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Os planos de Elon Musk de testar chips cerebrais em humanos, dentro de seis meses, talvez precisem ser adiados, após uma investigação do governo dos EUA e denúncias internas na Neuralink, empresa cofundada pelo dono da Tesla e do Twitter. A interface cérebro-máquina, como é chamada a área que torna possível que uma pessoa controle o cursor de um computador com o pensamento, por exemplo, é um dos setores de investimento do homem mais rico do mundo.
Em 2016 ele cofundou, junto a três outras pessoas, a Neuralink, dedicada a desenvolver implantes cerebrais inteligentes. A firma tem trabalhado em um implante com 1.500 eletrodos que seria testado em humanos em 2020, mas o plano foi postergado. Na última semana (30), Musk prometeu o início dos testes em humanos para daqui um semestre.
No domingo (5), no entanto, a agência de notícias Reuters informou que o Inspetor Geral do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) iniciou uma investigação contra a Neuralink, a pedido de um procurador federal. O inquérito teria sido aberto já há meses e teria base na Lei de Bem-estar Animal, que cobre o tratamento de cobaias de laboratório. Segundo 20 funcionários e ex-funcionários da empresa entrevistados pela agência, além de dezenas de documentos a que teve acesso, a pressão de Musk (que atua como CEO) por resultados mais rápidos teria resultado em fracassos de experimentos e mortes desnecessárias de animais.
O USDA não quis comentar o caso, mas a Neuralink passou em todas as inspeções que o departamento fez de suas dependências até hoje.
Da cura de doenças degenerativas a problemas morais
Um implante inteligente seria capaz de dar informação em tempo real sobre o estado de um paciente em relação à atenção, emoção, fadiga etc. Poderia prever uma convulsão epiléptica antes que acontecesse em até cinco segundos, tendo tempo para uma intervenção elétrica que a evitasse — uma esperança para epilépticos nos quais medicamentos não funcionam.
Em uma revisão da promessa da Neuralink em 2019, Alexander Pisarchik, do Centro de Tecnologia Biomédica da Universidade Técnica de Madrid, junto a colaboradores, dá o exemplo de um aparelho implantável criado pela empresa Cyberonics, do Texas, que reduz em 30 a 40% o número de convulsões. Os implantes poderiam levar também à restauração das conexões perdidas em doenças degenerativas como o Alzheimer.
Os autores da revisão reconhecem que há um lado sinistro nesses desenvolvimentos: “podem ser usados por pessoas inescrupulosas para objetivos egoístas”, comentam. “Entre os efeitos indesejáveis de interfaces cérebro-máquina”, complementam, “está a possibilidade de um governo ou organização não-governamental controlar e manipular o comportamento da pessoa não apenas através da mídia de massa, mas também pelo envio de comandos diretos ao cérebro”.
Uma das motivações de Elon Musk para investir na área é justamente seu medo de que a inteligência humana seja superada pela inteligência artificial. Ele considera como solução uma mescla das duas. O filósofo moral francês Éric Fourneret vê contradição nessa postura. Seria “desenvolver inteligência artificial para limitar o seu avanço”, comenta, em um artigo de 2020 para uma revista de bioética.
Fourneret percebe, também, que Musk não tem reservas em não só defender a interface cérebro-máquina para melhorar a saúde, mas também para um projeto de “trans-humanismo” muito mais controverso, que busca melhorar a própria natureza humana. O filósofo pensa que essa mescla de inteligências pode ser tão irreal quanto viajar à velocidade da luz, possibilidade vetada pelas teorias de Einstein.
Em 2008, um macaco foi capaz de usar um implante para controlar com 70% de sucesso um braço mecânico para alimentar a si mesmo. Quatro anos depois, duas pessoas tetraplégicas fizeram o mesmo, “sem treinamento explícito”. Um deles conseguiu tomar café de uma garrafa. Ele tinha ganhado o implante na parte do cérebro dedicada ao movimento (córtex motor) cinco anos antes.
Chute inicial na Copa e mais promessas
Os brasileiros estão familiarizados com a pesquisa em interface cérebro-máquina devido ao trabalho do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, que faz pesquisa na americana Universidade Duke. Na abertura da Copa do Mundo de 2014, um paraplégico, em pé graças a um exoesqueleto robótico controlado por sinais de seu cérebro, deu um pequeno chute em uma bola. A cena passou na TV por uma fração de segundo e foi amplamente considerada menos impressionante que o prometido pelo cientista.
Dos vários tipos de paralisia, uma das esperanças mais alcançáveis no momento por essas tecnologias é o retorno da comunicação para pessoas completamente paralisadas, como aquelas que sofrem de síndrome do encarceramento, na qual há completa incapacidade de movimentação, exceto, em alguns casos, pelos olhos. Foi o caso do jornalista francês Jean-Dominique Bauby (1952-1997), autor do best-seller ‘O Escafandro e a Borboleta’ (1997), posto nessa condição por um derrame cerebral aos 43 anos.
