Incrustado na bacia dos Cárpatos, às margens do rio Danúbio, o país de quase 10 milhões de habitantes se prepara para enfrentar, em 2022, o desafio de eleger um novo primeiro-ministro, cargo atualmente ocupado por um notório político conservador. Há uma década, a Hungria ocupa manchetes internacionais que alardeiam a “deterioração democrática” da nação, acusação feita formalmente pela União Europeia. Ocorre que o detentor do cargo político mais alto do país não se dá ao trabalho de tecer loas à democracia liberal — a grande conquista do Ocidente — para se defender das imputações. Viktor Orbán, de 58 anos, não tem pudores de afirmar que a Hungria é, no fim das contas, uma “democracia iliberal”.
Para os padrões ocidentais, o termo soa como uma contradição flagrante. Na prática, contudo, a peculiaridade do governo húngaro é alvo de análises díspares. De um lado, sobram reportagens, análises e pesquisas que atribuem a Orbán os epítetos de autoritário e intolerante, não completamente sem razão: o último escândalo a cair no colo do governo (e que ainda não foi bem explicado) foi a revelação de que o Estado estaria utilizando programas israelenses para espionar jornalista e opositores. Do outro, também ganha notoriedade a crescente admiração que influentes analistas políticos, críticos e escritores americanos conservadores, tradicionalmente atrelados ao liberalismo clássico, demonstram pelo líder húngaro, ainda que com ressalvas.
Em agosto, Tucker Carlson, apresentador da Fox News, foi convidado pelo próprio premiê para uma visita a Budapeste, sendo o responsável pela ponte entre as duas figuras, o jornalista Rod Dreher, editor do portal The American Conservative. Também já estiveram na capital húngara a convite do governo o cientista político Patrick Deneen, autor do best-seller “Por que o liberalismo fracassou”, e o jornalista Sohrab Amari. No ano que vem, a CPAC (Conservative Political Action Conference), uma das maiores conferências conservadoras do mundo, será realizada na capital húngara.
Em meio aos apoios insólitos de figuras que, via de regra, estão na linha de frente da defesa da primeira emenda norte-americana — fiadora da liberdade de expressão — a um político acusado de espionagem e aparelhamento estatal, a natureza maléfica atribuída a Viktor Orbán, vez ou outra, é posta em cheque. Uma democracia, afinal, pode ser iliberal?
Passado comunista, presente populista
Para entender a Hungria “iliberal” de Viktor Orbán, cabe levantar alguns pontos na história do país, bem como a trajetória política do premiê. Ex-integrante do Império Austro-húngaro, dissolvido ao final da 1ª Guerra Mundial, a Hungria foi dominada pela União Soviética ao final da 2ª Guerra, quando lutou ao lado do Eixo. Uma vez sob o jugo dos soviéticos, o país recebeu, em 1949, uma constituição muito similar à da URSS de 1936.
Quarenta anos depois, em meio ao colapso do comunismo e a queda do Muro de Berlim, o jovem Orbán, então com 26 anos, discursou na cerimônia de sepultamento oficial do primeiro-ministro Imre Nagy que, em 1958, lutou pela independência da Hungria em relação a Moscou. Nagy foi preso e executado pela KGB, e seu corpo foi enterrado em segredo para evitar a comoção popular. O evento na Praça dos Heróis em Budapeste — no qual Orbán exigiria eleições livres e a retirada das tropas soviéticas — tornaria conhecido um dos principais líderes fundadores do Fidesz, partido criado em 30 de março de 1988 com viés liberal no campo econômico. Na mesma época, Orbán passou um semestre estudando na Universidade de Oxford, financiado pelo bilionário George Soros.
Aos primeiros movimentos de abertura ao mercado, seguiram-se décadas turbulentas: uma série de privatizações acompanhadas de recessão econômica e uma severa política de austeridade na década de 1990 levaram o país a eleger, em 1994, um governo mais à esquerda. Em 1998, Orbán chegou ao poder pela primeira vez. “O Fidesz se tornou a maior força política reformista, de centro-direita e pró-ocidental que competia com a esquerda pós-comunista. Seu governo em 1998-2002 liderou a adesão da Hungria à OTAN, deu passos largos com a adesão à União Europeia e merece crédito por muitas reformas pró-mercado. É a partir de 2002 que o partido dá uma guinada rumo ao nacionalismo e ao populismo que caracteriza a era pós-2010”, avalia o pesquisador Dalibor Rohác, do American Enterprise Institute (AEI), em entrevista à Gazeta do Povo.
O primeiro mandato do premiê é sucedido por oito anos de um governo progressista: entre 2002 e 2010 o país esteve sob o comando do Partido Socialista, considerado de centro-esquerda. Para os brasileiros, a história pode soar relativamente familiar: as promessas de corte de impostos deram lugar a um aumento, enquanto parcerias vultosas com bancos estrangeiros enchiam os olhos do mercado, sem que o benefício fosse revertido para a população. Benefícios para pensionistas e para grandes famílias foram abolidos, enquanto a imprensa noticiava, em 2010, que a Hungria poderia se tornar a próxima Grécia, além de uma série de escândalos de corrupção.
