Uma hora a pandemia de coronavírus vai passar. Seja daqui a semanas, meses, um ano e meio (como já teve gente prevendo) ou, mais improvável, daqui a décadas (como as pandemias do passado), de uma coisa se pode ter certeza: vai passar. E, quando passar, os muitos de nós que tivermos a sorte de sobreviver seremos pessoas diferentes, provavelmente num mundo igualmente diferente.
Sim, porque a pandemia do coronavírus tem esse poder estranho de infectar uns poucos, mas contaminar praticamente todos os mais de 7 bilhões de habitantes do planeta Terra. Mesmo em isolamento, é impossível se esconder. O coronavírus como ideia tem várias mutações e às vezes se apresenta como uma revolução política e às vezes como uma emergência sanitária. E, assim como o vírus em si, que não sabe nem se é um ser vivo ou uma partícula, o coronavírus como ideia ora é peste, ora esperança.
Que o mundo, em seus aspectos macro, como economia, política e até organização religiosa, estará muito diferente quando a pandemia terminar não há muitas dúvidas. Estão aí as páginas e mais páginas de discussões sobre a necessidade ou não de isolamento e as batalhas político-partidárias em torno da capacidade de liderança de Bolsonaro ou Trump que não me deixam mentir. Mas o mundo é grande demais e, embora eu pense nele, tenho consciência da minha pequenez.
Por isso me interessa mais o homem, o indivíduo, a unidade incrivelmente complexa que forma esse todo a que damos o nome de Humanidade. O que será dele quando tudo isso passar? No Natal de 2020, por exemplo, será que ele rezará e agradecerá pelo fim do confinamento? Ou será que, tendo visto a morte de perto, por mais que seja uma proximidade apenas simbólica, ele se deixará levar pelo hedonismo que caracterizaram os sobreviventes das pestes do passado?
Seremos livres? Aliás, somos livres?
Já de cara o coronavírus tem o poder de fazer com que pensemos nas nossas escolhas de vida. E aviso novamente: vou me furtar aqui de analisar as escolhas que tomamos enquanto povo para me ater às escolhas individuais, pequenas mesmo, aquelas que terão efeito menor sobre os cálculos do PIB e maior sobre a forma como encaramos o espelho todas as manhãs.
A primeira escolha que o coronavírus nos obrigou a fazer foi pelo isolamento ou não – para quem teve o privilégio da escolha, claro. E nessa escolha estão embutidos vários valores que até fevereiro de 2020 eram muito caros a muita gente, mas que depois se perderam em certa anarquia de convicções. Entre eles, o mais importante é o valor da liberdade própria e alheia.
Depois que a pandemia passar, que tipo de homem emergirá do outro lado: um que foi livre para seguir sua própria consciência ou um que se sente livre mesmo depois de se submeter à pressão do grupo, em que sentido for? E tão importante quanto: um que respeita a liberdade alheia ou um que, veja bem, tudo é relativo e se eu o acorrentei ao pé da cama foi para o seu próprio bem?
Outro valor que o isolamento por causa do coronavírus pôs em xeque foi o da coragem e covardia, duas coisas que até então eram facilmente identificáveis, mas que a reação ao vírus e a ameaça de morte por ele representada só confundiram. Tanto que, no momento em que escrevo este texto, confortavelmente confinado em meio à pandemia, tudo o que vejo e analiso, dos xingamentos aos argumentos bem articulados, dos gráficos às observações sarcásticas, são posturas que alternam covardia e coragem ao gosto do observador.
O que me leva a perguntar: quando a pandemia terminar (e ela vai terminar, repito), quem será capaz de se olhar no espelho com orgulho e quem reconhecerá o erro de ter desumanizado o adversário? Não que haja vergonha alguma em reconhecer erros. Aliás, esse é um dos maus legados do cinema e da forma como ele retrata os dramas históricos: a ideia de que para a covardia não há redenção. Há.
