PL 4144/2024, de Pedro Uczai (PT-SC), busca coibir “fake news” nas redes sociais de formas que se assemelham à Lei de Imprensa de 1967.| Foto: Eli Vieira com Grok
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A Lei de Imprensa da ditadura militar, ou Lei 5.250/1967, criminalizava “publicar ou divulgar notícias falsas [hoje chamadas de “fake news”] ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados”. Já o Projeto de Lei 4.144 de 2024, proposto pelo deputado petista catarinense Pedro Uczai a pedido da presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, “estabelece diretrizes para a prevenção e o combate à desinformação e à informação enganosa nas plataformas de comunicação digital e redes sociais”.

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Mudaram os alvos das duas peças legislativas — a antiga lei visava jornalistas individuais e a imprensa tradicional, o PL tem foco nas novas tecnologias de comunicação —, e o vocabulário, mas as semelhanças não se encerram no objetivo de dar ao Estado a tutela da verdade. (Confira o comparativo na tabela.)

Para o jurista André Marsiglia, especializado em liberdade de expressão, “a semelhança entre a Lei de Imprensa e o novo PL mostra que regular obsessivamente a liberdade expressão não é exclusividade de uma época com redes sociais. Não tem nada a ver com redes, mas com controle. Todo autoritarismo tem medo da crítica e da opinião alheia porque é imoral, não está apoiado no povo, mas na força”.

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“A principal diferença que salta aos olhos é que a Lei de Imprensa responsabilizava diretamente os indivíduos e esse PL tem como alvo principal as plataformas”, disse à Gazeta do Povo o advogado Hugo Freitas Reis.

O PL do PT está “terceirizando para as plataformas a tarefa de censurar e prevendo poderes sub-reptícios para o Estado que permitiram a ele, na prática, controlar a direção da censura”, disse Reis. “O projeto está transformando a ideia de ‘desinformação’ em conceito jurídico”.

Origens da nova moda da censura

O termo “desinformação”, que em inglês se desmembra entre “disinformation” (desinformação com intenção consciente de enganar) e “misinformation” (informação falsa sem intenção de enganar), explodiu exponencialmente em menções contidas em livros e em notícias desde a eleição de Donald Trump em 2016.

Segundo a ferramenta do Google de busca de palavras em livros (Ngram Viewer), o crescimento na frequência de uso dessas palavras entre 2016 e 2022 foi de 97% para “misinformation”, 251% para “disinformation”. Outro termo usado para justificar pressão por novas normas e leis de controle da expressão, “discurso de ódio” (“hate speech” em inglês), cresceu 85% no mesmo período.

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Na imprensa em inglês, em dados compilados pela Gazeta do Povo a partir do banco de dados News On The Web (mantido pelo professor aposentado de linguística da Universidade Brigham Young, Mark Davies), que inclui notícias publicadas em 20 países, o crescimento no uso dos termos “misinformation”, “disinformation” e “discurso de ódio” entre 2016 e 2020 foi de 437%, 1.003% e 277%, respectivamente. Confira no gráfico.

Menções dos dois termos em inglês para "desinformação" e o equivalente a "discurso de ódio" na imprensa anglófona desde 2010, por milhão de palavras publicadas.| Foto: Eli Vieira com Datawrapper; dados de News On The Web

Em seu livro “Not Born Yesterday” (“Não nasci ontem”, em tradução livre, de 2020), o cientista cognitivo francês Hugo Mercier enxerga com ceticismo a narrativa segundo a qual Trump teria vencido as eleições de 2016, ou o Reino Unido teria saído da União Europeia no mesmo ano, por causa das notícias falsas.

“Em ambos os países, uma grande maioria das elites e da imprensa tradicional, surpreendida e decepcionada com as escolhas do povo, buscava por explicações”, disse Mercier em sua obra. A explicação eleita foi que essas escolhas resultaram de desinformação, de “fake news”. “As fake news, que sempre existiram de uma forma ou outra, foram vistas como uma ameaça especial dessa vez porque as redes sociais tinham expandido de forma vasta seu alcance”.

Mas a explicação das elites “inverte a direção da causalidade”, afirmou Mercier. “Em geral, não é por ter crenças falsas que a população toma decisões equivocadas ou más”. Na realidade, é para justificar decisões “equivocadas e más” (do ponto de vista das elites) que a população adota crenças falsas.

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Voltaire disse que “aqueles que podem fazer com que você acredite em absurdos podem fazer com que você cometa atrocidades”, lembra o cientista, mas “isso na verdade raramente é correto. A regra é que querer cometer atrocidades é o que faz com que você acredite em absurdos”.

O que está claro, para analistas como Mercier e outros, é que os grupos políticos e elites que são oposição política aos movimentos populistas nacionalistas de Trump, Brexit e Bolsonaro querem cometer a atrocidade da censura, e por isso buscam abraçar crenças alarmistas a respeito da “desinformação”. Muitas dessas crenças da esquerda sobre a desinformação (como a alegação de que a exposição a notícias falsas está crescendo) foram derrubadas por uma análise publicada em junho passado na revista Nature por Ceren Budak, da Faculdade de Informação da Universidade de Michigan (EUA), e colegas.

Lei de Imprensa só foi derrubada pelo STF em 2009

Em abril de 2009, por sete votos contra quatro, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional a Lei de Imprensa de 1967, editada originalmente pelo general Castelo Branco, primeiro presidente do regime militar.

“Não é possível legislar com conteúdo punitivo que crie condições de intimidação”, disse à época o ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Entre os que votaram pela derrubada da lei, estavam também os ministros Cármen Lúcia (ainda no STF) e Ricardo Lewandowski (hoje ministro da Justiça do terceiro governo Lula).

Em seu voto, Cármen Lúcia disse que o objetivo da lei era “garrotear a liberdade de imprensa”. Em 2022, no Tribunal Superior Eleitoral, ela votou a favor da censura prévia contra a produtora conservadora Brasil Paralelo, alegando se tratar de um caso excepcional.

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O ministro Gilmar Mendes, hoje decano da corte, votou contra derrubar a Lei de Imprensa em 2009, sob a justificativa de manter o dispositivo de direito de resposta. Ele mencionou o caso Escola Base, ocorrido em São Paulo em 1994, no qual veículos de comunicação erraram ao amplificar acusações falsas de pedofilia.

Mais surpreendentemente, o ministro aposentado Marco Aurélio Mello, hoje um crítico do STF que chamou o Inquérito das Fake News de “inquérito do fim do mundo”, também votou pela manutenção da Lei de Imprensa, dizendo que sua derrubada criaria um “vácuo normativo”.

O PL 4.144 do Partido dos Trabalhadores, além de ter aspectos em comum com a Lei de Imprensa, é uma espécie de resumo do PL 2.630/2020, apelidado de “PL das Fake News” por apoiadores e de “PL da Censura” por críticos, cujo regime de votação em urgência foi aprovado no primeiro semestre de 2023, mas perdeu fôlego político por resistência popular e um engavetamento promovido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).