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O mundo chora a morte de milhares de pessoas, na maioria idosos. Uma grande história de vida, um apoio ao país, aos nossos filhos. No entanto, é interessante notar que, enquanto todo mundo defende o altruísmo, pedindo para as pessoas se trancarem em casa, ninguém fica indignado ao perceber que, nesses tempos de hospitais lotados, o aborto na Itália é considerado como um serviço tão essencial quanto a eutanásia.
Comecemos com essa última. Nos países onde a eutanásia e o suicídio assistido são legais, há planos de se enviar comprimidos letais pelo correio para as pessoas que os solicitarem. Kim Callinan, uma das líderes do movimento pró-eutanásia nos EUA, afirmou que o coronavírus é uma oportunidade para o suicídio assistido. “A telemorte está ganhando importância como modalidade crucial de prestar assistência médica”, escreveu ela. Em poucas palavras, o paciente se consulta com o médico por teleconferência para receber diretamente em casa os comprimidos que o levarão à morte.
Não é fácil entender a lógica por trás desse mercado que, num momento em que seria preciso ajudar as pessoas doentes e sozinhas, concentra seus negócios no desespero que o vírus desperta (os suicídios dos enfermeiros e dos doentes de Covid-19, assim como os tratamentos involuntários [geralmente em relação a transtornos mentais], estão aumentando).
Nos Estados Unidos, ao contrário, diversas clínicas do colosso abortista Planned Parenthood estão fechando a pedido de alguns estados (aqui um exemplo), como Texas, Ohio e Mississippi. Por outro lado, há um aumento nos pedidos por serviços de aborto em casa (com a pílula Ru486) e nas consultas médicas por teleconferência.
Enquanto no Reino Unido, onde a lei requer que dois médicos aprovem o procedimento, treze deles pediram ao secretário de Saúde, Matt Hancock, a alteração da norma a fim de que apenas um médico ou enfermeiro ou obstetra dê a aprovação por causa da situação de emergência que exige que os profissionais de saúde cuidem de outras coisas. Mas Hancock foi além, permitindo o aborto em casa, algo nunca legalizado no Reino Unido, em nome do estado de exceção. No dia 25 de março, contudo, o governo voltou atrás. Mas a ideia agradou tanto que até a Irlanda do Norte está tentando liberar o aborto em casa.
Mesmo na Itália, há quem comece a denunciar a falta de abortos para fazer avançar na mesma causa (leia essa carta para o Quotidiano Sanità). Portanto, enquanto alguns defendem que se salve vidas a qualquer custo, faz-se de tudo para eliminar outras, aproveitando a situação de emergência para conseguir algo que aumentará a quantidade de bebês mortos.
Mas não nos tornamos um país altruísta onde se repete sempre que é preciso ficar em casa e não ir nem mesmo à Missa ou à igreja para proteger as pessoas mais frágeis? Essa questão não pode nos impedir de perceber que a lógica do “vamos ficar todos em casa” nem sempre é tão altruísta assim. Há quem a obedeça (desejando a morte de quem põe um pé para fora de casa) porque, na realidade, eles estão mais interessados em salvar a própria pele do que os idosos.
Claro que se poderia argumentar que a eutanásia é uma escolha, enquanto ficar doente de coronavírus não. Mas o raciocínio cai por terra diante da lógica do aborto a qualquer custo, quando, nome da nossa saúde e liberdade (que não aceitamos que seja reduzida), estamos dispostos a matar um ser inocente. Então só dá para desconfiar que a generosidade (da qual o mundo parece, de uma hora para outra, ter-se tornado capaz) é apenas uma retórica politicamente correta (e também muito cômoda) que se ocupa de si mesma, sem se preocupar com o bem comum, o futuro ou com a saúde da Itália, que em breve pode ficar literalmente de joelhos.
A lógica da autopreservação pode ser de fato a mesma do aborto: “Morte sua, vida minha”. Talvez por isso aqueles que levantam a hipótese de que só os idosos devem ser mantidos em quarentena e as pessoas sãs com menos de 55/60 anos devem pegar o vírus para tentar adquirir imunidade de rebanho correm o risco de ser apedrejados.
Tudo isso nos diz que a liberdade não é fazer o que se quer: abortar, matar e, no caso do coronavírus, até se privar dele - aguardando que as pessoas morram, o vírus passe e, com alguma sorte, não nos atinja. A liberdade é afirmar o bem, um bem maior (o comum) do que o nosso interesse como indivíduos e, portanto, também nos sacrificarmos pelo outro.
Benedetta Frigerio, é jornalista e bacharel em Ciências Políticas pela Universidade Católica de Milão.