Doutor em Teologia e editor de publicações cristãs, o americano Trevin Wax propõe um "caminho de volta" em seu mais recente livro, "A Emoção da Ortodoxia".
Para ele, a ideia de que o ensino religioso tradicional é restritivo e ultrapassado não passa de mais um engano de quem se deixa levar pelas correntes culturais. O mapa para a grande aventura da vida, portanto, está no retorno aos credos da igreja e aos fundamentos que orientam os cristãos ao longos dos séculos.
Leia a seguir um techo da obra, recém-lançada no Brasil pela editora Mundo Cristão.
A aventura da vida é uma batalha por admiração, uma firme decisão de resistir ao tédio em um mundo repleto de maravilhas.
Talvez por isso aqueles que vivem próximos da glória silenciosa das montanhas passem as férias junto ao mar, e vice-versa. Mudamos de cenário para que possamos enxergar o cenário. Saímos de casa para que, mesmo por um breve momento ao retornar, voltemos a perceber sua glória.
A vida cristã começa com admiração espiritual diante da glória do evangelho e da bondade e beleza da verdade cristã, com a surpresa cheia de encantamento de uma criança pequena conduzida a um novo mundo de graça. Ao longo do tempo, contudo, nossas pálpebras ficam pesadas e nosso paladar fica embotado, e é então que os erros se insinuam.
A sonolência espiritual nos faz perder a percepção do amor de Deus e enfraquece nosso compromisso de transmitir a fé à geração seguinte. Enfastiamo-nos com as Escrituras, banalizamos a Bíblia e nos desleixamos na doutrina.
Habituados demais com a verdade, sentimo-nos atraídos por novos ensinamentos “empolgantes” ou práticas que prometem nos fazer despertar de nosso sono espiritual. E o erro, que sempre se apresenta em roupagem mais chamativa que a verdade, aproveita as ocasiões em que nos mostramos mais propensos a nos desviar.
Por que perdemos tão facilmente o maravilhamento com as verdades que nortearam e inspiraram cristãos por tantas gerações? Por que deixamos de nos encantar com antigas verdades? Por que nos sentimos atraídos por erros teológicos?
Para entender melhor nossa suscetibilidade a essa enfermidade espiritual, temos de olhar com atenção para nosso contexto e ver as forças em ação em nosso mundo, em nossas igrejas e em nós, forças que corroem nossa devoção.
Caos cultural
Começamos com a ansiedade e a inquietação desses tempos caóticos, resultado de polarização política, avanços tecnológicos e calamidades mundiais. Somos bombardeados com informação (e desinformação), inundados de perspectivas e opiniões diversas, que vão do absurdo ao abstrato e tornam difícil identificar fontes dignas de crédito.
Qualquer um pode pegar um megafone e, aos gritos, calar aqueles que se desviam até mesmo ligeiramente desta ou daquela nova ortodoxia que une determinada comunidade ou partido político. Não sabemos em quem podemos confiar, se é que podemos confiar em alguém.
Para os cristãos essa sensação de desnorteamento é amplificada por mudanças no panorama moral. Não podemos mais ter a expectativa de que a religiosidade seja respeitável. Crenças e valores tradicionais extraídos da doutrina cristã agora são “extremos”.
Princípios que quase todos tinham em comum algumas décadas atrás se tornaram, repentinamente, inaceitáveis. À medida que menos pessoas se identificam com a tradição religiosa, aqueles que hoje seguem formas institucionais de religião são cada vez mais empurrados para as margens.
Em gerações passadas, a religiosidade respeitável e o cristianismo cultural apresentavam seu próprio conjunto de desafios à fé e à prática verdadeiras. O caminho para Cristo nunca é fácil, e cristãos de todas as eras são propensos a se esquecer de seu primeiro amor (Ap 2.4).
