Diagnósticos relacionados à psicopatia não são aplicados por psiquiatras em crianças, mas há sinais preditores de risco do problema.| Foto: Pixabay
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A pequena cidade de Nova Fátima, com pouco mais de sete mil habitantes no norte do Paraná, começou a semana em choque. Um menino de nove anos de idade, acompanhado de um cachorro, foi registrado nas câmeras de segurança de um hospital veterinário matando 23 animais e ferindo outros 40 em uma sessão de tortura de 40 minutos, ao invadir o local no domingo (13).

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Os animais, na maioria coelhos, foram atirados contra paredes, tiveram membros arrancados e corpos despedaçados. O menino, que é criado pelos avós, não tem histórico de violência ou registro de problemas psiquiátricos. Ele havia sido visto no local no dia anterior — Dia das Crianças —, na festa de inauguração do hospital.

“Pensamos que ele estava só para brincar”, disse o dono do empreendimento e veterinário, Lúcio Barreto, ao canal RICtv Londrina. “Mas como tinha um cachorro junto, a gente veio correndo para ver se o cão não estava machucando os animais”.

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Para surpresa de Barreto, quem estava machucando os bichos era o menino. “Chegar e se deparar com uma cena daquelas é uma sensação horrível de impotência, de tristeza”, afirmou o veterinário — ele observou que a criança confessou que chutou os coelhos e porquinhos da Índia, mas não tinha sinais de arrependimento.

O caso está sendo acompanhado pelo Conselho Tutelar e pela polícia.

Psiquiatria evita rotular crianças com o termo “psicopata”

Em parte por considerações éticas, em parte por entender que há uma maleabilidade de cérebro e comportamento que pode ser aproveitada para alguma intervenção terapêutica, a psiquiatria evita aplicar nas crianças diagnósticos como “transtorno de personalidade antissocial” e “transtorno de personalidade dissocial”.

Esses são os termos oficiais mais próximos do vulgo “psicopatia” nos manuais de diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana e da Organização Mundial da Saúde, respectivamente.

Em reconhecimento a sinais da infância que aumentam o risco de psicopatia na vida adulta, existem diagnósticos “prévios” como “transtorno de conduta”, disse uma psiquiatra e perita do INSS ouvida pela Gazeta do Povo (ela preferiu não se identificar por considerar que seus pacientes poderiam sofrer algum tipo de exposição). Esse diagnóstico infantil “está fortemente associado ao transtorno de personalidade antissocial no adolescente e no adulto”, afirmou. "A crueldade com animais é um dos critérios, há outros como violar regras sociais, violência contra familiares, sexualidade precoce, desrespeito aos pertences de terceiros, baixa tolerância às frustrações e tendência a desviar a culpa para terceiros."

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“O que a gente vê na prática é que a maior parte dessas crianças continua com o mesmo padrão de crueldade e frieza emocional ao crescer”. Mas não é o caso da maioria das crianças com o diagnóstico “prévio”.

“Tive uma paciente com diagnóstico de transtorno de conduta. Passou um ano e meio fugindo de casa, fumava, se encontrava com homens mais velhos. Entre os 14 e 15 anos. Hoje, com 20 e poucos anos, ela é completamente diferente do pior quadro de evolução. Foi uma fase. A maior parte é assim. Depois melhora”.

O caso é diferente, explica a psiquiatra, quando se observa “ausência de remorso, falta de empatia e atitude manipuladora — nestes casos, são como ‘pequenos psicopatas’, mesmo”. Há especialistas que acreditam que é possível fazer algo por essas crianças até por volta dos 12 anos de idade, afirmou a psiquiatra. Depois dessa faixa etária fica mais difícil reformar o comportamento no grau adequado para a vida em sociedade.

Os 11 sinais de risco de futura psicopatia na infância

A psicopatia é uma construção teórica a respeito de dois tipos de personalidade. O chamado Tipo 1 é caracterizado por ser insensível, pouco emotivo, manipulador e enganador. O Tipo 2, que foi chamado por alguns especialistas de “sociopata”, tem características antissociais, é impulsivo, irresponsável e criminoso; se aproximando mais do diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana.

