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Recém-lançado no Brasil, o livro "Os Tribunais de Stalin" mostra como o regime comunista instaurou contra seus opositores a maior política de repressão policial do século XX — responsável pela prisão, entre 1937 e 1938, de 1,5 milhão de pessoas, entre as quais mais da metade foi executada.
Mais do que isso: o trabalho do historiador francês Nicolas Werth analisa, por meio novos dados e debates acadêmicos recentes, a sistematização de uma engenharia social cujo objetivo era "purificar" os elementos que supostamente impediam o avanço do comunismo.
Leia a seguir, o texto de introdução da obra, editada pelo selo Avis Rara.
Mais de 80 anos se passaram desde as sensacionais confissões dos “velhos bolcheviques”, companheiros de Lênin, julgados em Moscou ao longo de três grandes processos públicos, em 1936, 1937 e 1938, por espionagem, sabotagem, traição, complô, com a intenção de derrubar o governo soviético e restaurar o capitalismo na União Soviética.
Passadas três décadas, a abertura — ainda que parcial — dos arquivos das instâncias dirigentes do partido comunista da União Soviética — do fundo de Stalin, em particular — permitiu esclarecer os mecanismos de fabricação dessas paródias judiciárias, de sua função político-ideológica, mas também possibilitou uma maneira mais adequada de situá-los no momento paroxístico de violência que foi o “Grande Terror”.
Há muito centrados na “paranoia” e na “sede de poder” de Stalin, na repressão dos membros comunistas, nos grandes processos públicos, portanto na “face pública” do Terror, no momento, os estudos consagrados ao cataclisma dos anos 1937-1938 têm se orientado mais pelos mecanismos da repressão, pela sociologia dos grupos vitimados, pelas “grandes operações secretas de massa”, portanto pela “face conspiratória” do Terror.
Tal como antes, os grandes processos de Moscou aparecem pouco no centro do dispositivo. Mas nem por isso se constituem menos numa peça central, num alicerce crucial desse nó de radicalização cumulativa que foi o “Grande Terror”, um acontecimento fundamental da história da URSS tanto no plano interno quanto no da evolução da imagem desse país no exterior.
Com efeito, desde a sua abertura, esses processos surgem como um acontecimento formidável e espetacular, que de imediato cristaliza um conjunto de mitos e de imagens confusas que todos têm do longínquo e misterioso “país dos sovietes”.
Desde as revoluções de 1917, nenhum acontecimento vindo da União Soviética provocou tamanho eco no imaginário social, tampouco tenha sido tão relatado e comentado. No caso da França, até mesmo os periódicos de província dedicaram inúmeras colunas aos processos, durante todo o seu desenrolar.
Para os leitores, de resto de todo ignorantes das realidades soviéticas, os “alambiques dos envenenadores do Kremlin” são mais apaixonantes que os assuntos mais austeros, mantidos quase que em silêncio, como o são a coletivização forçada dos campos ou a industrialização, com todas as suas consequências.
Num abismo de ignorância, o impacto e o sucesso midiático do acontecimento são imensos. Em plena Frente Popular, num mundo cada vez mais ameaçado pela ascensão dos fascismos, os processos de Moscou relançam — 20 anos após a campanha do homem com a faca entre os dentes — uma vasta polêmica que se difundiu na URSS, em meio a uma opinião pública que, mais dividida do que nunca, contrapunha adversários do bolchevismo e adversários do fascismo.
Ao desencadear paixões, logo os processos se tornam pretexto para a extrapolação. O desconhecimento geral do contexto político e social soviético, o delírio antibolchevista de uns, a paralisia intelectual de outros, perturbados pelas confissões, mas que se recusam a analisar de maneira crítica e racional a natureza do poder stalinista, a adesão incondicional dos comunistas ocidentais às teses soviéticas obscurece o discernimento e não permite identificar a verdadeira natureza desses processos.
Pelo menos ao final do terceiro processo, não é mais possível tomar as confissões ao pé da letra, não compreendemos, ou não procuramos compreender, os mecanismos ideológicos, políticos e sociais subentendidos nos processos de Moscou, a revelar aí seu sentido e sua função
Esses processos não suscitarão nenhuma crise de consciência importante no movimento trabalhista internacional. E é assim que esses processos se revelam duplamente mistificadores.
As confissões dos acusados desorientam uma ampla fração da opinião pública mundial, que da negação de justiça guarda a lembrança do caso Dreyfus, no qual o acusado clamava inocência. Também a montagem dessas paródias judiciárias, ademais bastante medíocre, segue mais ou menos bem.
É verdade que a partir de 1937-1938 a culpa dos acusados é seriamente posta em dúvida no exterior — na URSS, o fantasma do complô é amplamente compartilhado pelas massas —, mas a incerteza subsiste até as “revelações” de [Nikita] Kruschev no XX Congresso, e mais tarde no XXII Congresso do Partido Comunista, os quais definitivamente derribam o edifício já bastante abalado dos processos
Ocorre que a mistificação mais eficaz e mais durável, na verdade, incide menos na própria culpa dos acusados e mais no sentido e função desse acontecimento. Evento-espetáculo, os processos de Moscou têm sido formidáveis também como evento-destaque, no que chamou a atenção de observadores estrangeiros, convidados ao espetáculo, tendo-se deles ocultado tudo o que se passava por detrás e à margem.
Os grandes processos públicos dos companheiros de Lênin mascararam totalmente a extensão da repressão que atingiu a massa de anônimos. E, desse ponto de vista, o célebre “discurso secreto” de Kruschev, do qual a gênese hoje é mais bem conhecida, de modo algum contribuiu para tornar célebre a “face secreta” do Terror.