Na presente era, o perigo de abandonar nosso primeiro amor se manifesta por meio das pressões de uma sociedade em que o cristianismo não é a norma e em que as crenças e valores morais cristãos deixaram de parecer plausíveis. Em meio às mudanças contínuas, a “estabilidade” passou a ser vista com desconfiança. Como todas as outras coisas, a fé foi pega
Enquanto isso, muitas igrejas se encontram em estado de letargia, e a perplexidade esgota as energias dos crentes que ainda participam dos cultos.
Igrejas e denominações estão envoltas em conflitos não muito diferentes do mundo da política inescrupulosa. A hipocrisia reforçou a disposição anti-institucional de muitos em relação à igreja e levou a uma explosão de novas opções religiosas e experiências espirituais rigorosamente customizadas.
A observadora da cultura Tara Isabella Burton diz que muitas pessoas têm trocado a religião institucional pela espiritualidade intuitiva: “Uma religião desvinculada de instituições, de credos, de asserções metafísicas a respeito de Deus e do universo […] mas que ainda busca, de maneiras diversas e variáveis, proporcionar para nós as colunas daquilo que está sempre presente na religião: significado, propósito, comunidade, ritual”.
Em resposta a essa confusão incapacitante, alguns cristãos consideram necessário atualizar e aprimorar a fé para a era moderna. Outros rejeitam aspectos do cristianismo histórico, mas procuram se apegar a algumas partes mais desejáveis.
Vários líderes de grande projeção renunciaram inteiramente a fé. Enquanto isso, um número considerável de pessoas que antes frequentavam a igreja fechou a porta e se foi silenciosamente.
Acomodação cristã
O que acontece com os que restaram, com os cristãos comuns que amam suas famílias e dão valor a suas igrejas? Em todas as gerações, enfrentamos o perigo de ansiar pelo passado e temer o futuro. E essa mistura de nostalgia e medo nos leva a um estado de acomodação, de fé sem missão.
Entramos e saímos da igreja uma semana após a outra e nos contentamos em recitar as mesmas palavras com nossos lábios, mas nosso coração permanece intocado pelas verdades que confessamos, e somos menos propensos a convidar outros a crer nas boas-novas.
O cristianismo acomodado leva à compartimentalização, uma separação conveniente entre verdade cristã e crenças que norteiam nossas atividades diárias. O cristianismo se torna apenas um aspecto de uma vida atarefada.
Ouvimos outros dizerem que nossas crenças não são tão importantes quanto nosso modo de viver. E, mesmo assim, não há problema se nossas escolhas de vida não se alinharem com o ensino cristão, desde que nossa fé nos ajude a ser sinceros e nos impeça de prejudicar outros.
O que falta nesse quadro é a percepção do cristianismo como missão que exige obediência a um Rei, como alegre aventura que nos coloca em confronto direto com oposição ao proclamarmos algo maior e que proporciona mais satisfação do que preferências pessoais.
À primeira vista, o chamado do cristianismo à obediência custosa talvez não pareça heroico ou radical. Talvez passemos por fases estressantes, tenhamos dificuldade de educar os filhos, trabalhemos em empregos que não trazem realização e façamos o melhor que podemos para servir os cristãos em uma igreja cheia de problemas.
No entanto, temos de lembrar que o caminho do arrependimento e da fé confere importância eterna até aos menores atos de abnegação. A missão permanece e contrasta com o cristianismo acomodado que almeja domesticar a fé e arrefecer seu fervor revolucionário.
De maneiras incontáveis que talvez não fiquem evidentes para nós ou para outros, devemos nos rebelar contra a rebelião de um mundo caído e dar testemunho da soberania de Jesus ressurreto sobre o universo.
Tenho convicção de que uma das principais causas dessa enfermidade espiritual é nossa perda de confiança no caráter verdadeiro e bom da fé cristã. Em todas as gerações, corremos o risco de perder o maravilhamento com a glória da verdade cristã e com o testemunho perene da igreja.
Em meio ao caos e à confusão, é fácil voltarmos o foco para nós mesmos e, como consequência, nos esquecermos de Deus. É como se tivéssemos herdado uma imensa propriedade com belos edifícios cercados por extensos jardins, mas passássemos os dias enfurnados em um armário, acomodados e entediados, sem desejo de explorar tudo o que nos foi dado em Cristo.