Os “psicopatas” são cerca de 1% da população, mas cometem até metade dos crimes, segundo Todd L. Grande, americano doutor em aconselhamento psicológico escolar. A partir da literatura científica, o especialista compilou 11 características infantis que aumentam o risco de psicopatia. São elas:

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  1. Fazer xixi na cama. Sozinho, não significa muito, mas é um fator encontrado junto aos outros. Também acontece de a criança urinar de propósito fora do banheiro.
  2. Fascinação com o fogo, iniciação de incêndios e destruição de propriedade.
  3. Torturar e matar animais. Pode começar com danificação de animais de pelúcia.
  4. Enganar amigos, inimigos e pessoas com quem a criança tem uma relação neutra. Furtar indiscriminadamente é um exemplo.
  5. Ignorar outra criança que esteja chorando, incapacidade de reconhecer sofrimento em sua face.
  6. Tentar dominar figuras de autoridade, como professores e policiais, incluindo pela agressão física. O uso de armas é preocupante, pois indica intenção e planejamento.
  7. Cometer crimes sozinho ou ter fantasias a respeito de cometer.
  8. Desejo de ver cenas perturbadoras, como pessoas morrendo. Revela falta de empatia.
  9. Falta de medo de consequências, reincidência rápida de mau comportamento após punições.
  10. Praticar bullying, desejar que outras crianças tenham medo.
  11. Má educação recebida de pais frios, que só reagem negativamente, negligenciam ou até abusam da criança.

É nesta última característica que se concentra o debate sobre as origens da psicopatia: se forem origens genéticas, então os pais partilham dessas características e criam um ambiente abusivo, que por sua vez aumenta o risco de a criança desenvolver o comportamento anômalo. Se há baixa participação genética, este ambiente continua sendo o principal candidato para explicar as origens da psicopatia.

“Desde os anos 1960 sabe-se que um dos comportamentos desviantes mais comuns” na infância de futuros psicopatas “é a crueldade contra animais”, disse Daniel Cruz, comunicador especializado em crimes reais e autor do recém-publicado “Anjos Cruéis” (Darkside, 2024). “Eles ‘experimentam’ primeiramente com bichos para depois atacarem humanos”.

Cruz cita um estudo de 2014 que aponta que quase metade dos jovens que abrem fogo em escolas americanas contra colegas e professores tinham em seu histórico “selvageria contra animais”. Desse grupo, “90% o fizeram de uma maneira sádica e perversa”. O FBI indica que metade dos assassinos em série também apresentam o comportamento na infância.

É importante lembrar, contudo, como apontado pelo psicólogo Steven Pinker em seu clássico “Tábula Rasa” (Cia das Letras, 2004), que crianças são naturalmente mais violentas que adultos e é a educação que as torna civilizadas. Que algumas maltratem animais, mesmo na ausência de um transtorno de conduta, é algo esperado. O que configura anomalia é o nível de crueldade e repetição do comportamento. “Mesmo uma criança com transtorno de conduta pode se desenvolver em um adulto funcional”, disse Cruz.

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O Brasil não tem unidades especializadas para as crianças mais intratáveis e agressivas, como é o caso na cidade de Mendota, no estado americano do Wisconsin, que mantém uma instalação de segurança máxima para menores delinquentes desse tipo. “Para desviá-los da psicopatia, a equipe médica local criou um tipo de terapia particular que tem tido bons resultados”, afirmou Cruz.

O caso não é novo

Casos como o do menino de Nova Fátima são recorrentes nas notícias. Em 1998, no interior de São Paulo, uma menina de dez anos afogou uma menor após uma briga. Em 2012, no interior de Minas Gerais, duas meninas, de 12 e 13 anos, arrancaram o coração de uma terceira. Em Goiás, em 2020, um rapaz de 17 anos foi preso após matar duas pessoas — ele havia matado pela primeira vez aos 11 anos, e voltou a matar aos 13. “Há muitos outros casos de crianças de nove, dez, 11 e 12 anos que cometeram homicídios horríveis”, disse Daniel Cruz.

O autor aponta que são conhecidos casos de homicidas no Brasil que, quando crianças, praticaram crueldade contra animais.

São pessoas como Champinha, que assassinou o casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé em 2003; e os assassinos em série Saílson das Graças e Marcelo Andrade. “Este último, quando criança, gostava de matar gatos a pedradas”, disse Cruz. “Quando adulto, matou mais de uma dezena de crianças, a maioria da mesma maneira: usando pedras”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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