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China incentiva a produção de artigos falsos ao obrigar médicos a trabalhar e pesquisar por aumentos| Foto: Divulgação/China/AFP

Em 1º de setembro de 2013, a revista inglesa The Economist reportou que uma equipe de policiais invadiu um pequeno apartamento no 15º andar de um prédio residencial em Pequim. Em pânico, os dois homens encontrados jogaram um saco plástico cheio de notas de 100 iuanes pela janela. Eram suspeitos de pirataria; mas não de eletrônicos, equipamentos tecnológicos, DVDs ou itens de grife. Usando  bancos de dados e manipulação de imagens através do Photoshop, a dupla produzia artigos científicos falsos e versões falsificadas de periódicos médicos existentes nos quais vendiam espaços para publicação. Cinco anos depois, a China anunciou ter ultrapassado os Estados Unidos como o país que mais publica artigos científicos no mundo.

Muito antes da descoberta dos primeiros esquemas conhecidos como “paper-mills” — literalmente, empresas que fabricam publicações científicas —, os fartos casos de artigos falsos vindos do país, envolvendo plágio, fabricação de dados ou mesmo a invenção completa do conteúdo já haviam chamado a atenção do mundo. Pouco foi feito a respeito e a “ciência chinesa”, com suas vultosas menções em periódicos internacionais, continuou a ser exaltada. Até que, em janeiro do ano passado, o trabalho de três investigadores anônimos e uma pesquisadora especializada na identificação de artigos falsos trouxe novas e impressionantes evidências à tona.

À frente do portal Science Integrity Digest, a pesquisadora Elizabeth Bik e os três detetives publicaram uma lista de mais de 600 artigos publicados que parecem ter sido fabricados por uma dessas empresas — a maior já identificada, apelidada de “empresa girino” por conta das formas que apareceram nas análises de imagem dos jornais, similares aos filhotes de sapo. Todos apresentavam títulos e sequências e palavras semelhantes. Até março de 2021, o grupo identificou coletivamente mais de 1.300 artigos que possivelmente foram fabricados por “empresas” deste tipo.

A investigação desencadeou uma série de revisões em artigos e ascendeu suspeitas no mundo da ciência. No ano passado, a pesquisadora Laura Fisher, da Royal Society of Chemistry, notou similaridades entre artigos submetidos ao periódico, embora nenhum deles fosse da mesma autoria ou publicado pela mesma instituição de ensino. Em janeiro deste ano, Fisher retirou 68 artigos do periódico de outras duas publicações ligadas à RSC também; outros 15 estão sob investigação. O que há de comum entre eles? Todos vieram de hospitais chineses.

O fenômeno das fábricas de artigos já era amplamente conhecido na ciência; mas nunca havia sido admitido oficialmente como a possível origem de publicações retiradas de circulação (que costumam ser abafadas), como a RSC fez, ainda que em tom de suspeita. "Somos um dos vários editores que foram afetados por tal atividade", admitiu a editora, na declaração oficial. Desde que as suspeitas foram levantadas, outros periódicos ligados à organização retiraram pelo menos 370 artigos vinculados a esses esquemas — mais uma vez, todos originários de hospitais na China, a maioria publicados nos últimos três anos. Só em 2020, a Nature identificou mais 197 retratações de artigos vindos destes hospitais, pelos mais diversos problemas.

Por que a China?

A China não é o único país que convive com as “fábricas de artigos”: segundo a pesquisadora Catriona Fennell, à frente da publicação na maior editora científica do mundo, a Elsevier, há evidências de “trapaça industrializada” também em países ocidentais, no Irã e na Rússia. Algumas razões específicas, entretanto, levam o gigante asiático ao topo das suspeitas.

Desde a década de 1980, quando a China começou a investir para valer em ciência, estabeleceu-se um sistema de créditos editoriais para avaliar pesquisadores: quanto mais publicações científicas, maiores as chances de receber promoções, aumentos ou mesmo bônus consideráveis em dinheiro. Na prática, o sistema acabou por fomentar uma corrida desenfreada por espaços em periódicos de “alto impacto” — os citados com mais frequência em artigos de outros acadêmicos. Estes fatores também foram incorporados ao critério de julgamento dos candidatos e pesquisadores.

“Essa exigência de que médicos jovens publiquem artigos para conseguir promoções é impossível de cumprir. A maioria destes médicos trabalham em clínicas e clínicos não necessariamente são pesquisadores; eles sequer têm estrutura para pesquisar — e ainda assim têm que cumprir o requerimento”, explica Elizabeth Bik, em entrevista à Gazeta do Povo.

O jornalista científico Leonid Schneider, que publicou as listas de periódicos falsos flagrados pelos investigadores, revelou também alguns comentários recebidos pela equipe de detetives mediante o esclarecimento do caso. "Sem artigos, você não consegue promoção; sem uma promoção, você dificilmente pode alimentar sua família. Também quero ter algum tempo para fazer pesquisas científicas, mas é impossível. Durante o dia, faço cirurgias ambulatoriais; depois do trabalho, tenho que cuidar dos meus filhos. Só tenho um pouco de tempo para mim depois das 22h, mas isso está longe de ser suficiente porque a pesquisa científica exige muito tempo. O ambiente atual na China é assim", escreveu um dos beneficiários dos artigos falsos.

