David Hume é leitura obrigatória em cursos de filosofia. Este escocês do século XVIII é consagrado por causa de um feito que deve soar etéreo, que é a crítica da causalidade. Mas é um filósofo multifacetado: seus escritos sobre economia influenciaram o jovem amigo Adam Smith; sua História da Inglaterra foi a mais lida por séculos; seus raciocínios agnósticos acerca da existência de Deus lhe valeram proscrição na Universidade. E eis que hoje, no século XXI, a Universidade o proscreveu de novo.
Eis o que diz a Universidade de Edimburgo:
“O trabalho do Comitê de Igualdade e Diversidade e seu Sub-Comitê de Igualdade Racial e Antirracista continuou este verão. Foi mais energizado em maio pelo assassinato de George Floyd e pela campanha em andamento do movimento Black Lives Matter. Nosso Plano de Ação de Igualdade Racial e Antirracista está acelerando e amplificando nossos esforços.
“É importante que os campi, currículos e comunidades reflitam a diversidade contemporânea e histórica da universidade, e se comprometam com seu legado institucional ao redor do mundo. Por essa razão, a universidade tomou a decisão de renomear – de início, temporariamente, até que uma revisão inteira seja completada – um dos prédios do campus da área central.
“A partir do começo do novo ano acadêmico, a Torre David Hume será conhecida como número 40 da Praça George. […]
“A decisão interina foi tomada por causa das sensibilidades quanto a pedir aos estudantes que usassem um prédio com o nome de um filósofo do século XVIII cujos comentários acerca da raça, embora não incomuns na época, hoje causam angústia corretamente.”
Cancelar o sangrento Marx e o nazista Heidegger, ambos racistas, ninguém quer. A transformação da Torre Hume num número parece algo tirado de Orwell, que imaginou a Grã-Bretanha rebatizada como Pista de Pouso Número 1.
Mas e o plural?
Eu sou historiadora da filosofia, e meu objeto de tese foi a filosofia de David Hume. Li sua obra filosófica quase toda. Vi a alusão à raça, e fiquei encafifada. Quais seriam os “comentários”, no plural, que Hume teria feito?
Isso é fácil de descobrir. No site www.davidhume.org, toda a obra de Hume está digitalizada, e permite a busca por palavras-chave. Pesquisando black e blacks, e a maioria das ocorrências era como cor de objetos. Havia uma menção a black slaves (escravos negros) do Império Otomano, mas sem nenhuma apreciação. Em outra ocasião, uma guerra entre brancos e pretos no Marrocos, causada por mera diferença de compleição, é chamada de risível.
Quando se pesquisa negroe e negroes, aparecem três passagens: numa, afirma que lapões e negros desconhecem o sabor do vinho – pelo fato de nunca terem tomado vinho! –; noutra os negros são elencados, junto com os gregos e os persas da Antiguidade, como habitantes de climas quentes que gostam muito de se embebedar; e, por fim, há uma que pode ser acusada de racista.
Lá no século XVIII, na Escócia, tendo viajado pouco e conhecido, fora da Grã-Bretanha, somente a França, o homem escreveu a seguinte nota de rodapé no pequeno ensaio sobre caracteres nacionais:
“Tendo a suspeitar que os negros sejam naturalmente inferiores aos brancos. Dificilmente terá havido alguma nação civilizada dessa compleição, nem sequer um indivíduo eminente quer pela ação ou especulação. Nenhuma manufatura engenhosa entre eles, nenhuma arte, nenhuma ciência.
Por outro lado, os mais rudes e bárbaros dos brancos, tais como os antigos germânicos, os presentes tártaros, têm ainda algo de eminente – em seu valor, forma de governo ou outro particular. Tal diferença uniforme e constante não poderia acontecer em tantas terras e eras se a natureza não houvesse feito uma distinção original entre essas estirpes de homens.
