A proteção da infância tornou-se um dos temas mais candentes da sociedade brasileira nos últimos meses – e isso não é por acaso. Trata-se de mais um capítulo de uma disputa, movida por defensores da chamada “ideologia de gênero”, no que já é considerado por alguns uma verdadeira “guerra cultural”. O exemplo mais radical dessa tendência manifesta-se, hoje, nas terapias hormonais para crianças e posterior mudança de sexo, nos casos de transtorno de identidade de gênero ou disforia de gênero, uma prática contra a qual uma associação de pediatras dos Estados Unidos se levantou ferozmente este ano (leia abaixo).
O assunto voltou à tona no Brasil no início de setembro, quando o fechamento da mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, que estava em cartaz no Santander Cultural de Porto Alegre, acendeu o alerta para o tipo de conteúdo a que crianças devem ter acesso e sobre o tipo de interação que elas têm com determinados assuntos, bem como para o tipo de comportamento que está sendo incentivado de forma imprudente na infância.
Independentemente de ter havido crime ou não na exposição de algumas obras na Queermuseu, uma reportagem da Gazeta do Povo revelou que os organizadores imprimiram folders explicativos sobre os trabalhos e os enviaram a escolas, incentivando a visita de turmas, sem maior atenção aos critérios de classificação indicativa.
Os procuradores Alexandre Lipp e Sílvio Munhoz, que visitaram a mostra já fechada e tiveram acesso aos materiais distribuídos, alertaram para o fato de que os pais muito provavelmente não sabiam o que seus filhos encontrariam lá, uma vez que a classificação etária ficou a cargo das escolas, e que “a exposição tinha o nítido propósito de erotizar o público alvo”.
Embora as cenas de pedofilia, zoofilia e orgias sejam a representação artística e não a prática em si dessas “diferenças”, duas perguntas mereceram atenção no debate. Qualquer representação, só por ser artística, é adequada a crianças e adolescentes de qualquer idade? Em que contexto e orientadas por quem as crianças foram expostas a essas cenas?
Se a falta de ciência e envolvimento dos pais era um problema real na Queermuseu, não tardou para um outro caso, desta vez com participação e anuência da mãe de uma criança, ganhar os holofotes nacionais. Na noite da quinta-feira, 28 de setembro, começou a circular na internet um vídeo de uma criança, aparentando não mais de quatro ou cinco anos, tocando as mãos e os pés de um homem nu imóvel.
A performance La Bête, uma releitura da obra de Lygia Clark pelo coreógrafo Wagner Schwartz, ocorreu numa sessão privada de abertura da 35ª Mostra Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. A mesma apresentação já tinha ocorrido em Salvador no mês de agosto, ocasião em que uma foto revela Schwartz nu de mãos dadas com quatro meninas.
À reação do público à inadequação de tais situações seguiu-se uma verdadeira cortina de fumaça, em que artistas tacharam de censura o que era um boicote democrático, no caso do Queermuseu, e viram como reação moralista à nudez o que era preocupação com a infância e a juventude, no caso do MAM. Psicólogos ouvidos pela Gazeta do Povo enfatizaram que a exposição precoce à nudez, em que a menina foi inclusive estimulada pela mãe a tocar um homem desnudo, pode borrar a compreensão da criança sobre a adequação ou não de tocar adultos despidos.
“Por mais que a mãe tenha explicado, ela não vai saber a diferença de contextos. Ela poderia repetir o gesto num outro momento, longe da mãe, com um homem, conhecido ou desconhecido, que a incentivasse a tocá-lo”, explicou à Gazeta do Povo a psicóloga Georgia Scher, que atua nas varas de família do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro há 17 anos.
