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Coxinhas x Petralhas: por que os fãs radicais de Lula e Bolsonaro são tão parecidos?

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante comício, em São Paulo | Patricia Monteiro/Bloomberg
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante comício, em São Paulo (Foto: Patricia Monteiro/Bloomberg)

A paixão e a fúria com que opiniões políticas cada vez mais polarizadas ocupam a internet têm levado pesquisadores, tanto no exterior quanto no Brasil, a aplicar ao ativismo político, e ao consumo e comentário do noticiário sobre política, ferramentas desenvolvidas pelas ciências sociais para lidar com um tipo de fenômeno, ao menos em aparência, completamente diferente: os “fandoms”. 

Um “fandom” é, em sua expressão clássica, uma comunidade de pessoas devotamente apaixonadas por um produto cultural, como uma série de livros, filmes de cinema ou seriados de TV. A aproximação entre os “fandom studies” e a análise política sugere que os níveis de envolvimento emocional, qualidade argumentativa e as dinâmicas sociais e psicológicas que afloram em debates entre os fãs mais aguerridos sobre o comportamento de Luke Skywalker no mais recente episódio de “Star Wars”, ou sobre os méritos relativos da série “Star Trek: Discovery”, são bons modelos para tratar da discussão online em torno do julgamento de Lula, ou da evolução patrimonial de Jair Bolsonaro. 

A aproximação entre noticiário, política e comportamentos típicos de fandom é mais profunda do que muitas pessoas considerariam plausível ou apropriado, argumenta o pesquisador Jonathan Gray em seu capítulo do livro de artigos sobre “fandom estudies”, “Fandom: Identities and Communities in a Mediated World”. O título do capítulo é, sintomaticamente, “The News”. 

Fãs são pessoas que tomaram uma narrativa e a “imbuíram de um valor simbólico especial, pessoal e/ou comunitário”, aponta ele, argumentando que o consumidor do noticiário político não é um ser estritamente racional, mas vive imerso em símbolos e emoções: é das notícias que as pessoas constroem um significado para o mundo. O noticiário televisivo, especialmente, “funciona como uma central do comando para muitos projetos de identidade pessoal e segurança que são profundamente emocionais”. 

“A política é profundamente afetiva, e deve parte de seu sucesso ao apelo emocional (...) é preciso que ela importe para o indivíduo, e seja consumida de modo emotivo”, prossegue. 

Gray analisa, ainda, alguns grupos online de fãs de programas noticiosos do mundo de língua inglesa. Ele nota que essas comunidades se formam em linhas ideológicas (há fãs de âncoras de direita e fãs de âncoras de esquerda) e encontra ali vários marcadores do comportamento de fãs – piadas misturadas a comentários sérios, grosserias, linguagem derrogatória usada contra fãs “do outro lado” – e reconhece riscos: “uma comunidade política de fãs pode restringir o livre fluxo de ideias, se seus membros se agarrarem a suas crenças e à sua versão dos fatos com a mesma solidez com que um fã do [time de beisebol] Yankees se agarra à superioridade divina da equipe”. 

No geral, no entanto, o autor tem uma visão moderadamente otimista do jogo entre emoção e racionalidade que a conversão da política em “fandom” pode trazer. 

Coxinhas e petralhas 

No Brasil, um trabalho semelhante ao de Gray foi realizado por Marcelo Alves dos Santos Júnior, que em sua dissertação de mestrado estudou os grupos de “haters” antipetistas, formados no Facebook às vésperas das eleições de 2014 e, depois, publicou o artigo “Coxinhas e petralhas: o fandom político como chave de análise da audiência criativa nas mídias sociais”, na revista Geminis, da Universidade Federal de São Carlos. 

“Consideramos fãs políticos como pessoas que fazem parte de uma audiência altamente engajada no consumo de informação sobre a política e que atua na criação de interpretações particulares por meio da produção de conteúdo na internet. Essa postura ativa dinâmicas de performance e de construção de identidades coletivas”, escreve ele. 