Passamos por isso antes. Caos e confusão não são novidade. Todas as gerações enfrentam esses desafios, ainda que por motivos diferentes.
A chave para a renovação não é nos livrar de aspectos do cristianismo que parecem incômodos em nosso tempo. (Afinal, se o cristianismo é verdadeiro, devemos esperar que todas as culturas entrem em conflito com suas asserções em algum momento.)
Também não devemos ignorar novos desafios e desconsiderar as perguntas difíceis a respeito daquilo em que cremos e dos motivos pelos quais cremos. Não, a chave para a renovação é voltar à única verdade sólida e confiável quando tanta coisa neste mundo é caracterizada por inconstância e modismos: o evangelho de Deus confiado de uma vez por todas aos santos.
O evangelho é o anúncio régio de que Jesus Cristo, o Filho de Deus, viveu com perfeição em nosso lugar, morreu de forma substitutiva na cruz por nossos pecados, ressuscitou triunfantemente da sepultura para dar início à nova criação de Deus e agora é Rei exaltado sobre o mundo.
Esse anúncio pede uma resposta: arrependimento (lamentar nosso pecado e deixá-lo para trás, trocar nossos objetivos pelos do reino, definidos por Jesus Cristo) e fé (crer somente em Cristo para a salvação pelo poder do Espírito).
Podemos dizer muito mais coisas sobre as boas-novas e seu impacto sobre nós e sobre o mundo. Mal arranhei a superfície daquilo que J. I. Packer [teólogo canadense] costumava descrever para seus alunos como “a maior coisa que já existiu”; verdade antiga, mas sempre nova.
O caminho para prosseguir consiste em recorrer ao passado, encontrar renovação em algo antigo, em verdades fundamentais testadas pelo tempo, em uma fonte de coisas boas que refresca e sacia, beleza do passado há muito esquecida que eleva nosso olhar acima do sofrimento e da tristeza do presente.
A emoção da ortodoxia
O que a igreja precisa hoje é resgatar a emoção da ortodoxia. Para um filósofo como Aristóteles, o termo ortodoxia significava opinião “certa” ou “correta”, mas os cristãos primitivos se apropriaram desse termo com o sentido de “ter a crença correta” e, para eles, a crença correta é fundamental, pois é ligada à adoração correta do único Deus verdadeiro.
Ao longo dos séculos, ortodoxia passou a representar conformidade às Escrituras, de acordo com o consenso da igreja. Para você, talvez ortodoxia não passe de uma densa e árida lista de doutrinas, uma lista possivelmente necessária, mas não emocionante.
Não é muito diferente de esperar que um livro de matemática faça seu coração bater mais forte. No entanto, essas duas palavras andam juntas.
Concordo com Dorothy Sayers, poetisa e escritora de mistérios inglesa. De acordo com ela, aqueles que afirmam que igrejas vazias são consequência de pregadores que insistem demais em “dogma sem graça” entenderam errado a situação.
Sayers diz que é justamente o inverso: “É a desconsideração dos dogmas que torna as coisas sem graça”. É enfadonho adaptar a fé cristã para que ela se conforme melhor às pessoas; empolgante é adaptar pessoas para que elas se conformem melhor à fé cristã.
A ortodoxia é um castelo antigo com cômodos espaçosos, teto alto e arqueado e corredores misteriosos, uma vastidão de sabedoria prática transmitida por nossos antepassados na fé.
Alguns moram no castelo, mas não exploram seus tesouros. Outros acreditam que o castelo é um empecilho para o progresso e deve ser demolido. Alguns consideram que a parte exterior do castelo pode ser preservada para fins estéticos, desde que o interior seja inteiramente reformado.
A cada geração, porém, Deus levanta pessoas que enxergam o valor dos tesouros; são mulheres e homens séria e continuamente comprometidos com o trabalho de reconhecer e destacar a beleza ímpar da verdade cristã para que gerações futuras possam ser recebidas no esplendor desse castelo.