Conservador nos costumes, iliberal na economia
Diante das novas circunstâncias políticas, o Fidesz e o próprio Viktor Orbán paulatinamente se distanciaram do que hoje é descrito pela dobradinha “liberal na economia, conservador nos costumes”. As eleições de 2011 marcam o retorno do premiê ao poder, com um programa de governo completamente diferente do que o lhe rendeu a vitória nas urnas em 1998 e que deixaria absorto qualquer defensor ferrenho do livre mercado. A descrição fica a cargo do próprio escritório de Comunicações Internacionais de Orbán que, por e-mail, respondeu à Gazeta do Povo:
"Os governos liderados por Viktor Orbán em 1998 e em 2010, tiveram uma abordagem completamente diferente. (...) Demoramos anos para consertar o que a esquerda destruiu. Foi uma grande misericórdia a unidade nacional ter sido preservada por completo, até que as ruínas pudessem ser removidas com os esforços de trabalhadores, engenheiros, fazendeiros, proprietários de pequenas e grandes empresas, cientistas, professores, enfermeiras e médicos. Nós colocamos a Hungria em pé de novo. Criamos um milhão de novos empregos. Livramo-nos dos empréstimos em moeda estrangeira, reduzimos os impostos e, em 2022, o salário mínimo será mais alto do que o salário médio dos socialistas. Nós readquirimos as empresas de serviços públicos, bancos e a mídia, e aumentamos a riqueza nacional em 50%. Tributamos multinacionais, protegemos famílias e reduzimos as contas de serviços domésticos ao nível mais baixo da Europa. A Hungria agora é forte o suficiente para subsidiar seus idosos e jovens ao mesmo tempo. A pensão de 13º mês será restaurada e a partir de 2022 os jovens empregados não pagarão impostos".
Além das políticas descritas, o governo Orbán aumentou o salário mínimo, implementou um sistema de impostos proporcionais aos rendimentos e criou um programa nacional de serviço público voltado para as comunidades rurais. Também bancou tratamentos de fertilidade para casais que desejassem ter filhos e instituiu benefícios para famílias numerosas: medidas amplamente aprovadas tanto pela população quanto pela oposição e à qual é creditado um princípio de reversão da crise demográfica que se abate sobre o continente. "A ideologia do governo Orbán contém uma crítica à teoria liberal clássica do Estado, como uma associação de indivíduos atomizados. Eles entendem o Estado como o que organiza uma comunidade nacional, uma democracia iliberal. A comunidade básica é a família, não o indivíduo", explica o antropólogo Uriel Irigaray, da Universidade de Brasília.
Tudo isto foi possível principalmente porque, em 2012, a aprovação de uma nova constituição aumentou de 11 para 15 o número de juízes no Tribunal Constitucional, introduzindo um novo processo de seleção que garantiu que Orbán escolhesse nove deles. "Mesmo depois do fim do socialismo na Hungria, a Constituição de 1949, feita sob o regime soviético, continuou valendo. Ao longo dos anos, foram feitas várias emendas no sentido de transformar o país em uma democracia liberal. Ironicamente, é no governo de Orbán que a Hungria tem sua primeira constituição democrática, ainda que ela dê mais poderes ao Executivo e enfraqueça o que os ingleses chamam de ‘checks and balances’ - os pesos e contrapesos", avalia Irigaray. O novo código de leis também eliminou os segundos turnos eleitorais, dando ao Fidesz o poder de converter a porcentagem de votos de 44% e 48% em maiorias legislativas no parlamento.
Na seara dos costumes, a constituição húngara decreta que o casamento é, exclusivamente, entre homem e mulher: homossexuais não têm direito à união civil formal. O aborto é terminantemente proibido e, no ano passado, o Parlamento aprovou uma lei proibindo o acesso a conteúdos LGBT nas escolas e em produtos e propagandas destinados ao público infantil. Também foi vedado que pessoas transexuais de qualquer idade utilizem seu nome social e os estudos de gênero atrelados a perspectivas pós-modernas foram banidos das universidades bancadas com dinheiro público. Sobre este tema, o escritório de comunicação da Hungria respondeu à reportagem:
"O ponto de vista do governo é que as pessoas nascem homens ou mulheres, e não consideramos aceitável falarmos sobre gêneros construídos socialmente em vez de sexos biológicos. Nessa área, desde 2018, o Estado não deseja financiar atividades educacionais. Esta decisão de forma alguma restringe a liberdade de pesquisa acadêmica, pois há espaço para pesquisar este tópico com uma abordagem (genuinamente) acadêmica em outros campos de estudo — por exemplo, História, Sociologia e Filosofia; existe também a possibilidade de executar programas desta natureza em universidades geridas por fundações, sem acreditação húngara".
