveis que tais palavras podem ter.
Não que eu esteja julgando as suas palavras pelo possível desfecho que elas podem gerar, isso seria contradição. Afirmo que o simples ato desejar a morte de alguém ― por não agradar os nossos fetiches ideológicos ― é errado e demonstra uma consciência dominada por um histerismo bobo e irrefletido. Se de fato ele acredita que são as consequências de nossas ações que pesam nos tribunais das nossas existências, será que ele estaria disposto a assumir sua parcela na morte de Bolsonaro, caso alguém inspirado por sua apologia resolva “acelerar o processo”?
Consequencialismo que se chama, né?