Bauby comparava sua condição a estar em um escafandro, um aparato antiquado para mergulho. No fim do livro, observando a bolsa de Claude, que escrevia as palavras que ele ditava com os olhos, ele conta que viu uma chave, um bilhete de metrô e uma nota de cem francos dobrada. “O cosmos tem chaves para abrir o meu escafandro? Uma linha de metrô sem terminal? Uma moeda forte o suficiente para comprar de volta a minha liberdade?”
Denúncias anônimas
Desde 2018, a Neuralink teria sacrificado cerca de 1.500 animais ao todo, especialmente camundongos e ratos, entre eles 280 ovelhas, porcos e macacos, em experimentos. Não se pode afirmar que o número é alto demais, mas é esta a alegação que fazem alguns dos (ex-)funcionários anônimos à Reuters. Três dessas pessoas mencionam, por exemplo, quatro experimentos com 86 suínos e dois macacos que foram afetados por erros humanos, levando à necessidade evitável de repetir e sacrificar mais animais. As três fontes anônimas atribuíram os erros a uma falta de preparação dos pesquisadores causada pelo ambiente de pressão por resultados em prazos curtos.
A impaciência do bilionário pode ter a ver com as metas amplas da Neuralink. A concorrente Synchron, com metas mais modestas, recebeu aprovação da Administração de Alimentos e Drogas (FDA) dos Estados Unidos para testes em humanos em 2021. O dispositivo da Synchron permitiu que pessoas paralisadas digitassem e mandassem mensagens com o pensamento. Tudo isso a um custo menor das vidas de cerca de 80 ovelhas, de acordo com a Reuters. A Synchron também começou em 2016. Em agosto, ela teria atraído atenção de Musk para um potencial investimento.
Porém, nem todas as fontes internas pensam que a Neuralink é cruel ao lidar com os animais. O próprio Musk prometeu que os macacos deveriam ter seu próprio “Taj Mahal” em um local de pesquisa em São Francisco, Califórnia, e declarou que não gosta de usar animais em experimentos — mas o uso é necessário para desenvolvimento da tecnologia, pois não há simulações boas o suficiente do cérebro.
A investigação da USDA foi aberta para averiguar um caso em que a Neuralink colaborou com a Universidade da Califórnia em Davis. Um grupo de direitos animais acusa o trabalho feito nessa parceria de ter matado macacos de forma desnecessária pelo uso da cola cirúrgica errada, que teria acontecido duas vezes. Outros macacos tiveram complicações diferentes por causa dos implantes. A Neuralink admite que sacrificou seis macacos por causa das complicações, mas o teria feito a conselho dos veterinários da universidade. A universidade defende a pesquisa em parceria com a empresa e declara que seguiu todas as leis e regulamentos aplicáveis.
Outro exemplo de suposta má conduta da Neuralink teria sido um experimento que levou à morte de 25 entre 60 porcos pela razão de os dispositivos implantados em suas cabeças serem do tamanho errado. Mais uma vez, o erro seria resultado de pressa e pressão por produtividade. O erro foi notado internamente. Em maio de 2021, Viktor Kharazia, um cientista envolvido, disse aos colegas que foi um mau sinal que poderia atrair a atenção da FDA. O experimento estava na esteira de argumentos a serem apresentados à agência para aprovação de testes em humanos. Ele foi repetido em 36 ovelhas, de acordo com a fonte da Reuters. Todos esses animais foram sacrificados após os procedimentos.
Dois porcos foram sacrificados por outro erro de implantação do dispositivo na vértebra errada, que teria sido evitado pela mera contagem cuidadosa das vértebras. Sam Baker, veterinário da Neuralink, disse aos colegas a respeito de um deles, uma leitoa, que “com base na chance baixa de recuperação completa e seu mau estado psicológico atual, foi decidido que a eutanásia era a única decisão apropriada”. “É difícil para os porquinhos”, disse um dos funcionários.
Os documentos examinados pela agência de notícias revelam, também, que por muitos anos foi comum na Neuralink falar em usar os animais para cirurgias “exploratórias”. A diretora de cuidados animais da empresa, Autumn Sorrells, pediu em outubro, segundo os documentos, para que os funcionários removessem a palavra “exploração” retroativamente dos títulos dos estudos e que não usassem a partir daquele momento. Alguns funcionários reclamaram, um disse que o objetivo do pedido era “melhorar a imagem” da Neuralink. Sorrells não respondeu às tentativas de contato da Reuters.