Uma sucessão infinita de vídeos curtíssimos, ágeis e barulhentos como os ponteiros do relógio: assim é o TikTok. Lançado em 2016 pela empresa chinesa ByteDance, a rede social levou apenas dois anos para se tornar o aplicativo mais baixado do mundo, superada apenas pelo Zoom no final de 2020. Só no primeiro trimestre deste ano, o TikTok alcançou a marca de 175 milhões de downloads, de acordo com o relatório do Sensor Tower - consultoria internacional especializada em métricas digitais - divulgado no último mês de abril. Ao todo, estima-se que o aplicativo já tenha sido baixado cerca de 3,5 bilhões de vezes, contando com um bilhão de usuários ativos por mês. É, atualmente, a quarta maior rede social do mundo (perdendo apenas para o Facebook, o Instagram e o YouTube) e representa um desafio sem precedentes a ser encarado por pais, educadores, profissionais de saúde e lideranças políticas.
Enquanto as famosas “dancinhas”, memes e dublagens rendem milhões de visualizações (e renda) extra para perfis familiares ao grande público - Anitta, Whindersson Nunes, Luiza Sonza, entre outros - ou egressos da própria rede, a adesão quase instantânea e maciça de toda uma geração ao novo fenômeno digital acendeu um alerta vermelho entre pesquisadores atentos aos comportamentos comuns aos jovens usuários da plataforma. Não é de hoje que se alerta para os malefícios causados pelo acesso indiscriminado a telas e, sobretudo, pelo uso compulsivo das redes sociais por parte de internautas ainda em fase de desenvolvimento. Estudos recentes apontam, contudo, que o TikTok está levando o vício em tecnologia - e todos os seus males correlatos - ao “estado da arte”.
Em abril deste ano, uma reportagem do The Wall Street Journal repercutiu internacionalmente ao afirmar que a rede social chinesa funciona como “uma loja de doces” para o cérebro infantil. Em entrevista à publicação, o pesquisador James Williams, da Universidade de Oxford, destrinchou as origens do sintoma mais frequentemente relatado por quem convive com a “geração TikTok”: uma completa incapacidade de prestar atenção e, sobretudo, de saber a hora de “deslogar”. “É como se tivéssemos criado nossos filhos em uma loja de doces e depois lhes disséssemos para ignorar aquilo tudo e comer um prato de legumes. Colocamos um fluxo interminável de prazeres imediatos sem precedentes na história humana à disposição das crianças”, afirma o psicólogo.
Nem mesmo em sua terra natal, onde conta com uma versão local, o aplicativo escapa às preocupações dos pesquisadores: no ano passado, um estudo examinou como o Douyin, o equivalente chinês do TikTok, está afetando o cérebro dos estudantes universitários do país. "Embora as recomendações específicas do aplicativo possam satisfazer as necessidades dos usuários de obter as informações pretendidas, alguns podem desenvolver um padrão de uso problemático manifestado por comportamentos indesejados semelhantes ao vício", descreve o resumo da publicação.
"Descobrimos que mais sintomas indesejados estavam relacionados à menor capacidade de autocontrole entre adultos jovens, e cerca de 5,9% dos usuários do TikTok podem ter um uso problemático significativo". Em outras palavras, descobriu-se que a exposição constante a vídeos curtos e personalizados aciona as áreas de recompensa do cérebro de modo tão intenso que alguns dos participantes, ainda que maiores de idade, careciam de autocontrole suficiente para parar de assistir. Quão poderosos serão estes efeitos no cérebro de uma criança?
Distorção da realidade
Em teoria, a idade mínima para se ter uma conta no TikTok, de acordo com os termos e condições da plataforma, é de 13 anos — para estes casos, a plataforma conta também com uma ferramenta de controle parental. Na prática, contudo, milhões de usuários mirins escapam às medidas de proteção do aplicativo, de modo que internautas cada vez mais jovens seguem à solta pela rede, regida por um algoritmo capaz de identificar com precisão as preferências de quem está em frente à tela.
