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Na Holanda a prática da eutanásia – a interrupção da vida feita por um médico a pedido do paciente ou de sua família – já era garantida por lei a uma extensa gama de pessoas, desde bebês recém-nascidos até completarem um ano de idade e a partir dos 12 anos. Agora, uma nova iniciativa do governo quer ampliar ainda mais essa faixa etária e levar a possibilidade de morte assistida a qualquer pessoa, qualquer que seja a idade.
A sugestão foi apresentada ao parlamento holandês pelo ministro da Saúde, Hugo de Jonge, no último dia 13. De acordo com o ministro, uma pesquisa encomendada pelo governo e endossada por especialistas descobriu crianças maiores de um ano e menores de 12 anos em estado terminal passando por um sofrimento “insuportável”. “O estudo mostra que há necessidade de término ativo da vida, [decidido] entre médicos e pais de crianças incuráveis, que estão sofrendo irremediavelmente e insuportavelmente, e morrerão no futuro previsível”, diz a carta encaminhada por de Jonge ao parlamento.
A lei holandesa protege a prática de eutanásia nos bebês que “ocasionalmente nasceram com doenças sérias a ponto de o fim da vida ser considerado como a melhor opção”. Alguns critérios precisam ser cumpridos, como a certeza de que o sofrimento da criança é realmente insuportável e que não haja perspectiva de melhora. “Médicos e pais devem estar convencidos de que não há uma solução alternativa razoável dada a situação da criança”, informa o site oficial do governo holandês.
Para que a vida da criança com doença grave seja tirada, os pais devem dar o consentimento para tal ato após terem sido plenamente informados de todos os diagnósticos e prognósticos médicos. Pelo menos um médico independente, que esteja fora do tratamento de saúde da criança, deve examinar o menor e dar um parecer escrito sobre o cumprimento dos critérios determinados. Uma vez cumpridos os requisitos, pode-se então acabar com a vida da criança, mas sempre com o devido cuidado, como enfatiza o texto oficial do governo da Holanda.
A mesma medida é tomada nas crianças maiores de 12 e menores de 16 anos. Assim como com os bebês, a decisão de autorizar a morte assistida dos filhos doentes é exclusiva dos pais. Adolescentes de 16 e 17 anos podem pedir a eutanásia por conta própria, mas a lei determina que os pais precisam participar dessa discussão. Acima dos 18 anos qualquer pessoa pode pedir que tenha a vida terminada por um médico, desde que esteja em condições de lucidez mental.
De acordo com reportagem publicada pelo site alemão Deutsche Welle, o ministro acrescentou que as leis vigentes não precisariam ser alteradas. Em vez disso, os médicos que realizarem uma eutanásia em uma criança estariam livres de processos legais. Atualmente os pais que decidem acabar com a vida dos filhos doentes com idades entre 1 e 12 anos podem optar por uma saída tão ou mais polêmica quanto a eutanásia. Em vez de administrar um medicamento que induz à morte o paciente, os médicos realizam a chamada “sedação paliativa”: colocam a criança em coma induzido e cortam-lhe a alimentação. O procedimento é considerado pelo governo holandês como uma prática médica normal e “não constitui o término da vida porque as drogas administradas não são a causa da morte”. A prática é recomendada apenas em casos em que a expectativa de vida não exceda duas semanas – prazo em que a pessoa, adulto ou criança, permanece sedada até morrer por inanição.
O estudo apresentado pelo ministro concluiu que a mudança na aplicação da lei afetaria “um pequeno grupo de cinco a 10 crianças por ano”, para os quais a sedação paliativa não é “suficiente para aliviar o sofrimento”. De Jong informou também que a maioria desses casos é de crianças com câncer ou doenças metabólicas. Segundo o Deutsche Welle, o parlamento concordou com planos do ministro, que agora deve criar os regulamentos para a eutanásia em crianças – a prática deve ser liberada nos próximos meses.
Aborto tardio e suicídio assistido
A única janela de tempo em que a lei holandesa ainda não autoriza expressamente a morte assistida é a partir da 24ª. semana de gestação. Abortos até esse período são permitidos, e se feitos após essa data podem ser enquadrados como crime. Porém, alguns casos de aborto tardio podem ser feitos, mas de forma excepcional: em casos em que o feto tenha uma doença tão grave a ponto de especialistas médicos acreditarem que um tratamento pós-parto seja inútil; em casos em que o feto esteja sofrendo, ou que venha provavelmente a sofrer após o parto, sem chance de melhoras.
Um pedido explícito de “término da gravidez” deve ser feito pela mãe, encerramento esse feito com base no sofrimento físico ou mental que a situação está causando a ela. Assim como na eutanásia, os pais e os médicos precisam estar suficientemente convencidos de que não há nada melhor a fazer do que tirar a vida do feto. E, também como na morte assistida das crianças já nascidas, o aborto deve ser feito “com os devidos cuidados”.
Além de aborto e eutanásia, a lei holandesa também garante outra forma de acabar com a vida de alguém com uma doença grave. É o suicídio assistido, onde o próprio paciente toma a medicação que o levara à morte. O resultado final é o mesmo, mas as implicações legais aos médicos que forem flagrados cometendo irregularidades nos dois atos são bem diferentes. Negligências em uma eutanásia podem resultar em uma pena de até 12 anos de prisão, pena que cai para três anos se o tratamento escolhido por o suicídio assistido.
