Leonel Brizola, fotografado em 1961: oferta de ajuda da China e de Cuba.| Foto: Arquivo Nacional
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A divulgação dos arquivos completos sobre o assassinato de John Kennedy, nesta terça-feira (18), também trouxe a público documentos que mencionam a atuação da China e de Cuba no Brasil no começo da década de 1960.

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As menções ao Brasil não têm relação direta com a morte de Kennedy, e sim com a atuação das forças antiamericanas na América Latina naquele período. 

O assassino de Kennedy, Lee Harvey Oswald, visitou Cuba, que estava sob o comando de Fidel Castro desde 1959. Por isso, muitos documentos tratam da influência do país na América Latina. 

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Os documentos, divididos em 2.182 arquivos que somam cerca de 80 mil páginas, foram divulgados pela Casa Branca. 

Embora alguns deles já fossem parcialmente conhecidos, esta é a primeira vez que o material é publicado na íntegra, sem trechos censurados. 

Também revela que, longe de comandar a atuação da oposição a João Goulart, os americanos tateavam em busca de informações confiáveis sobre a situação política no Brasil. 

China ofereceu ajuda a Brizola 

Três anos antes do golpe militar, Cuba e China se colocaram ao lado da esquerda brasileira — especificamente, de Leonel Brizola. 

Um documento produzido pela CIA e datado de 3 de setembro de 1963 reproduz informações obtidas com um telegrama que menciona como fonte "um professor brasileiro com bons contatos entre os líderes estudantis comunistas". 

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O relatório da agência de inteligência americana afirma que, em 1961, os regimes comunistas da China e de Cuba ofereceram apoio direto, inclusive com “voluntários”, para assegurar que João Goulart tomasse posse depois que Jânio Quadros renunciou repentinamente. 

“Durante a semana de 27 de agosto, o presidente do partido Mao Tsé-Tung da China Comunista e o premiê Fidel Castro de Cuba ofereceram apoio material, incluindo ‘voluntários’, a Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, que estava liderando a luta no Brasil para assegurar a sucessão à presidência do vice-presidente João Goulart após a renúncia do Presidente Jânio Quadros”, diz o texto. 

De acordo com o documento, Brizola não aceitou a oferta, alegando que não queria que a crise no Brasil se transformasse em um assunto internacional. A interpretação do autor do relatório é que o governador gaúcho tinha medo da reação americana. 

Quando Jânio Quadros renunciou, em 25 de agosto de 1961, João Goulart estava justamente na China. 

Trecho de relatório que menciona China, Cuba e Brizola.| Foto: Reprodução
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Cuba treinou guerrilheiros do Brasil 

Um ano e meio depois, os americanos coletaram informações que comprovaram uma participação direta de Cuba no período de agitação que precedeu o golpe de 1964. 

Um informe de março de 1963 afirma que Cuba havia treinado 50 guerrilheiros vindos do Brasil. 

“Aproximadamente 400 cidadãos brasileiros viajaram legalmente para Cuba em 1962, e outros 24 nos primeiros dois meses de 1963. Acredita-se que um total de cerca de 50 brasileiros tenham recebido treinamento específico de guerra de guerrilha em Cuba, começando com um contingente de 12 homens em julho-agosto de 1961”, afirma o relatório. 

O documento explica a matemática: os americanos haviam identificado 19 brasileiros que passaram pelo treinamento em Cuba. Além disso, um ex-oficial do exército cubano afirmou ter treinado 37 brasileiros em um período diferente daquele em que os 19 foram treinados. 

Pelo menos quatro guerrilheiros vindos do Brasil estavam ligados com as Ligas Camponesas, um grupo radical de esquerda comandado por Francisco Julião. O relatório afirma que a facção havia formado seis campos de treinamento em território brasileiro, e que o líder de cada unidade passaria por treinamento em Cuba. 

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Campo de treinamento no Brasil com dinheiro cubano 

Outro relatório produzido pela CIA 1963 descreve como Cuba financiou atividades guerrilheiras na América do Sul, inclusive no Brasil. 

“No mês passado, um dos primeiros brasileiros a receber treinamento de guerrilha em 1961 foi detido com uma mala cheia de munição que estava carregando para alguns desses mesmos campos de treinamento de guerrilha expostos quando o avião da Varig caiu no Peru. Curiosamente, os brasileiros acreditam que o dinheiro que Cuba estava fornecendo para os campos na verdade vinha da China Comunista”, diz o informe. 

O acidente, que deixou 97 mortos, aconteceu em um voo que partiu do Rio de Janeiro e que faria quatro escalas na América Latina antes de pousar em Los Angeles.  

