Para o dr. Harvey, os causadores de tudo são o capitalismo,o consumismo e a globalização. e a solução é simples: o socialismo.| Foto: Divulgação
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A academia tem dessas coisas: a gente fala mal de acadêmicos para o homem comum e o homem comum nem tchum, porque acha que não é com ele. Imaginem se alguém fosse falar das ideias insólitas de um pernambucano barbudo com óculos fundo de garrafa para um norte-americano vendedor de cachorros-quentes. Mal saberia ele que aquele esquisitão dos trópicos, chamado Paulo Freire, é citadíssimo pelos pedagogos do seu próprio país e que seu filho estudaria numa escola criada por esse sujeito. Depois a educação de uns orientais esfaimados ultrapassa a de ocidentais opulentíssimos e fica todo mundo boquiaberto.

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Pois bem. O leitor pode perguntar “que Harvey?” e eu responder David Harvey. Quem? O geógrafo mais citado do mundo por acadêmicos em suas produções. Agora o povo de Universidade está em polvorosa porque o Dr. Harvey escreveu um artigo luminoso sobre a Covid-19 e o anticapitalismo intitulado A política anticapitalista na época da COVID-19. Já saiu tradução na respeitável revista de humanidades da Unisinos e num ebook intitulado Coronavírus e a luta de classes que compila artigos feitos a jato sobre o tema.

O texto da sumidade da geografia, o dr. Harvey, afeta a sua vida, pois é assim que o seu filho vai estudar a Covid-19 na escola – talvez ainda este ano, na aula de atualidades.

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O capitalismo é o culpado

A pergunta não deixa de conter a resposta. A causa da crise do coronavírus é o coronavírus. As pessoas informadas que não se curvam servilmente a ideologias sabem que, desde 2007, cientistas chineses alertaram para a bomba relógio que eram os mercados de animais vivos do país, e em especial o hábito de comer morcegos.

Primeiro os bichos ficam empilhados, transmitindo secreções e vírus uns aos outros. Depois, o homem come essa sopa biológica. Vírus é uma forma de vida que sofre mutações com muita facilidade e a grande novidade ocorrida em Wuhan foi esse vírus da família corona passar de homem para homem. Era de esperar que alguém que comeu um morcego infectado ficasse doente, mas não que transmitisse a doença a outro homem que não teve nada com o morcego.

Uma vez que se note essa transmissão, é necessário alertar as autoridades sanitárias do governo para que tomem medidas. Ainda em dezembro de 2019, o médico Li Wenliang descobriu isso, contou para os colegas por meio de chat e suas descobertas ganharam repercussão. Que fez o Partido Comunista chinês? Puniu-o por divulgar boatos, proibiu-o de trabalhar e o obrigou a assinar um documento em que ele se comprometia a não repetir as coisas que dissera.

Depois ele morreu de Covid-19. Numa democracia, os médicos têm orgulho de descobrir novas doenças e saem para contar aos colegas, ao governo e à imprensa.

Mas o Dr. Harvey é um marxista. Qual é a causa da crise do coronavírus para ele? O capitalismo, o consumismo e a globalização. E ele tem a audácia de afirmar que “com a Covid-19, o presidente Xi se apressou em ordenar total transparência, tanto na apresentação de relatórios, quanto nas provas”. Os tais dados de Xi ainda não lhe permitem saber se a doença se originou em Wuhan. Cito, para que o leitor não ache que é interpretação minha: “Não me surpreendeu muito que a Covid-19 tenha sido encontrada inicialmente em Wuhan (embora ainda não se saiba se ela se originou lá)”.

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Mas piora. Ele diz ainda que “o que tem sido notável é que a China conseguiu confinar a epidemia à província de Hubei, com Wuhan no centro. A epidemia não se espalhou para Pequim, nem para o Oeste, nem mais ao Sul”. Se a China controlou a doença, como ela foi parar na Itália? Ora, a doença talvez nem tenha surgido em Wuhan.

Existe uma outra origem para a doença, apontada pelo Partido Comunista chinês: o vírus seria uma arma biológica criada pela CIA. Assim, é forçoso concluir que o relato feito pela sumidade ocidental da geografia, David Harvey, é no mínimo compatível com a propaganda chinesa. Isso é muito grave.

Não bastasse o panegírico da ditadura totalitária chinesa, o dr. Harvey aponta um dedo acusatório para as democracias ocidentais. Primeiro, estamos erradíssimos porque nossa medicina neoliberal não criou um remédio nem uma vacina para um vírus que não existia. (Tampouco a China, mas ele parece ter expectativas menos elevadas para com os homens não-brancos).