“A hipótese é que a prática política possui uma dimensão de engajamento que se assemelha ao paradigma da atividade fã, entendida como um regime de participação da audiência na construção de narrativas que tensionam e se situam à margem dos produtos culturais e dos textos dominantes, reconfigurando-os a partir de lógicas e de práticas de sociabilidade particulares”, prossegue. 

Santos Júnior se debruça sobre quase 40 páginas do Facebook de conteúdo político, incluindo de esquerda (“Jovens reacionários defensores da liberdade combatendo o mal”) e de direita (“Eu era esquerdista mas a zuera me curou”). 

O autor tentou entrar em contato com os administradores de todas as páginas, mas apenas os responsáveis por cinco delas aceitaram ser entrevistados. Um dos resultados das entrevistas foi a constatação de que as mesmas palavras podem ter significados diversos, dependendo do posicionamento político do fã. O trabalho deixa claro o papel da opinião política na formação de identidade coletiva e na construção de estereótipos antagônicos nos dois campos. 

“Esse conjunto de fãs está engajado na arena de disputa simbólica proporcionada pelas plataformas de mídias sociais, tendo como pano de fundo o embate ideológico. Por isso, apontamos performances e códigos interpretativos estruturados diametralmente pelos dois campos, organizando as informações do mundo político a partir de vieses e construções político-ideológicas rivais”. 

O lado escuro da força

Em 2013, outro pioneiro do estudo dos “fandoms”, Cornell Sandvoss, realizou um estudo de blogs políticos onde chamava atenção para o risco que “os investimentos auto-reflexivos dos fãs em certas formas simbólicas (como políticos e partidos) em vez de na substância (crenças e valores)” trazem para a democracia. 

Há décadas que a psicologia reconhece que a mente humana carrega uma série de vieses cognitivos inconscientes que distorcem o modo como vemos e interpretamos os fatos. A preservação da autoimagem e da identidade de grupo são importantes gatilhos desses vieses. “Muitos dos vieses cognitivos servem para nos manter confiantes em nossas percepções, ou impedir que nos vejamos como palhaços”, escreve David McRaney em seu livro “Você Não É Tão Espero Quanto Pensa”. 

Há estudos que sugerem que o melhor modo de convencer alguém a aceitar um fato desagradável é apresentá-lo de uma forma que não afete o senso de identidade do interlocutor. Quando há uma dinâmica de “fandom” envolvida, essa tarefa pode ser especialmente difícil. 

Em outro artigo para o livro “Fandom: Identities and Communities in a Mediated World”, este intitulado “Fantagonism”, o pesquisador Derek Johnson chama atenção para a hostilidade e o antagonismo que lhe parecem centrais no “fandom” de séries de TV. Seu caso específico de estudo é uma temporada de “Buffy, a Caça-vampiros”. 

O universo ficcional de um produto como um seriado televisivo cria um “espaço existencial seguro” em que os fãs estabelecem identidades e significados pessoais e próprios, aponta o autor. O problema é que o desenvolvimento da série pode acabar violando essas identidades – por exemplo, quando um personagem se comporta de modo inesperado, ou é morto, ou parte do “cânone” ficcional estabelecido é violada, o que pode atender às expectativas de uma parte do “fandom” e violar as de outra. 

“Interesses em conflito defendem ‘verdades’ que codificam e recodificam o fandom dentro de parâmetros contestados continuamente”, escreve Johnson. “Fãs não concordam em discordar com facilidade – opiniões divergentes transformam-se em interesses em conflito, disputando a definição de um consenso avaliativo e interpretativo”. 

Esses conflitos podem explodir em hostilidade – por exemplo, contra os produtores da série – e, quando resolvidos, às vezes têm o poder de, num processo orwelliano, reescrever a história: episódios e temporadas antes desprezados são transformados em “clássicos”, ou vice-versa: “no futuro, faz-se com que a interpretação do material seja vista como uma extensão de uma vista supostamente objetiva e consensual do passado”.

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

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