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A Defensoria Pública do estado de São Paulo resolveu implementar nos concursos para seus cargos uma cota para pessoas transexuais, além das cotas já oferecidas para negros, indígenas e pessoas com deficiências. A decisão, anunciada no mês passado, foi do Conselho Superior do órgão.
As cotas consistem em reservar 30% das vagas em concursos e estágios para negros e indígenas, 5% para deficientes e 2% para transexuais, informa a defensoria em seu site. Além da nova oferta de cotas para trans, a cota racial foi ampliada: nos concursos anteriores era de 20%. Também foram reservadas 12,5% das vagas para “mulheres em situação de violência doméstica e familiar”. A política também será implementada “na medida do possível” em cargos comissionados e contratos de prestação de serviços contínuos.
O tamanho da cota para transexuais — de 2% — foi calculado pela Defensoria Pública levando em conta o que supostamente seria o índice de trans na população geral. A fonte para o cálculo é um artigo publicado em 2021 na revista Scientific Reports, do grupo Nature, pelo professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP Giancarlo Spizzirri, com seis colaboradores. O estudo é parte de uma investigação maior conduzida pelo Instituto DataFolha entre novembro e dezembro de 2018, e foi o primeiro a avaliar a diversidade de “gênero” em um país da América do Sul.
Mas há um problema de sobrerrepresentação nessa porcentagem. Spizirri e colegas não calcularam que há 2% de transexuais no Brasil. Essa estatística do artigo é uma estimativa do número de “pessoas gênero-diversas”, que também incluem transexuais. Os autores definem quem são essas pessoas por dois termos “guarda-chuva”: “transgênero” e de “gênero não-binário”. Alternativamente, usam o termo “não-cisgênero”. “Cisgêneros” ou “cis” seriam as pessoas que não são trans.
Transgêneros seriam “pessoas que se identificam com um gênero que é incongruente ou diferente daquele atribuído a elas ao nascer”. Não-binários seriam aqueles que “sentem que sua identidade de gênero está fora ou entre identidades masculinas e femininas, por exemplo, uma pessoa que sente que é de ambas as identidades ou nenhuma delas”. O termo “transexual”, usado pela Defensoria Pública ao comunicar suas cotas, não aparece no artigo de Spizzirri, exceto nas referências.
O método dos pesquisadores consistiu em entrevistar uma amostra de 5930 pessoas em locais públicos do Brasil. Se é possível considerar transgênero sinônimo de transexual, o tamanho da reserva de vagas deveria ser de 0,7%, proporção de transgêneros da amostra do estudo (40 pessoas). Porém, o próprio estudo informa que 60% desses transgêneros “relataram não querer ter características do gênero binário oposto”. Como a própria definição de transexual é querer ter essas características, então a cota proporcional seria 0,2%, ou seja, um décimo do que a Defensoria está oferecendo.
A Gazeta do Povo falou com a Defensoria Pública de São Paulo por telefone e e-mail, mas não obteve resposta a respeito da questão da sobrerrepresentação de pessoas trans através das cotas até o fechamento da reportagem.
Confusões conceituais de fundo ideológico causando problemas previsíveis
Em dezembro de 2020 a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) cancelou uma matrícula do curso de medicina por suspeita de fraude em seu sistema de cotas para trans, no qual a instituição foi pioneira. Quem perpetrou a fraude teria sido João/Joana/Jô Magalhães, que usa barba, mas se diz uma pessoa “não-binária”. Falando ao site G1, Gabriel Nascimento, o presidente da comissão que cancelou a matrícula de Magalhães, disse que um dos motivos da decisão foi que as vagas eram destinadas a pessoas trans e não a pessoas em transição.
Historicamente, a transexualidade é definida como um profundo e persistente desejo de ter um corpo de um sexo diferente daquele com o que se nasceu. Esse desejo é hoje classificado como um transtorno pela psiquiatria — transtorno de disforia de gênero. Assim, o diagnóstico psiquiátrico seria uma condição necessária para definir uma pessoa como transexual. Mas não é uma condição suficiente, dado que a maioria das crianças que manifestam a disforia crescem sem se tornarem transexuais e geralmente vivem suas vidas adultas como homossexuais ou bissexuais. São transexuais as pessoas para as quais a apresentação no sexo oposto, com auxílio médico, revelou-se o tratamento mais adequado para a disforia.
Todo esse arcabouço teórico e prática médica está sob ataque de uma base ideológica associada a ideias acadêmicas como a “teoria queer” e a desnecessária distinção entre sexo e gênero. Um dos maiores proponentes dessa distinção foi o psicólogo John Money, famoso por práticas terapêuticas antiéticas que envolveram tentar criar como menina um bebê que perdeu o pênis em uma circuncisão malfadada (a “menina” insistia que era menino, e Money escondia o fracasso do estudo do público). Além de insistir em usar o termo “gênero” em vez de “sexo”, presumindo que não havia nada de biológico em “gênero”, Money cunhou também o termo “papel de gênero”.
Ativistas inspirados por essas ideias insistem no termo “transgênero” em vez de “transexual” e estigmatizam como “transmedicalizadas” ou “transmed” as pessoas transexuais que insistem que a definição clássica deve ser respeitada, e que não basta afirmar-se pertencente a um “gênero” para realmente ser tratado como tal, sem qualquer esforço de transição envolvendo tratamento médico. O extremo desse ativismo levou a uma espécie de misticismo de gênero em que jovens alegam a sério que se identificam com “gênero fofo” e “gênero praia” — uma clara confusão de idiossincrasias de personalidade e gosto com gênero e identidade sexual.
Terapeutas que seguem essas ideias iniciaram práticas médicas irresponsáveis de prescrição de bloqueio da puberdade e tratamento hormonal para jovens, especialmente garotas adolescentes que não se encaixam no perfil diagnóstico da disforia de gênero. É a chamada “terapia afirmativa”. No mundo anglófono surgiram diversos casos de garotas que se arrependeram de remover mamas e tomar testosterona, intervenção que pode engrossar sua voz permanentemente.
No livro Ação Afirmativa ao Redor do Mundo (republicado pela É Realizações em 2016), o filósofo americano Thomas Sowell documenta diversos casos de crescimento vertiginoso e artificial de grupos assim que esses grupos recebem tratamento diferenciado de autoridades ou da lei. Ou seja, a própria criação das cotas é a fonte das “fraudes” nas cotas, pois cria um incentivo para que as pessoas passem a se identificar com os grupos favorecidos, por mais tênue que seja sua relação com eles.
Já está havendo, como documentado por observadores, um contágio social de identidades LGBT entre jovens, especialmente nos Estados Unidos. Por lá, o número de pessoas trans saltou de poucas unidades por 100 mil pessoas para 5% dos jovens com menos de 30 anos. Parte dessa inflação veio justamente das inovações conceituais do ativismo identitário com identidades especulativas de difícil aferição objetiva como “não-binário”. A cota para transexuais da Defensoria Pública do estado de São Paulo pode representar um incentivo extra para mais pessoas confusas adotando identidades que pouco refletem o que realmente são.