A Associação Médica Brasileira (AMB) foi pelo mesmo caminho. “Não consideramos a performance adequada, pois expõe nudez de um adulto frente a crianças, cuja intimidade com o corpo humano adulto, de um estranho, pode não ser suficiente para absorver de forma positiva ou neutra essa experiência. Situações de nudez, contato físico e intimidade com o corpo são próprias do desenvolvimento humano, desde que ocorram entre pessoas com perfis equivalentes, quanto à idade, maturidade e cultura”, escreveu a associação em nota na quarta-feira, 4 de outubro.
Exposição de Crianças
A incompreensão, ou sua simulação, do que estava em jogo ficou clara na manhã de 06 de outubro, quando uma convidada da plateia do programa Encontro, Dona Regina, foi chamada a discutir o tema com os artistas que estavam no palco. A idosa declarou não ser contra a arte que estava exposta, mas “contra a exposição da criança, ali daquela forma”.
A atriz Andreia Horta, nitidamente irritada, respondeu que “a performance [de Schwartz] é um trabalho extremamente delicado. Não tinha nada de violento ou de pornográfico. Há uma distorção muito grave do que houve ali. É terrível que um corpo seja um choque, inclusive para um brasileiro”, ao que dona Regina repisou o real problema: “Uma criança”.
Opinião da Gazeta: Arte, nudez e um debate distorcido
Sem nem esfriarem esses casos, o Fantástico exibiu, no último domingo (08), uma reportagem sobre o documentário Repense o Elogio, dirigido por Estela Rener, que retrata pais e escolas que permitem às crianças brincarem, independentemente do sexo, com “coisas de menino” e “coisas de menina”. Entusiastas do modelo, ouvidos pelo Fantástico, ressaltam dados que a ciência já conhece, como o fato de uma menina ou menino vestir-se de alguém do sexo oposto não determinar suas preferências sexuais, ou trivialidades como que os homens precisam aprender a ser pessoas mais cuidadosas e independentes.
É nas entrelinhas, porém, que as declarações são reveladoras. “Saber que as palavras vão ter ressonância por uma vida inteira [...] vai fazer com que a gente elogie [a criança] de uma forma que a liberte, que não crie limites e sim crie possibilidades para ela ser quem nasceu para ser”, afirmou a diretora do documentário. “Essas desigualdades [na divisão dos brinquedos] fazem com que se estruture a divisão sexual do trabalho”, declarou Maíra Kubik, professora do departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Não há padrão a ser seguido”, diz a repórter a respeito do modelo de uma escola no Rio de Janeiro.
Mas essas ideias, que parecem inofensivas quando se trata de brinquedos, podem ter consequências muito mais sérias, ainda nem sequer estudadas, em casos de terapias hormonais e mudança de gênero em crianças.
Em março deste ano, o mesmo Fantástico contou a história de “Melissa”, um menino de 11 anos que diz que “sempre se sentiu menina” e que, segundo os pais, utilizava desde cedo roupas e sapatos da mãe. “Para mim, eu estava fantasiada de menino até noves anos. Nove anos com uma fantasia quente e pinicante”. Assim Melissa, bastante articulada, descreveu sua situação.
Os pais procuraram o Núcleo de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, primeiro centro público de atendimento para crianças transgênero no Brasil, para tratar a condição de disforia de gênero ou transtorno de identidade de gênero, que ocorre quando uma pessoa apresenta incongruência entre o gênero sentido e o gênero associado a seu sexo biológico. A psiquiatria ainda discute se a situação deve continuar sendo descrita como uma patologia.
Em junho deste ano, porém, o American College of Pediatricians, uma associação de pediatras dos Estados Unidos, tida por seus críticos como conservadora, divulgou um relatório oficial questionando essa nova terapia que está ganhando espaço. Ela foi introduzida em 2007 no país. O documento, que analisou o estado da arte da pesquisa científica sobre o tema, afirma que “quando ocorre em crianças pré-púberes, a disforia de gênero se resolve no final da adolescência na vasta maioria dos casos”.