Para não mencionar nossas colônias, há escravos negros dispersos por toda a Europa, dos quais nenhum jamais revelou qualquer sintoma de engenhosidade, embora gente de baixo, sem educação, ascenda ao nosso meio e distinga-se em toda profissão. Na Jamaica, de fato, falam de um negro como homem de talento e instrução, mas é provável que ele seja admirado por façanhas parcas, como um papagaio que fala palavras com clareza.”
Um homem erudito que devorou os clássicos da Antiguidade e se informava com muita desconfiança das coisas da América é obrigado a ter certeza de antemão que um dado grupo humano que vivia muito mal tinha iguais capacidades cognitivas?
As ruínas do misterioso Reino Cuxita e outros da África Negra ainda não tinham sido descobertas. Hume não sabia, mas o Império Romano permitia aos escravos mobilidade muito maior do que o Britânico, onde a alforria praticamente inexistia.
Para nós, hoje, parece covardia esperar que um escravo mostre grandes feitos do intelecto; para quem tem Roma e até a Grécia diante dos olhos, não. Quanto à comparação com o papagaio, é provável que Hume, que não acreditava em quase nada do que se falava da América, tivesse em mente o entusiasmo de Locke com o papagaio racional que um viajante francês vira no Maranhão.
Hoje quem lê o Ensaio sobre o entendimento humano dá risada do trote que o lusófono passou no francês, alegando que fazia tradução simultânea do português para o francês, ao intermediar a conversa entre o viajante e o papagaio. Hume, que provavelmente nunca viu um papagaio na vida, deve ter achado que a racionalidade do bicho foi exagerada pelas testemunhas, em vez de sacar que era puro trote pra cima do francês, que Locke engoliu.
Creio que hoje possamos responder a Hume com um pé nas costas: negros não são inferiores, e florescem em sociedades livres. Se o Brasil fosse o mundo, teríamos mais razão para duvidar da racionalidade de alemães dos descendentes de negros (vide Machado de Assis). O homem duvidou, fixou parâmetros que pudessem provar o contrário (anedota da América não valia) e tais parâmetros foram cumpridos.
Até então, temos um único comentário que pode ser chamado de racista. E o plural? Vamos então a outra raça.
Pesquisando “indian”, que pode ser índio ou indiano, vemos muitas alusões à armada indiana, aos tesouros das Índias, referência a indians como a indivíduos que vivem do outro lado do mundo, nos são totalmente desconhecidos, em relação aos quais não temos nenhuma paixão positiva ou negativa, menciona-se en passant sem juízo de valor a vida sem Estado das tribos…
Aparece a anedota do filósofo indiano que acreditava que o mundo repousava em cima de uma série de bichos gigantes, sem uma resposta satisfatória (Hume diz que quem usa o conceito metafísico de “substância” pra explicar as coisas é tão ruim quanto), e por fim (minha favorita) o elogio ao príncipe indiano, que não acreditou que a água ficasse dura, porque era mais razoável crer que o viajante europeu fosse loroteiro, do que crer, sem provas, num relato que contraria tanto a sua experiência.
Ao cabo, não há comentários, no plural, sobre raça. Foi puro blefe dos justiceiros sociais. As chances de um letrado europeu do XVIII fazer comentários racistas são grandes (se bem que menores do que as de um europeu dos séculos XIX e XX); logo, Hume deve tê-los feito. O crime dele é ser branco e iluminista
Posição de Hume quanto à escravidão
Hume fez um longo ensaio sobre uma querela bem quente de sua época: quando a Europa teria sido mais populosa? No Império Romano ou na modernidade? Para tentar responder à questão, compara a política e a economia antiga à moderna:
“A principal diferença entre a economia doméstica dos antigos e a dos modernos consiste na prática da escravidão, que prevaleceu entre os primeiros, e que foi abolida por alguns países na maior parte da Europa.