A onipresença da morte
Por causa do coronavírus, minha geração e as gerações mais novas nunca estiveram tanto em contato com a morte. O que parece um disparate de ser dito, dada a onipresença da morte nos telejornais desde pelo menos a década de 1990. Ao que parece, contudo, suportamos bem a ideia de termos 20 mortos numa chacina num fim de semana ou 200 mortos num acidente de avião. Mas a contagem cotidiana dos mortos por um ente invisível foge à nossa compreensão e por isso mesmo nos abala com especial intensidade.
Do outro lado dessa travessia, e depois de ter encarado a morte “de perto”, arrisco-me a dizer que poucos serão os mesmos de antes. Porque a morte é a única certeza que temos e, embora possamos discordar quanto ao fato de ela ser ou não o fim de todas as coisas, acho que podemos concordar que ela é o fim de um ser localizado num tempo e espaço bem definidos ao qual damos o nome de vida.
Antes da pandemia, a morte era motivo de espetáculo noticioso, para alguns, ou de uma incômoda presença que se buscava ignorar, para outros. Com o coronavírus, porém, a morte, própria e alheia, passou a ser uma possibilidade. Basta uma tosse seca para que se pense em tudo o que o fim (ou semifim) representa. Isso com certeza deixa marcas na alma. A não ser para aqueles que realmente não acreditam em alma. Ou até nesses, vá lá.
Historicamente, uma das formas de se lidar com isso foi o hedonismo desenfreado. Sim, ainda mais desenfreado do que o que vínhamos testemunhando nas décadas recentes. Será que o homem que estiver na arquibancada da Olimpíada de Tóquio, em 2021, será um homem moralmente mais frouxo, dedicado a aproveitar tudo o que a vida tem a dar, sem se importar com as consequências? E quais serão as consequências de ele não se importar com as consequências?
A alternativa ao hedonismo seria um modo de vida estoico, isto é, uma forma mais calma e racional de encarar a vida, sem se deixar levar pelas paixões do espírito - entre as quais o pânico. É um caminho muito mais difícil do que o da devassidão física, moral e intelectual. Mas talvez por milagre o homem desse futuro ao mesmo tempo tão próximo e distante seja justamente aquele que parará para pensar no que o motivou a chegar até aqui, para concluir que foi o puro desejo de ser uma pessoa melhor, capaz de aprender a morrer. E talvez este homem escolha, pela primeira vez, o caminho mais difícil.
Cotidiano
Mais importante ainda é imaginar como todas essas reflexões e possíveis mudanças se refletirão no cotidiano desse homem pós-coronavírus. No convívio entre os colegas de trabalho, por exemplo. E não me refiro apenas ao aperto de mão e ao uso de álcool em gel. Penso, ou melhor, imagino se a pandemia terá algum efeito bom ou nocivo na guerra cotidiana pela sobrevivência, reconhecimento e sentido da vida profissional. Saberá o sobrevivente ver no outro também um sobrevivente, por exemplo?
As relações familiares tampouco serão as mesmas. Até porque a onipresença da morte, nem que seja apenas como um gráfico ou uma estatística anunciada num telejornal, tem esse poder de fazer com que olhemos de outra forma para aqueles com os quais compartilhamos laços que vão bem além do código genético ou do sobrenome. Será que esse homem hipotético continuará adiando aquela visita ao mais velhos? E, meu Deus, continuará ele rompendo relações por coisas tão transitórias quanto, sei lá, política partidária?
Penso ainda na relação do homem com a abundância que até aqui vivemos. Abundância de alimentos, de oportunidades, de informações, de beleza e de liberdade – sim, de novo ela. Reconheceremos, afinal, que vivemos até ontem mesmo numa era de fartura ou continuaremos gastando o precioso tempo de que dispomos para reparar o passado irreparável e transformar radicalmente um futuro que nem sabemos se concretizará mesmo?
Seja lá como for, cada um será diferente depois que essa pandemia passar. E haverá aqueles que, de tão diferentes, optarão a ser exatamente iguais ao que eram em fevereiro de 2020. Porque é nisso que reside a beleza do ser humano: sua capacidade de fazer escolhas hoje e de abdicar de fazer escolhas amanhã, se assim ele achar melhor.
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