“Uma revisão da literatura corrente sugere que esse novo protocolo [de tratamento] se funda em uma ideologia de gênero não científica; não tem base em evidências; e viola o princípio ético do ‘primeiro, não prejudicar’ [também chamado de princípio da não maleficência]”, diz o documento.
Os pediatras americanos enfatizam ainda que há esparsas evidências de efeitos positivos da cirurgia de mudança de sexo mesmo para adultos; que há evidências de que a supressão hormonal em crianças gera efeitos deletérios irreversíveis e que a demanda por este tipo de tratamento hormonal está surgindo da vontade dos pais, e não de evidências científicas.
O relatório conclui seu estudo pendido o fim dos tratamentos hormonais e das cirurgias de mudança de sexo em crianças e adolescentes, bem como da promoção da ideologia de gênero nos currículos escolares e nas políticas públicas.
“O tratamento da disforia de gênero em crianças, usando hormônios, resulta na experimentação em massa em jovens – e na esterilização deles – que são cognitivamente incapazes de dar um consentimento informado. Há um sério problema ético em permitir procedimentos radicais e irreversíveis em menores que são jovens demais para dar consentimento válido por si mesmos; adolescentes não são capazes de entender a magnitude de suas decisões”, American College of Pediatricians.
A noção de gênero
Não é por acaso o fato de as crianças estarem se tornando pivôs de uma série de polêmicas. No relatório “Sexo, Gênero e a Origem das Guerras Culturais: Uma História Intelectual”, publicado pela Heritage Foundation em junho deste ano, o professor de ciência política Scott Yenor faz uma genealogia da noção de gênero desde a publicação d´O Segundo Sexo, da filósofa feminista Simone de Beauvoir, passando também pelas autoras feministas Shulamith Firestone, Betty Friedan, Kate Millett e a contemporânea Judith Butler.
No trabalho, Yenor pretende mostrar como a ideia de gênero, mobilizada a princípio pelo movimento feminista radical no Pós-Guerra – a chamada “segunda onda”, que procurava superar o que via como limitações das reivindicações do feminismo pela igualdade entre os sexos em direitos e obrigações –, tornou-se bandeira dos movimentos transgênero. Se a associação de pediatras dos Estados Unidos aponta que a ideologia de gênero nasceu fora dos domínios científicos, Yenor conta a história de como elas amadureceram no campo amplo dos “Estudos Culturais” antes de colonizar as práticas médicas.
A análise de Sexual Politcs, publicado por Millett em 1970, é especialmente reveladora desse projeto. “Millett aponta para a necessidade de reconstruir as disciplinas acadêmicas, especialmente as ciências humanas e sociais, com um novo foco em estruturas de opressão de gênero que subjugam as mulheres”, escreve Yenor.
“Essa ciência libertadora pode identificar e condenar as fontes de opressão, mas, por si só, pode apenas dar um vislumbre do que seria um mundo sem gênero. Produzir uma revolução de ideias sobre sexo e gênero requereria um trabalho da imaginação promovido por todas as instituições públicas: as universidades (especialmente as novas humanidades) e a cultura popular teriam um papel assumindo esse exercício de imaginação para produzir essa revolução”, explica.
Embora Millett não possa saber como será essa sociedade, Yenor expõe três facetas dela que a autora pode antecipar. Primeiro, a abolição do papel tradicional da supremacia masculina e os papeis e padrões pelos quais ela se perpetua. Entre esses padrões, para as autoras feministas, estaria a naturalização da maternidade e do amor romântico.
Em segundo lugar, uma mudança drástica na família patriarcal baseada na propriedade, de modo que a única forma garantir a liberdade econômica das mulheres seria libertando-as da maternidade, o que já estava no radar ainda antes da década de 1970: “Tanto Beauvoir quanto Firestone imaginam as crianças tendo experiências sexuais livremente, tornando-se economicamente viáveis e contribuintes consideráveis de uma sociedade futura, juntamente aos adultos. Por isso, cercear os direitos parentais é parte de assegurar independência para as mulheres”, escreve Yenor.