“Conclusão avassaladora de um expurgo”, como escreveu Annie Kriegel, os processos de Moscou — porque eram a face mais ostensivamente visível da repressão — deixaram a impressão de que o Grande Terror seria, de início e antes de tudo, um imenso expurgo político, mais sangrento que os outros, que teria atingido, em primeiro lugar, os gestores do partido, da economia, do exército e parte da intelligentsia e das elites nacionais não russas.
Ora, o Grande Terror foi, em essência, e isso para 90% das vítimas, uma vasta operação de engenharia social com o intuito de erradicar, por meio de operações ultrassecretas, decididas e planificadas no mais elevado nível — por Stalin, Nikolai Yezhov e seus colaboradores mais próximos no Politburo [o supremo órgão do Estado] —, tendo como base cotas de execução e de internação em campos de trabalhos forçados, todos os elementos “socialmente nocivos” e etnicamente “duvidosos” que, aos olhos dos dirigentes stalinistas, aparecem tal e qual elementos de uma potencial “quinta coluna” na eventualidade de uma guerra, então provável em 1937-1938.
Essas vítimas — 1,5 milhão de pessoas detidas em 1937-1938, entre as quais mais da metade foi executada — pertencem a um conjunto heterogêneo a reagrupar o conjunto das “pessoas do passado”, dos “ex” — “ex-kulaks”, “ex-funcionários tsaristas”, “ex-proprietários”, “ex-comerciantes”, “ex-socialistas-revolucionários”, etc. —, assim como um número importante de cidadãos soviéticos “comuns” que têm — ou tiveram — vínculos, profissionais ou de parentesco, com países considerados hostis (Polônia, Alemanha, Japão, Finlândia, países bálticos).
Sob a sua face secreta, o Grande Terror foi, numa ampla medida, o ponto culminante, radical e letal de uma gestão policialesca do social, de toda uma série de medidas de engenharia social inaugurada com a deskulakisação (deportação, com base em cotas, de mais de dois milhões de camponeses em 1930-1933) e prolongada, em 1933-1935, com uma política de apreensões-expulsões-deportações de elementos “socialmente nocivos”, no contexto de uma política de “passaportização” e de “limpeza” de vilarejos.
Desmistificação
A descoberta dessa “face secreta” do Grande Terror — em relação à qual nenhuma documentação arquivística, que permitisse analisar os mecanismos de tomada de decisão, a implementação, as categorias e o número de vítimas, fez-se acessível até os últimos anos — certamente insere os processos de Moscou numa outra perspectiva, que, sem dúvida, não está tão no centro do dispositivo, posição que durante muito tempo eles ocuparam na memória do acontecimento, seja ela popular ou erudita.
Estando mais bem restituídos ao seu contexto, os grandes processos públicos de Moscou convidam o historiador, seguindo o caminho da desmitificação, a interrogar-se sobre as reações suscitadas pelo evento, bem como a analisar o sentido e as funções desses processos na ideologia e na prática política soviéticas dos anos 1930.
Hoje sabemos de fato que os processos de Moscou — ao contrário da visão que deles tiveram os seus contemporâneos — foram algo diferente e muito mais que o último ato da luta política que, por mais de dez anos, opôs Stalin a seus maiores rivais.
Elementos em meio a outros, tais como os expurgos do Partido, de uma prática política específica, os grandes processos públicos inicialmente ilustram, da maneira mais solene que se possa ter, um tema central da ideologia stalinista que é a figura do complô, resultado de uma formidável ilusão política marcada pela recusa em analisar as causas reais dos fracassos e das dificuldades de um sistema que afirma ter alcançado a meta que havia fixado: o socialismo.
Esses processos inscrevem-se também num contexto de conflitos sociais e políticos que, negados pela ideologia, tiveram como principais protagonistas a massa dos simples trabalhadores, os quadros econômicos e políticos, os aparelhos locais, as autoridades centrais.
Essas tensões e esses conflitos (centro-periferia, militantes partidários de base, simples trabalhadores administrativos da economia, jovens promovidos no contexto do Primeiro Plano Quinquenal, responsáveis pelo período da guerra civil) durante muito tempo foram submetidos ao silêncio, em benefício de uma interpretação simplista da situação, que se resumia a um confronto entre a “burocracia stalinista termidoriana” e a velha guarda bolchevista, que se manteve fiel a seus compromissos revolucionários.
Uma análise precisa do quadro ideológico e do contexto sociopolítico em que se integram esses processos permite deles compreender as múltiplas funções. O seu papel didático é crucial. Em relação às massas, os processos deram ensejo a uma extraordinária mobilização ideológica que, popular e populista, serviu às autoridades centrais em sua luta contra todos os supostos responsáveis pela aplicação mal-intencionada da linha do Partido, da “ruptura” entre a linha justa e sua realização.
Cada processo responde assim, em dado momento, a uma estratégia política precisa. Como o descreve o Pravda, o processo político é um “sinal”.
Ali nada é deixado ao acaso. A seleção dos acusados, os temas da acusação, o próprio teor das confissões, cuidadosamente “compostas” pelos instrutores encarregados da preparação do processo, são altamente significativos: todos esses elementos devem permitir esclarecer, num momento de extrema confusão, a categoria particular dos “inimigos” de plantão.
As lições de cada processo são por vezes esotéricas. Ocorre que elas se fazem controversas pelos próprios indivíduos que encenam tais paródias de justiça. Mas todas possuem um sentido mais ou menos explícito, que cabe ao historiador decifrar.