Concedido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) na última quinta-feira (21), o "instituto da graça" - a prerrogativa dada ao presidente da República para que este impeça a execução de penas aplicadas a criminosos - está previsto na Constituição brasileira de 1988 e nos códigos penais da maioria dos países democráticos, como uma herança da crença medieval de que caberia ao soberano, como representante do poder divino, o papel de condenar ou perdoar um acusado.
Ao longo da história, seu uso se deu de formas variadas: para controle de rebeliões, concessão de benefícios para criminosos condenados por crimes diversos (a gravidade destes atos, via de regra, é a causa dos debates acalorados sobre o tema) e regalias para aliados políticos e para quem pudesse pagar pelo perdão.
De acordo com o jurista William Blackstone, autor da primeira grande obra da jurisprudência britânica, "Comentário sobre as Leis da Inglaterra", o poder de perdoar crimes era considerado uma honraria concedida ao rei, que deveria reservar este benefício apenas para "exceções às regras gerais". Embora alertasse que o indulto acabava por relativizar a lei, reconhecia nele uma brecha para que o soberano se mostrasse clemente e fortalecesse sua imagem junto à população: chegou a criticar, por exemplo, os habitantes de uma região do país que não permitiam sequer o adiamento da execução de uma mulher grávida.
Em um de seus artigos publicados no livro “O Federalista”, o político e jurista Alexander Hamilton, um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, defendeu que a prerrogativa do perdão pertencesse ao chefe do Executivo, não podendo ser aplicada somente em casos de impeachment. Seu principal argumento era o de que, quando houvesse rebeliões, a oferta de perdão aos insurgentes poderia ser um mecanismo de negociação de paz.
O primeiro caso envolvendo o poder de clemência a chegar à Suprema Corte aconteceu em 1833, quando o réu, George Wilson, acusado de roubar o correio dos Estados Unidos e pôr a vida de um motorista em risco, foi perdoado pelo sétimo presidente americano, Andrew Jackson, graças à influência de alguns amigos no Executivo. Ainda que Wilson tenha recusado o perdão, a Suprema Corte foi levada a decidir sobre o caso. O uso do termo "ato de graça" pelo juiz John Marshall ajudou a sedimentar o entendimento de que o indulto seria um ato de misericórdia, que pode ser realizado pelo Executivo a qualquer momento.
Desde então, sua aplicação nos Estados Unidos já atendeu aos mais diversos interesses e causas. Em 1868, o presidente democrata Andrew Johnson, em um esforço para reunificar o país após a Guerra Civil, ofereceu perdão às tropas confederadas dispostas a jurar lealdade ao governo. Mais de 13 mil homens solicitaram e receberam o indulto, que excluiu líderes de alto escalão da rebelião dos estados escravocratas.
Um dos "perdões presidenciais" mais famosos da história seria concedido pelo republicano Gerald Ford ao antecessor Richard Nixon em 9 de setembro de 1974, após o escândalo de Watergate - o famoso assalto ao escritório do Partido dos Democratas orquestrado por membros do comitê de Nixon.
Já em 2001, o presidente Bill Clinton utilizaria a prerrogativa para beneficiar, em seu último dia de governo, líderes radicais de esquerda presos nas décadas de 1960 e 1970 por assassinatos, assaltos à mão armada a bancos e outras instituições e bombardeios ao Capitólio. No mesmo dia, o democrata perdoou seu meio-irmão Roger Clinton, condenado em 1985 por tráfico de cocaína.
Um recente estudo do Pew Research Center demonstrou que o, ao longo de seu mandato, o ex-presidente Donald Trump concedeu indulto a cerca de 2% dos 11611 candidatos: mais de 200 concessões. Seu antecessor, Barack Obama, deu o benefício a 1715 prisioneiros, cuja maioria havia sido condenada por tráfico de drogas. O recorde do século XX, contudo, permanece com Franklin Delano Roosevelt, que perdoou cerca de 3600 criminosos - entre eles, a indivíduos presos por tráfico de álcool antes da suspensão da Lei Seca em 1933 e por se opor à entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial em 1917.
O “perdão” chinês
O "instituto da graça" está presente na maioria das constituições democráticas do mundo: França, Holanda, Suécia, Noruega e Dinamarca estão entre os países que concedem ao presidente o direito de perdoar penas. Na Bulgária, na Alemanha, na Polônia e na Coreia do Sul, o benefício é condicionado à análise de um colegiado. No Uruguai e na Suíça, este poder pertence ao Legislativo.
É na China de Xi Jinping, contudo, onde o indulto presidencial passou a servir mais abertamente aos interesses do Estado: em 2015, por ocasião do 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, o ditador - então sem plenos poderes para realizá-lo - solicitou uma ordem especial de perdão à legislatura da China, visando principalmente a soltura de veteranos militares que lutaram pela China na década de 1940 e cometeram crimes durante ou após o fim do serviço. Esta foi apenas a oitava vez na qual prisioneiros foram libertados por ordem do presidente no país desde 1975, no apagar das luzes da Revolução Cultural de Mao Tsé Tung. Ao conceder o indulto, é precisamente no lendário genocida que Xi Jinping está mirando.
“Xi está seguindo Mao nessa medida”, diz John Kamm, diretor executivo da Fundação Dui Hua, em entrevista ao Wall Street Journal, naquele ano. O próprio Kamm propôs a concessão de indultos especiais antes dos Jogos Olímpicos de Pequim de 2008 e um ano depois para o 60º aniversário da fundação do país mas, em ambos os casos, a ideia foi negada por autoridades judiciais e de relações exteriores chinesas. "No final, nada foi feito porque, como vários funcionários me disseram, apenas o presidente Mao tinha o poder de tomar tal decisão, e nenhum líder desde o 'Grande Timoneiro' ousou conceder um perdão especial", disse Kamm.
Desde então, Xi continuou a usar de sua prerrogativa para fortalecer o culto à sua imagem: em 2019, foram concedidos indultos especiais para nove categorias de prisioneiros, no aniversário de 70 anos da fundação da "Nova China".
"Os indultos mostram a prudência da sociedade chinesa ao sentenciar os condenados e a confiança na governança da liderança. Eles também ajudam a popularizar o conceito de Estado de Direito, temperar a justiça com misericórdia, manter a estabilidade social e defender a proteção judicial dos direitos humanos", afirmou, na ocasião, o presidente do Comitê Permantente da Assembleia Popular Nacional, Li Zhanshu, que deliberou pela concessão do perdão, chancelado pelo ditador.
Mais uma vez, o decreto beneficiou principalmente antigos apoiadores do partido, além de idosos e deficientes físicos. Dissidentes presos por "ameaça à segurança nacional" - uma categoria bastante arbitrária na China, que inclui jornalistas, ativistas e inimigos do partido - ficaram de fora.
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