Em todos os casos anteriores é preciso que alguém consciente dê a autorização expressa para que a vida – própria ou dos filhos ou parentes – seja interrompida. E nos casos em que não haja essa possibilidade? O cidadão holandês que quiser pode solicitar o chamado “medalhão DNR”, um adereço que deve ser usado por todos aqueles que não querem ser ressuscitados em uma emergência médica. Na peça, que pode ser solicitada junto a uma associação de pacientes, devem estar inscritos o nome, data de nascimento, assinatura e fotografia do requerente, que em caso de acidentes graves não receberá atendimentos como respiração boca-a-boca, massagem cardíaca ou qualquer outro procedimento de reanimação.
Abuso sexual e morte assistida
Em junho de 2019 a adolescente holandesa Noa Pothoven, de 17 anos, teve confirmada a morte por inanição após passar um período internada e receber os “cuidados paliativos” garantidos pela lei dos Países Baixos. Ela foi vítima de abuso sexual e estupro na infância, aos 11 e 14 anos. De acordo com uma reportagem da BBC, a jovem havia manifestado o desejo de pedir eutanásia em sua autobiografia, e foi apoiada pela mãe.
No livro “Winnen of Leren” (“Ganhar ou Aprender”, em tradução livre), Pothoven relata as internações em clínicas e centros de assistência a menores pelas quais passou – contra a sua vontade, ela afirma –, assim como as tentativas de suicídio e os distúrbios alimentares que se seguiram. Para a mãe, Lisette, o relato da filha “deve ser uma leitura obrigatória, não apenas para aqueles que trabalham na área de saúde, mas também para advogados de proteção à criança e instituições de assistência a jovens”.
Alguns dias antes de morrer, a jovem anunciou que havia parado de comer e beber. “Na verdade, faz tempo que eu não vivo, eu sobrevivo, e até isso mal faço. Eu respiro, sim, mas já não vivo mais”, contou a jovem. O quadro de saúde dela piorou, e Pothoven foi internada em um hospital, onde recebia alimentação por sonda após ter sido colocada em coma induzido. Foi quando os familiares decidiram suspender a alimentação para que a adolescente tivesse “seus dias finais mais suportáveis e tranquilos.”
Vaticano propõe objeção de consciência
Para o Vaticano, quaisquer que sejam os motivos que a ensejem, a eutanásia é “um crime contra a vida humana” e um “ato intrinsecamente mau, em qualquer ocasião ou circunstância.” As definições estão presentes na Carta Samaritanus Bonus, publicada em julho deste ano pela Congregação para a Doutrina da Fé. O documento trata dos cuidados das pessoas em fases críticas e terminais da vida, e classifica a eutanásia como um pecado grave contra a vida humana.
“Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir. Trata-se, com efeito, de uma violação da lei divina, de uma ofensa à dignidade da pessoa humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra a humanidade. (...) A eutanásia é um ato homicida que nenhum fim pode legitimar e que não tolera nenhuma forma de cumplicidade ou colaboração, ativa ou passiva. Aqueles que aprovam leis sobre a eutanásia e o suicídio assistido se tornam, portanto, cúmplices do grave pecado que outros realizarão. Eles são outrossim culpados de escândalo porque tais leis contribuem a deformar a consciência, mesmo dos fiéis. (...) A eutanásia e o suicídio assistido são uma derrota para quem os teoriza, para quem os decide e para quem os pratica”, diz a carta.
Entre outras considerações, o documento também pede aos cristãos que porventura se encontrem envolvidos em processos de eutanásia e suicídio assistido que pratiquem a objeção de consciência. A negativa em realizar ou colaborar com tais procedimentos deve ser defendida a todo custo, mesmo em casos como os realizados na Holanda, em que há uma previsão legal.
“Com efeito, as leis que aprovam a eutanásia não só não criam obrigação alguma para a consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a elas através da objeção de consciência. Desde as origens da Igreja, a pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas legitimamente constituídas, mas, ao mesmo tempo, advertiu firmemente que ‘é preciso obedecer mais a Deus do que aos homens’. O direito à objeção de consciência não deve fazer-nos esquecer que os cristãos rejeitam essas leis não em virtude de uma convicção religiosa privada, mas de um direito fundamental e inviolável de cada pessoa, essencial ao bem comum de toda a sociedade. Trata-se, de fato, de leis contrárias ao direito natural, enquanto minam os próprios fundamentos da dignidade humana e de uma convivência justa.”
E no Brasil?
Apesar de serem práticas ilegais, o Código de Processo Penal brasileiro não trata especificamente sobre eutanásia ou suicídio assistido. Ambos os casos, porém, podem ser tratados segundo os artigos 121 (homicídio), 135 (omissão de socorro) ou 122 (indução ou colaboração em suicídio). Há propostas de lei sobre o assunto tramitando na Câmara dos Deputados. Uma delas é de 2019, de autoria do deputado Alexandre Padilha (PT-SP), e trata da manifestação da vontade do paciente durante processo de enfermidade terminal de aceitar ou recusar tratamentos, ou até mesmo interrompê-los de forma antecipada
A proposta foi apensada a outro projeto de lei mais antigo, apresentado pelo deputado Hugo Leal (PSC-RJ) em 2008, que define os critérios que regulamentam a prática da ortotanásia – uma espécie de meio termo entre a eutanásia, a interrupção ativa da vida do paciente, e a distanásia, a manutenção forçada da vida do paciente à base de aparelhos e medicamentos e que pode trazer sofrimento.
O texto mais recente do Código de Ética Médica, publicado pelo Conselho Federal de Medicina em 2018, é claro em dizer em seu artigo 41º. que é vedado aos médicos “abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”. Por outro lado, em seu parágrafo único, o mesmo artigo informa que os médicos não devem “empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas” nos casos de doenças incuráveis ou terminais, e que todos os cuidados paliativos devem ser oferecidos “levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”.
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