Um terceiro aspecto dessa sociedade em que as mulheres estariam livres de toda forma de opressão que carregam com seu gênero seria o fim de tabus e inibições sexuais, porque “restrições à atividade sexual reforçam ideias de amor romântico monogâmico, responsabilidade familiar, dependência econômica e outros atributos culturais que definem a vida familiar tradicional”.
A própria Millett já teria percebido, segundo Yenor, que poucas coisas abalariam “a ideologia do domínio masculino e a socialização tradicional” quanto problematizar as bases biológicas da identidade humana.
Se as feministas da segunda onda usavam as pesquisas com pessoas transgênero e intersexuais para mostrar que a própria natureza era ambígua e que, portanto, “a biologia não é destino”, o que os teóricos da terceira onda do movimento, como Judith Butler, fizeram, a partir dos anos 1980, foi estender a noção de gênero muito além da dicotomia masculino/feminino, criando um campo de estudos que, grosso modo, ficou conhecido como “teoria queer”.
“A teoria queer sustenta que todas as expressões de gênero e sexualidade são socialmente construídas e, portanto, maleáveis, com a esperança de que celebrar estilos de vida supostamente estranhos [queer] irá minar ou ‘problematizar’ noções fixas de identidade pessoal e distinções rígidas”, explica Yenor.
A celebração de todo tipo de performance de gênero, superando a falsa dicotomia entre masculino e feminino, independentemente de qualquer determinação corporal ou biológica, seria um meio para dinamitar qualquer noção de norma ou padrão de comportamento. Não por acaso, a mostra exposta em Porto Alegre chamava-se Queermuseu e seus defensores afirmaram a torto e a direito que “o papel da arte é questionar”.
Colonização de legislações
Atualmente, no contexto da teoria queer, embora os próprios movimentos de identidade divirjam, do ponto de vista estratégico, se a cirurgia de mudança de sexo deve ser um objetivo a ser louvado ou buscado, a noção de gênero sedimentada a partir da segunda onda do feminismo parece ter conseguido colonizar legislações nacionais, à medida que seus defensores ganharam protagonismo em movimentos políticos nacionais e internacionais.
A adoção do termo “gênero” pela polêmica declaração final da IV Conferência Mundial da ONU sobre a Mulher, realizada em 1995 em Beijing, definiu a agenda desde então. O próprio site ONU Mulheres diz que “[a] transformação fundamental em Pequim foi o reconhecimento da necessidade de mudar o foco da mulher para o conceito de gênero, reconhecendo que toda a estrutura da sociedade, e todas as relações entre homens e mulheres dentro dela, tiveram que ser reavaliados”.
Desde 1995, a ONU não patrocinou nenhuma nova conferência sobre o tema, agindo apenas para avaliar a implementação das metas estabelecidas em Beijing.
Como fica claro no relatório do American College of Pediatricians, no entanto, os setores da sociedade que começam a reagir à ideologia de gênero não estão negando a histórica agenda pela igualdade de direitos, nem a existência de casos dramáticos de pessoas que sofram de disforia de gênero, nem que a identidade se forme também a partir de fatores culturais e sociais. O que se contesta é um consenso ideológico, fundamentado em objetivos no mínimo discutíveis, que pretende ter uma resposta pronta a um assunto tão complexo e tão pouco estudado. O que se questiona, mais e mais, é a experimentação de métodos invasivos, de consequências imprevisíveis, em crianças cada vez mais jovens, contrariando os dados científicos disponíveis sobre o assunto.
A conclusão do documento da associação de pediatras não é outra senão que “[a] pesquisa científica deve se focar em entender melhor os fundamentos psicológicos dessa desordem, em terapias individuais e familiares eficazes e em delinear as diferenças entre as crianças que se resolvem depois de uma espera vigiada, crianças que se resolvem com terapia e crianças que persistem [nessa condição], apesar da terapia”.