Um regime em que políticos de oposição e estudantes são encarcerados, em que sacerdotes sofrem vigia e outros são expulsos do país, em que a imprensa não consegue fazer seu papel e rádios são vítimas de incêndios criminosos repetidas vezes. Essa é a Nicarágua de Daniel Ortega, ditador que comanda o país desde 2007, com uma passagem anterior entre 1979 e 1990 - e que tem longa história de relacionamento com Luiz Inácio Lula da Silva e ganhou apoio do Foro de São Paulo, do qual o PT faz parte, mesmo quando o regime já perseguia os adversários. A tragédia que acomete o maior país da América Central é o mote do novo documentário da produtora Brasil Paralelo, 'Nicarágua – Liberdade Exilada', dirigido por Andrhey Ferreira.
Exibido para uma plateia de jornalistas, influenciadores e patronos da produtora num cinema paulistano na última quarta-feira (15/2), o filme já está disponível para os assinantes do serviço de streaming da Brasil Paralelo e marca o início de um ano bastante produtivo para a empresa, incluindo o lançamento de seu primeiro longa de ficção, 'Oficina do Diabo', previsto para os próximos meses.
'Nicarágua – Liberdade Exilada' repete a fórmula que consagrou a produtora: “DNA de investigar a história, porém sem viés ideológico”, como ressalta o CEO e fundador Henrique Viana. “Nesse produto, a gente deu um passo além. Todas as vozes presentes são de pessoas da Nicarágua, o que dá uma visão bem realista do que acontece no país. É um filme totalmente internacional nesse sentido, e um dos melhores que já produzimos”, celebra.
O realismo não está apenas nas falas de jornalistas, políticos e esposas de políticos presos que participam do filme. Há cenas de muitos confrontos nas ruas e até imagens de crianças carbonizadas após uma invasão de uma casa de família por um grupo armado simpático ao governo. “Todos os países do Ocidente precisam compreender o que acontece na Nicarágua, olhar para a experiência que levou aquela nação ao colapso. São humanos, são famílias, são empresas. O que houve por lá poderia ter ocorrido aqui”, completa Viana. Entre os desmandos do regime autoritário abordados no documentário, está o corte no sinal da CNN em espanhol no ano passado, fato noticiado pela Gazeta do Povo que virou alvo de censura pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por vincular o tirano Daniel Ortega com o então candidato à presidência do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva.
Um dos méritos de 'Nicarágua – Liberdade Exilada' é apresentar o país para os leigos, com seus lagos e vulcões belíssimos e seu povo alegre, além de contextualizar os caminhos políticos que levaram ao caos atual. Logo nos primeiros minutos das quase duas horas de filme, o espectador toma ciência do papel do revolucionário Augusto César Sandino (1895-1934), que se rebelou contra a presença norte-americana na virada dos anos 1920 e 1930, e depois inspiraria a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), partido de extrema-esquerda hoje liderado por Daniel Ortega. Também está bem explicada no filme a dinastia da família Somoza, que passou anos no poder e, sob inúmeras acusações de corrupção, terminou substituída pelos revolucionários sandinistas, em 1979.
O inferno vivido pelos nicaraguenses teve um arrefecimento após o esfacelamento da União Soviética, na década de 1990.
Após um período agitado nos anos 80, quando o presidente americano Ronald Reagan se tornou grande apoiador da luta contrarrevolucionária camponesa e até o Papa João Paulo II visitou o país, defendendo que a Igreja era a primeira a querer paz na Nicarágua, teve-se início um período de eleições regulares, com uma normalidade democrática nunca antes vista por ali. Mas Daniel Ortega seguia atuante e, com os apoios do cubano Fidel Castro, do venezuelano Hugo Chávez e do líbio Muammar Kadafi, conseguiu voltar à presidência em 2007 e passou a minar as instituições comprando juízes, fechando canais de comunicação e perseguindo bispos e padres.
Numa passagem que beira o tragicômico, o documentário exibe um trecho de um discurso recente do ditador questionando a razão do Papa e outros representantes religiosos não passarem por eleições diretas, o que leva Ortega a classificar a Igreja como “a tirania perfeita”. “Esses bispos são golpistas!”, brada, usando também expressões chulas (“hijos de perra”) e antiquadas (“imperialistas ianques”) para atacar opositores. É bom lembrar que o presidente Lula também fez comparações ridículas durante entrevista ao jornal espanhol El País, em novembro de 2021, quando minimizou a ditadura na Nicarágua e comparou Ortega à então chanceler da Alemanha, Angela Merkel. “Temos que defender a autodeterminação dos povos. Sabe, eu não posso ficar torcendo. Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não? Por que Felipe González aqui [na Espanha] pode ficar 14 anos no poder? Qual é a lógica?”, disse o petista, fingindo não perceber a diferença entre uma ditadura e regimes democráticos parlamentaristas.
Os realizadores tentaram ouvir sacerdotes para o filme, mas todos os procurados negaram os convites por temer represálias. Já os nicaraguenses exilados que contribuíram com a empreitada da Brasil Paralelo dão declarações destemidas, ainda que carregadas de muita dor. O roteirista Marcus Vinicius Lins resume o teor das falas. “A minha ideia era fazer uma abordagem mais histórica, mas, conforme o material ia sendo captado, fui notando que as pessoas queriam contar seus dramas particulares. Chorei algumas vezes ouvindo os depoimentos.”
Um dia após o documentário ficar disponível na plataforma da Brasil Paralelo, foi noticiada a libertação de dezenas de presos políticos nicaraguenses. A esposa de um deles procurou a produtora para agradecer seu interesse em se envolver nessa história. Seu áudio emocionado ao lado do marido é um prêmio que os realizadores não conseguem mensurar.