Alguns admiradores apaixonados da antiguidade, e zelosos partidários da liberdade civil (pois vê-se que esses dois sentimentos, porquanto justíssimos no cerne, são quase inseparáveis), não conseguem deixar de lastimar a perda dessa instituição; e, enquanto rotulam toda submissão ao governo de uma só pessoa com a severa denominação de escravidão, de bom grado submeteriam a maior parte da humanidade à escravidão real e à sujeição.
Mas a quem quer que considere friamente o assunto ficará claro que a natureza humana, em geral, na verdade goza de mais liberdade hoje, no mais arbitrário governo da Europa, do que jamais gozou no mais florescente período dos tempos antigos.
Qual a submissão a um príncipe insignificante cujos domínios não se estendam para além de uma única cidade é mais penosa do que a obediência a um grande monarca, tal a escravidão doméstica é mais cruel e opressiva do que qualquer sujeição civil.
Quanto mais o mestre se afasta de nós em espaço e nível, maior a liberdade de que gozamos: menos as nossas ações são inspecionadas e controladas, e mais tênue se torna aquela comparação cruel entre a nossa sujeição e a liberdade, e até o domínio de outrem. As reminiscências da escravidão doméstica que se encontram nas colônias americanas e em algumas nações europeias com certeza jamais criariam o desejo de torná-la mais universal.
A pouca humanidade que comumente se observada em pessoas acostumadas desde a infância a exercer tão grande autoridade sobre suas criaturas irmãs e a pisotear a natureza humana bastou para nos enojar com esse domínio ilimitado.
E nenhuma razão mais provável pode ser atribuída às maneiras severas – bárbaras, eu diria – dos tempos antigos do que a prática da escravidão doméstica, através da qual todo homem de nível se tornava um tirano insignificante, e era educado em meio à bajulação, à submissão e ao rebaixamento dos seus escravos.”
Não vou me estender, mas Hume continua. É de clareza cristalina que ele era contrário à escravidão, ainda que tendesse a crer que negros fossem inferiores. E havendo seres inferiores, muda-se isso? Muito pelo contrário.
Protestantes levantavam, no começo da modernidade, a possibilidade de os negros serem cruzamento de homens com macacos, daí a sua inferioridade intelectual e o seu estranho aspecto físico.
Tendo provavelmente isto em mente, Hume levanta a hipótese: “Se houvesse uma espécie de criatura misturada com homens, que, embora racional, possuísse uma força física e mental inferior, de tal maneira que fosse incapaz de resistência […], a consequência necessária, creio eu, é que estaríamos obrigados, pelas leis da humanidade, a dar um trato gentil a essas criaturas”.
A comparação se dá com as mulheres: são mais fracas do que os homens, mas isso produz entre europeus civilizados o cavalheirismo, enquanto que bárbaros as oprimem e tratam as mulheres como escravas. Esses humanoides inferiores, se existissem, deveriam receber cuidados e ser deixados de fora do sistema de justiça e da propriedade – o que não deixa de ser a maneira como muitos supostos antirracistas tratam indígenas em reservas.
Tratar alguém como escravo, ainda mais quando esse alguém é um inferior, é barbarismo a ser remediado pela civilização. E barbárie independe de raça; afinal, os europeus escravistas são caracterizados assim.
Segundo cancelamento
Como aludido no começo, este é o segundo cancelamento sofrido por David Hume. Por ser agnóstico, os fanáticos (bigots) de Edimburgo lhe fecharam as portas da universidade, e Hume nunca pôde ser professor.
Em virtude disso, ele custou muito a conseguir se sustentar e passou maus bocados, até se tornar um best-seller na Europa, adorado pelos franceses. Quando estava para morrer, sentia que seria reconhecido como pensador importante. E foi.
Ser cancelado pelos novos fanáticos é só um sintoma disso. David Hume foi cancelado. O nome dos seus censores, já anônimos, será fumaça no tempo. O nome dele ninguém apaga.
PS: Traduzi e anotei o livro póstumo dele sobre o assunto mais proibido. Está disponível aqui.
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