Em seguida, o relato da CIA afirma que o sistema de financiamento cubano passava por dificuldades: “Desde a exposição dos documentos da Varig—e provavelmente desde que os guerrilheiros chegaram pela primeira vez à embaixada cubana no Rio com suas reclamações sobre má administração, confusão e corrupção—os cubanos aparentemente pararam de financiar esta operação, mas as evidências mostram que ela ainda continua funcionando precariamente”.  

O documento afirma que os guerrilheiros planejavam comprar uma fazenda para funcionar como local de treinamentos: “O homem com a mala cheia de munição disse que uma advogada no Rio tinha lhe dado o dinheiro para comprar uma grande fazenda como um novo campo de guerrilha.” 

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Goulart fora da realidade 

Em 26 de novembro de 1963, um briefing classificado como “ultrassecreto” e destinado apenas ao presidente Lyndon Johnson descreveu o momento de incerteza política no Brasil. A cinco meses da queda de João Goulart, os americanos tentavam compreender a crise. 

“Nossa equipe no Brasil acredita que Goulart está vivendo em um mundo de sonhos. Ele parece estar ou fora da realidade ou muito mal-informado. A opinião pública não está com ele e a tradição de que o poder político só deve ser transferido constitucionalmente é muito forte no exército, apesar dos relatos de golpe”, afirma o documento. 

Na avaliação da inteligência americana, o risco de golpe por parte dos militares havia esfriado, mas o próprio João Goulart poderia se tornar um ditador”. 

“O perigo de um golpe imediato contra o regime de Goulart recuou com a decisão relatada do comandante do Segundo Exército, General Bevilaqua, de não se juntar aos conspiradores do golpe. (...) Por outro lado, há uma crença generalizada de que o próprio Goulart recorrerá em algum momento a um golpe para estabelecer um regime autoritário”, afirma o relatório. 

A falta de clareza do governo americano sobre a situação no Brasil esvazia a tese, defendida por parte da esquerda, de que Washington orquestrou por completo a derrubada de João Goulart. 

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Queda de Goulart prejudicou Cuba 

No ano seguinte, o cenário já havia mudado. Um relatório de junho de 1964, afirma que Cuba estava em uma situação de fragilidade no hemisfério, em parte por causa da queda do regime de João Goulart no Brasil.  

"A revolta de abril na qual o presidente Goulart do Brasil foi derrubado foi também uma severa derrota para Havana”, diz o ofício. 

O autor do documento faz outra menção à interferência de Cuba na política brasileira no período anterior à queda de João Goulart: "Antes da derrubada do presidente Goulart, Cuba estava engajada em um esforço subversivo ativo no Brasil, fornecendo fundos, treinamento de guerrilha e apoio de propaganda para grupos comunistas e pró-comunistas," afirma o texto, que menciona nominalmente Leonel Brizola e Francisco Julião como figuras ligadas à ditadura de Fidel Castro no Brasil. 

Ainda assim, diz o relatório secreto, as atividades do regime cubano na região continuaram em 1964, exceto no Brasil. "Cuba continuou desde o início do ano a promover, financiar e apoiar de outras formas grupos e indivíduos pró-Castro na Argentina, Brasil (antes da revolta de abril), Chile, Panamá, Guiana Britânica e outros países”, diz o relatório. 

Outras menções ao Brasil 

O Brasil também é citado no relatório sobre o ex-agente da KGB Yuriy I. Nosenko, que desertou. 

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Enquanto trabalhava para os soviéticos, ele foi um dos responsáveis por recrutar Richard Burgi, um professor da Universidade de Yale que foi cooptado por meio de uma "operação de provocação homossexual". 

O documento inclui um resumo de um depoimento dado pelo próprio Burgi, no qual ele afirma que havia estado no Brasil. Não há detalhes do caráter da visita.  

Outra figura que aparece no material é Victor Rico Galan, nascido na Espanha e radicado no México. Ele é descrito pelo dossiê da CIA como um "marxista proeminente".  

Em 1963, uma fonte da CIA informou que um certo Rico passou oito dias em Cuba, com Fidel Castro, e "recebeu a tarefa de visitar países na América Central e do Sul (...), onde ele deveria convencer partidos de esquerda a começar imediatamente atos de sabotagem e violência para tirar a pressão da Venezuela". O Brasil era um desses países. 

O dossiê também mostra que Rico entrou no Brasil em novembro de 1963, e que ele "pode ter viajado a Cuba, talvez clandestinamente, e reingressado no Brasil" 

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No Brasil, Rico se encontrou com o jornalista e escritor Paulo Schilling (1925-2012), coordenador do grupo de esquerda Frente de Mobilização Popular e que mais tarde se tornaria um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. 

Outras fontes no arquivo afirmam que ele também se encontrou com "Prestes", provavelmente Luís Carlos Prestes, e que tentou entrevistar Leonel Brizola e Neiva Moreira, ambos deputados federais à época.