Some-se a isto a seletividade com a qual o todo-poderoso Partido Comunista Chinês trata os casos que rompem o Grande Firewall.

“As fábricas de artigos (..) são o segredo da supremacia da produção científica chinesa que nós no Ocidente tanto admiramos e nos esforçamos para acompanhar. A realidade é: ninguém se importa se a pesquisa publicada é real, ligeiramente falsificada ou inteiramente inventada. Os fraudadores enfrentam poucas consequências se estiverem bem conectados, e sempre se pode denunciar uma conspiração ocidental. As lições de boas práticas científicas pregadas pelas elites científicas chinesas nem se aplicam a elas mesmas, como demonstrou o caso de Cao Xuetao”, escreve Schneider.

Punições brandas ou inexistentes

O caso ao qual Schneider se refere é o do presidente da Universidade de Nankai, Cao Xuetao, imunologista chinês de fama nacional que foi posto sob suspeita com a investigação de Elizabeth Bik. O médico teve quatro artigos retirados de circulação pelo Journal of Biological Chemistry em 2020; algo que já havia acontecido em 2015. Outros três artigos estão sob investigação. Há dois meses, o cientista recebeu a ordem de corrigir as “imagens mal utilizadas” nos artigos e recebeu punições leves.

Ainda assim, foi inocentado, causando insatisfação entre vários estudiosos que acompanham o caso — entre eles, a própria Bik. “Alguns dos artigos parecem conter erros honestos, mas a maioria contém imagens que claramente foram feitas em Photoshop. Esses papers deveriam ter sido retratados e estão todos por aí. Por outro lado, já ouvi histórias de pesquisadores que foram flagrados cometendo estes erros e simplesmente desapareceram”, conta a pesquisadora.

“A piada à parte é que muitas dessas emissões falsas de fábricas de papel apregoam os supostos poderes da Medicina Tradicional Chinesa (TCM, na sigla em inglês) para curar o câncer e outras doenças, tudo porque o próprio presidente Xi Jinping é um grande fã do TCM”, acusa Schneider. O jornalista, contudo, lembra que há sistemas de incentivo ao autoplágio e à fabricação de dados também nos Estados Unidos e na Alemanha.

Escândalos em série

Como resultado desse sistema, há 15 anos, a China já era protagonista de escândalos com falsas revisões por pares — processo no qual cientistas revisam os artigos uns dos outros, para garantir a lisura e o rigor dos métodos de pesquisa e resultados alcançados. Só a rede desmantelada em 2013, por exemplo, demonstrou que o custo de colocar um artigo em um dos jornais falsificados era de até 650 dólares, segundo a polícia, enquanto a compra de um artigo falso saía por até 250 dólares. Em 2017, o assunto voltou à tona com novas denúncias de repercussão internacional, levando o Ministério da Ciência e Tecnologia da China (MOST) a afirmar que reprimiria estas produções após a retratação de 107 artigos na revista Tumor Biology.

De retratação em retratação, a credibilidade da ciência chinesa vai por água abaixo. “Isso lança uma desconfiança enorme sobre o trabalho de chineses que estão tentando fazer ciência de qualidade. Conheço editores que já estão automaticamente recusando artigos vindos da China”, diz Bik. No dia 2 de fevereiro deste ano, um editorial da revista Molecular Therapy afirmou que “o volume crescente desta‘ ciência lixo ’está causando estragos na credibilidade da pesquisa proveniente da China e cada vez mais lançando dúvidas sobre a ciência legítima da região”, opinião que encontra respaldo em outras grandes editoras científicas.

Desde o caso de 2017, são previstas punições mais severas para os pesquisadores envolvidos com más práticas — falsificação de resultados, plágio, execução de experimentos sem aprovação ética, intromissão no processo de revisão por pares e desvio de fundos para pesquisa —, aplicadas conforme a gravidade, impacto e recorrência da infração. Em fevereiro do ano passado, a China também anunciou o fim das recompensas em dinheiro pela publicação de artigos extras. Para os pesquisadores, o passo é importante, mas insuficiente, uma vez que os pesquisadores chineses continuam sob a pressão de uma produção intensa sem critérios claros.

Para piorar, desde meados de 2018, pesquisadores acusados de má conduta perdem pontos no tenebroso sistema de crédito social do país, uma gigantesca base de dados que monitora e avalia a confiabilidade de indivíduos, empresas e entidades governamentais, com base em informações coletadas de registros financeiros, criminais e governamentais, cartórios e plataformas de crédito online. Com uma baixa pontuação, estes acadêmicos são impedidos de obter um empréstimo bancário, abrir uma empresa ou se candidatar a um emprego no serviço público. Ou seja: têm o resto de sua vida arruinada por se submeterem à corrida pela falsa excelência de uma falsa meritocracia. Ou desaparecem.

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