Some-se a tudo isto o discurso anti-imigração e as críticas constantes ao bilionário George Soros, financiador da Universidade da Europa Central, expulsa de Budapeste. Por conta destas posturas, o premiê não raramente é taxado de “antissemita”, um rótulo que desperta controvérsias. "O Fidesz faz, de fato, uma campanha contra George Soros e alguns apoiadores fazem caricaturas com elementos antissemitas, mas há também uma discussão importante sobre o papel desses oligarcas que se tornaram atores globais. Até que ponto é errado criticar Soros, seu poder e influência?", avalia o antropólogo.
Para incrementar, durante a pandemia do coronavírus, Orbán conseguiu expandir seus poderes: o Parlamento aprovou uma lei dando ao Executivo o poder de governar por decreto, suspendeu votações e impôs sistemas de censura ao que o Estado entendesse por “desinformação médica”. Ao longo do ano passado, denúncias de hospitais sobrecarregados enquanto o governo tentava maquiar os números de mortos e doentes tomaram a imprensa.
E, mais uma vez, na contramão da filosofia libertária, Orbán impôs rígidas medidas de isolamento e passaportes de vacinação aliados a uma campanha maciça pela imunização — assuntos que passaram ao largo da conversa com Tucker Carlson transmitida pela Fox News.
Boa parte das vacinas utilizadas na Hungria, aliás, vieram da Rússia e da China, duas parceiras comerciais com quem Orbán faz questão de manter relações estreitas: entre 2014 e 2019, não se passou um ano sem que o premiê encontrasse Vladimir Putin pessoalmente. De 2019 até abril deste ano, foram muitas as ligações para Xi Jinping. Presume-se que, entre os assuntos, esteja o financiamento de uma nova universidade em Budapeste, financiada por Pequim.
O que dizem os conservadores
Diante de um cenário tão complexo e controverso, uma reportagem recente do The New York Times abordou o motivo de tantos conservadores americanos estarem viajando a Budapeste. Rod Dreher, já entrevistado pela Gazeta do Povo, declarou ao jornal que admira o premiê húngaro porque ele “está disposto a assumir as posturas duras necessárias para evitar que seu país perca a consciência coletiva sob o ataque de militantes malucos”, uma vez que, nos Estados Unidos, o Partido Republicano e sua defesa da liberdade de expressão não seriam mais suficientes.
"Como americano, vi como a loucura dos estudos de gênero migrou em um piscar de olhos de uma disciplina acadêmica outrora marginal para uma ideologia dominante da classe dominante ocidental e de suas instituições. (...) A liberdade acadêmica é um valor liberal importante, mas não pode ser uma nota suicida da sociedade", complementou Dreher, em sua coluna na revista britânica The Spectator, com argumentos bastante similares aos utilizados por Deneen e Ahmari na defesa de Orbán.
Ocorre que nada disso, contudo, pode apaziguar as consequências do acúmulo de poder. Uma pesquisa recente da ONG anticorrupção Transparency International, que revelou que 69% dos húngaros acreditam que a corrupção no governo é um grande, ou muito grande, problema em seu país. Em julho deste ano, o líder húngaro foi envolvido no escândalo Pegasus, um software israelita que estaria sendo usado massivamente para espionar celulares de jornalistas e ativistas. "Mesmo os apoiadores do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, reconhecem em particular que o escândalo de Pegasus é um duro golpe para o líder em apuros. As notícias (...) confirmaram os piores estereótipos autoritários de Orbán (...). Essas alegações, se verdadeiras — e muitos apoiadores de Orbán com quem conversei presumem que sim — provavelmente vão substituir a maior responsabilidade já atribuída a Orbán na votação do próximo ano: a de que ele e seu partido Fidesz supervisionam uma vasta rede de corrupção pública", assume Dreher.
De fato, embora tenha conquistado, em votação majoritária, a presidência do Fidesz, no início deste mês de novembro, o premiê corre sério risco de perder seu mandato graças à coalizão que selecionou um candidato conservador moderado, Peter Marki-Zay para o páreo. O ano de 2022, portanto, será fulcral para a avaliação da força da “democracia iliberal” de Orbán.
A pouco menos de seis meses do pleito, vale recordar as palavras do filósofo que dá nome a um famoso café nos arredores do Parlamento húngaro em Budapeste - o Scruton Café - e que foi um dos apoiadores do jovem Orbán antes da derrocada final do comunismo. “Ele e seus colegas estavam fazendo um trabalho fantástico, foi quando fundaram o Fidesz”, declarou Roger Scruton, em entrevista concedida em abril de 2019. “Tudo estava indo muito bem, mas acho que o poder subiu à cabeça dele”.
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