Para o desenvolvimento infantil, a mera presença constante do monitor pode ser nociva em si mesma: desde 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que crianças não tenham qualquer acesso às telas pelo menos até os dois anos, e que a inserção destes dispositivos em seu cotidiano seja feita de forma lenta e gradual, sempre acompanhada pelos pais. Em contrapartida, a epidemia de acesso precoce aos smartphones e tablets já rende seus primeiros frutos: no final de 2020, o neurocientista Michel Desmurget, do Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica, chamou a atenção do mundo para o fato de que esta geração, a dos nativos digitais, pode ser a primeira da história com um QI inferior ao de seus pais e avós.
“Diminuição da qualidade e quantidade das interações intrafamiliares, diminuição do tempo dedicado a outras atividades mais enriquecedoras, perturbação do sono, superestimulação da atenção, levando a distúrbios de concentração, aprendizagem e impulsividade, subestimulação intelectual e o sedentarismo excessivo que, além do desenvolvimento corporal, influencia a maturação cerebral”, são apenas alguns dos malefícios elencados pelo pesquisador, com relação ao uso prematuro e constante de telas.
Pela própria natureza de seu conteúdo, entretanto, o Tik Tok apresenta um problema extra: a sensação de distorção temporal catalisada pela velocidade de transição dos vídeos que, conforme a descrição de Willians, funcionam como uma eletrizante loja de doces.
"A distorção da noção de tempo é um dos grandes problemas que enfrentamos atualmente. Experimentamos a sensação de que o tempo voa, ainda que ele nunca se esgote enquanto estamos presos às redes. Ocorre que o tempo é um orientador psíquico da realidade, cuja percepção as crianças desenvolvem conforme amadurecem", explica o psicólogo Rodrigo de Mello, doutor em psicologia clínica pela Universidade Católica de Pernambuco.
"Um adulto entende que a vida se dá em um processo, em uma sequência de atos e fatos circunscrita em um espaço temporal. Viver compulsivamente preso no que acontece no presente provoca um descolamento da realidade. Imagine o impacto disso para uma criança que, em um minuto, é exposta a quatro estímulos diferentes de prazer. Dificilmente essa criança conseguirá desenvolver a sensação de continuidade, de que existe um tempo para tudo", avalia o especialista.
Outro problema que não se restringe ao Tik Tok, mas que é potencializado pelo frenesi de imagens e sons ofertados aos usuários em um curto espaço de tempo, é a exposição dos pequenos a conteúdos inadequados à sua faixa etária. "Quando digo que a esmagadora maioria dos conteúdos que circulam pelo TikTok são impróprios para crianças, é preciso ter em mente que a ideia de 'impróprio' vai muito além das cenas de sexo, drogas e violência. A infância não é uma experiência genérica, cada criança tem seu tempo maturacional”, reforça Mello.
Em resposta à Gazeta do Povo, o TikTok declarou estar "profundamente comprometidos com a segurança e o bem-estar de nossa comunidade, principalmente dos nossos usuários mais jovens, e é por isso que incorporamos a segurança deles em nossas políticas, permitimos configurações de privacidade e segurança por padrão em contas de adolescentes, e limitamos as características por idade."
“Tiques” inexplicáveis
Há, ainda, os riscos específicos para o público que enfrenta a complexa transição da infância para a vida adulta. Coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da USP, o psicólogo Cristiano Nabuco explica que o cérebro adolescente permanece suscetível aos estímulos incessantes do TikTok, uma vez que as áreas relacionadas aos impulsos estão especialmente estimuladas nesta fase, enquanto o córtex pré-frontal — a região responsável pelo raciocínio lógico e pelo autocontrole — ainda não está perfeitamente formado, o que só ocorre por volta dos 25 anos. Entretanto, 60% do público da plataforma está entre os 16 e os 24.
"É como um carro que acelera com rapidez, mas os freios ainda não estão bem calibrados. Espera-se que um adulto tenha envergadura biológica para decidir o que fazer diante de um estímulo prazeroso. O adolescente, mesmo que saiba que faz mal, não tem força para parar", explica o especialista. Por esta razão, a medida anunciada pela plataforma de inserir vídeos incentivando que os usuários se desconectem de vez em quando pode passar batida.