Diz ele: “Quarenta anos de neoliberalismo em toda Américas do Norte e do Sul e na Europa deixaram a população totalmente exposta e mal preparada para enfrentar uma crise de saúde pública”. Não seria mais simples dizer “Américas”? Seria, mas isso incluiria a América Central, onde está a gloriosa Cuba. Na certa, para ele Cuba está muito preparada para receber a Covid-19 com os seus famélicos, enquanto manda seus médicos para a Itália para fins propagandísticos e pecuniários, pois abocanha-lhes grande naco do salário.

Segundo ainda o dr. Harvey, o neoliberalismo impediu que tivéssemos muitos profissionais contratados – como se apenas profissionais, sem equipamento, resolvessem o problema. Seria preciso que o Estado criasse vacinas para doenças inexistentes e contratasse profissionais numa quantidade muito superior à necessidade corrente.

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Outros erros apontados pelo acadêmico é o fato de o Ocidente ter demorado a reagir não porque a China escondesse dados, mas sim porque é xenófobo e não se importou com um problema que o glorioso Xi resolveu rapidinho. E Trump é criticado assim: “O fato de o ‘Federal Reserve’ ter baixado as taxas de juros diante de um vírus parecia insólito, mesmo quando se reconhecia que a medida tinha por objetivo aliviar o impacto nos mercados, em vez de retardar o progresso do vírus.”

Qualquer um de boa-fé sabe que os atos do fundo são para salvar empresas e empregos. Pode-se do mesmo jeito criticar nosso auxílio de R$600 dizendo que ele não detém o vírus.

Por fim, estamos todos erradíssimos porque há consumo demais no mundo. “As visitas internacionais aumentaram de 800 milhões para 1,4 bilhão, entre 2010 e 2018. Essa forma de consumismo instantâneo exigiu investimentos massivos em infraestrutura, em aeroportos e companhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos e eventos culturais, etc”.

Trocando em miúdos, para o dr. Harvey tem muito pobre andando de avião. Consumo é errado e feio. E esse de viagem é o pior de todos, chamado de “consumismo compensatório”, por supor que “os trabalhadores alienados poderiam recuperar seu espírito por meio de um pacote de férias em uma praia tropical”. O correto é não consumir, bancar vacinas para vírus imaginários e ficar revoltado contra o capitalismo.

O dr. Harvey, transparente como o grande Xi, informa que “as economias capitalistas contemporâneas estão impulsionadas em 70 ou até 80% pelo consumismo”. Aí vem o corona e pronto. Acabou a economia, por isso a crise.

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As soluções do dr. Harvey

Felizmente, o dr. Harvey tem uma solução para os nossos problemas. Parte da solução já é ofertada pelo próprio vírus, que reduz o consumismo, os gastos previdenciários e o setor de cuidado com idosos. Cito:

“A qualidade do ar em Wuhan melhorou muito, como em muitas cidades dos Estados Unidos. […] Os cisnes retornaram aos canais de Veneza. À medida que diminui o gosto pelo excesso de consumo imprudente e sem sentido, poderá haver alguns benefícios a longo prazo. (Menos mortes no Monte Everest pode ser algo bom). E embora ninguém diga isso em voz alta, o viés demográfico do vírus poderá acabar afetando as pirâmides etárias, com efeitos a longo prazo na Seguridade Social e no futuro da ‘indústria do cuidado’. A vida cotidiana vai desacelerar e para algumas pessoas isso será uma bênção”.

Imagino que o leitor, assim como eu, esteja mais interessado na saúde do seu pai do que em prevenir as mortes no Everest. Muitos leitores também se sentem felizes por poderem dar emprego a pessoas que cuidem dos seus pais, se eles forem velhos enfermos. Mas há prioridades: desempregar cuidadores, reduzir a pirâmide etária, prevenir morte de turistas no Everest e fazer pobre parar de andar de avião.

Por fim, para o dr. Harvey cabe a Trump socializar a economia dos EUA. Por alguma razão, o dr. Harvey acha que a China já foi a salvadora da economia mundial e que agora é a vez dos EUA. Só a economia socialista funciona e Trump deverá transformar os EUA em um socialismo que não se diz socialista.

A conclusão, a Unisinos não teve coragem de traduzir. Cito a tradução do ebook: “Todos aqueles republicanos que tão visceralmente se opuseram ao resgate de 2008 terão que engolir sapos ou desafiar Donald Trump. Este último, se for sábio, cancelará as eleições em caráter de emergência e declarará a necessidade de uma presidência imperial para salvar o capital e o mundo do ‘motim e da revolução’”. O artigo original em inglês pode ser lido aqui.

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Quando o nazismo caiu, as universidades alemãs sofreram um processo de denazificação. Com clareza solar, vemos que não é preciso uma ideologia tomar o poder para tomar uma instituição. O Ocidente coroa quem defenda totalitarismo e proponha o fim de eleições. Gente que pensa assim pauta até a vida escolar das crianças.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]