Um dos filmes mais badalados do ano tem título de longa de ação (’Corra!’, ou ‘Get Out’ no original em inglês), custou módicos US$ 4,5 milhões (já faturou US$ 215 milhões em bilheteria) e tem provocado debates sobre racismo, embora seja uma mistura de suspense com ficção científica à la Black Mirror, a cultuada série que aborda o lado obscuro da evolução tecnológica.
Na verdade, ‘Corra!’, que estreou nesta quinta-feira (18) nos cinemas brasileiros, é tudo isso ao mesmo tempo, incluindo o conceito de libelo antirracista. É uma das sensações da temporada, embora não deva ser tratado exatamente como surpresa, dado o barulho que causou no Sundance Festival, em janeiro.
Após suas primeiras sessões, alcançou a rara avaliação máxima em sites que compilam as críticas em território norte- americano, como o Rotten Tomatoes, e acabou adquirido pela gigante Universal Pictures para ser lançado, no mês seguinte, com status de grande produção. ‘Corra!’ chegou a nada menos do que 2,7 mil cinemas só nos EUA, em pleno fim de semana do Oscar — a distribuidora queria aproveitar a onda de valorização de trabalhos dos artistas afro-americanos em títulos como os extraordinários ‘Moonlight’, ‘A 13ª Emenda’ e ‘Eu Não Sou Seu Negro’.
Extraordinário é um adjetivo que cabe muito bem em ‘Corra!’ — pela maneira original com a qual fala de preconceito. A trama começa de modo convencional, quando o casal inter- racial formado por Chris (Daniel Kaluuya) e Rose (Allison Williams) vai passar um fim de semana na casa da família dela, no interior. A ideia é apresentá-lo aos pais da garota, ele um neurocirurgião (Bradley Whitford), ela uma psiquiatra adepta das técnicas de hipnose (Catherine Keener).
Clima lembra Cronenberg
Tudo ocorre sob a mais perfeita ordem, ou quase isso, com os sogros brancos mostrando-se receptíveis ao genro negro. Conforme a trama de ‘Corra!’ avança, e entram em cena os outros atores negros, especialmente os dois empregados da casa (Betty Gabriel e Marcus Henderson), percebe-se que algo foge à normalidade. Porém, a direção hábil de Jordan Peele (conhecido como ator e roteirista de comédias da TV, a exemplo de Key and Peele e MADtv) põe o estranhamento em suspeição ao construir a narrativa a partir do olhar de Chris. Seria apenas coisa da cabeça do jovem negro ou, de fato, haveria algo por trás daquelas aparências?
Assim descrita, essa imagem se confunde com um caso qualquer de racismo, afinal, não é incomum que este seja constatado ao se materializar assim, discretamente, muitas vezes perceptível somente aos olhos das vítimas. Mas Peele, que tem 38 anos e assina também o roteiro do longa, vai muito além disso.
A partir dessa premissa, constrói uma narrativa instigante, trabalhando códigos do terror (o espectador vivencia o medo com descobertas de Chris naquela “casa no mato”, quase um clichê do gênero) e até da comédia (o alívio cômico, aspecto mais discutível do filme, geralmente se estabelece a partir das participações do amigo confidente do protagonista, interpretado por Lil Rel Howery, que fica na cidade recebendo via telefone notícias da viagem de Chris).
Faz diferença fruir ‘Corra!’ sem maiores informações sobre quais são essas descobertas, não exatamente porque a surpresa é importante, como ocorre usualmente nos suspenses mais ordinários, mas porque a revelação prévia vai acabar afetando aquilo que for visto pelo espectador nas sequências anteriores.
A estrutura do filme é, a rigor, a de um suspense – dos bons. Lá pelas tantas, parece que se está diante de um filme de David Cronenberg, tanto pela abordagem da ciência a serviço de objetivos nada nobres quanto pela atmosfera de estranhamento e claustrofobia que, aos poucos, vai se revelando aos olhos de Chris. ‘Corra!’ é tão rico e tão bem realizado que nem parece a estreia de Peele como diretor de cinema.
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