É possível, ainda, que o uso excessivo do TikTok nesta faixa etária esteja relacionado a um fenômeno reportado pelo The Wall Street Journal: o surgimento de uma onda de “tiques” inexplicáveis. "Desde março de 2020, meninas de todo o país e até de outras partes do mundo começaram a aparecer em consultórios acompanhadas por pais preocupados. Elas realizavam movimentos físicos, diziam palavras e reproduziam gestos que não conseguiam controlar. Tentando entender o que estava acontecendo, os médicos descobriram que muitas destas garotas apresentavam os mesmos padrões de comportamento, e que andavam assistindo o mesmo tipo de vídeos do TikTok com pessoas que dizem ser portadoras da Síndrome de Tourette", escreve a colunista de Família e Tecnologia do WSJ, Julie Jargon.
"Muitas dessas garotas foram diagnosticadas com o que se entende por distúrbio neurológico funcional. Considerando que a Síndrome de Tourette é derivada de um distúrbio do sistema nervoso subjacente, essas pacientes foram encaminhadas para a terapia cognitivo-comportamental, uma espécie de terapia da fala na qual os pacientes essencialmente aprendem a controlar seus pensamentos e desaprender determinados comportamentos".
Segundo a reportagem, o TikTok afirmou ter consultado “vários especialistas que alertaram que correlação não significa causalidade quando se trata de meninas desenvolvendo esses tiques e assistindo a vídeos em sua plataforma”. A empresa também entende que “seu aplicativo oferece uma maneira de as pessoas se expressarem e combaterem o estigma da saúde mental”.
Acusações de espionagem e roubo de dados
Desde que alcançou o topo dos rankings de downloads internacionais, o Tik Tok vive enredado em acusações de espionagem e roubo de dados para o governo chinês. Em 2020, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que o aplicativo seria banido do país, medida que acabou revogada pelo presidente Joe Biden em 2021.
No último mês de junho, contudo, uma reportagem publicada pelo portal BuzzFeed News a respeito de áudios vazados de dezenas de reuniões internas do TikTok apontou que dados privados de usuários nos Estados Unidos foram acessados repetidamente por funcionários na China. Por causa da matéria, o comissário Brendan Carr, membro da Comissão Federal de Comunicação (Federal Communications Commission, em inglês - trata-se do equivalente americano ao Ministério das Comunicações, responsável pelos serviços de televisão e rádio no país), divulgou uma carta aberta destinada ao presidente-executivo da Apple, Tim Cook, e ao presidente-executivo do Google, Sundar Pinchai, solicitando a exclusão do TikTok de suas lojas de aplicativos porque, segundo ele, o aplicativo estaria coletando "faixas de dados confidenciais que novos relatórios mostram que estão sendo acessados em Pequim".
Carr alega que entre os dados coletados de cada usuário estão o histórico de pesquisa e navegação, rascunhos de mensagens, imagens e vídeos armazenados na área de transferência do usuário, identificação biométrica, entre outras informações que não deveriam ser compartilhadas. Some-se a isto a acusação recente de parlamentares do Partido Republicano de que o aplicativo poderia ser utilizado para interferir nas eleições chinesas.
Em resposta, o TikTok afirma que reportagens "recentes da BuzzFeed mostram que o TikTok está fazendo exatamente o que disse que faria: tratando das preocupações em relação ao acesso aos dados de usuários dos EUA por funcionários fora dos EUA. Estamos satisfeitos por agora encaminhar 100% do tráfego de usuários dos EUA para Oracle Cloud Infrastructure, e continuamos a trabalhar em medidas adicionais de proteção dos dados dos EUA para maior tranquilidade para nossa comunidade".
Quer as acusações de espionagem e roubo de dados se confirmem ou não, é inegável que pais e educadores da era do TikTok têm um desafio de grandes proporções a enfrentar, a despeito das “medidas de segurança” anunciadas pela plataforma.
“Diante das experiências em consultório, não posso deixar de fazer uma ilação: até que ponto existe um compromisso por parte de todos esses aplicativos de zelar pela proteção da infância e da adolescência, para além destas medidas pro-forma?”, questiona o psicólogo Rodrigo Mello. Para Nabuco, os ajustes da plataforma são uma “resposta politicamente correta” longe de atender à necessidade urgente de toda uma geração: o desenvolvimento de uma tecnologia voltada para o bem comum. Ao que tudo indica, não é o caso do TikTok.
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