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Mulheres palestinas nas proximidades de Ramallah
Mulheres palestinas nas proximidades de Ramala, em 2021.| Foto: Gabriel de Arruda Castro

São dez e meia da noite em uma quarta-feira de verão e as calçadas ainda estão cheias de pedestres quando a polícia isola um trecho da Rua Jaffa, o principal corredor comercial de Jerusalém. A suspeita é de que uma mala deixada em um ponto de ônibus contenha explosivos.

Naquela vizinhança, em especial, toda situação do tipo é levada a sério. A 900 metros dali, em 2001, terroristas explodiram uma pizzaria, mataram 16 pessoas e feriram mais de 100. Faz dois dias que o ataque completou 20 anos.

O esquadrão antibombas analisa o material com o que parece ser um equipamento eletrônico capaz de identificar explosivos. Algumas pessoas observam quase com indiferença, como se fosse algo rotineiro.

Enquanto a polícia se prepara para detonar o objeto, o dono (um judeu ortodoxo) surge esbaforido. Ele simplesmente havia esquecido sua mala.

E a vida prossegue.

Em 2021, logo após Israel reabrir as fronteiras depois da fase mais aguda da pandemia, estive no país (e na Palestina) por iniciativa do de uma organização americana que atua na região.

A experiência foi muito além da visita aos pontos turísticos. Conheci o ex-grande mufti (espécie de "bispo” islâmico) de Jerusalém, o prefeito (palestino) de Hebron e um ex-líder terrorista. Encontrei cristãos árabes e drusos que vivem em Israel. Conheci o bairro ultra-ortodoxo onde cada família tem seis filhos em média. Visitei um kibbutz e o Domo da Rocha. Fui ao deserto, almocei com uma família palestina e com judeus de origem marroquina.

Dessa experiência, tirei muitas lições que parecem especialmente relevantes agora que Israel decide a melhor forma de reagir aos ataques terroristas de 7 de outubro.

O vizinho é o inimigo

A primeira lição que aprendi foi a de que a sobrevivência do povo israelense depende diretamente das suas Forças Armadas. E não é só no entorno da Faixa de Gaza.

Do alto do deserto da Judeia é possível ver, de um lado, Jerusalém e, de outro, a Jordânia. Na fronteira com o Líbano, um binóculo permite enxergar uma bandeira da Palestina erguida pelo Hezbollah como provocação. Mais do que provocações, o grupo terrorista financiado pelo Irã lança foguetes sobre essa região rotineiramente. Na fronteira com a Síria, as marcas de guerra são visíveis e contrastam com as cenas de israelenses levando uma vida normal a poucos metros da divisa. Em Hebron, judeus e palestinos vivem literalmente no mesmo prédio (os judeus no andar de cima) sem qualquer política de boa vizinhança.

A população e Israel aprendeu a viver com essa realidade porque não há outra opção. E porque confia no Estado.

Dois muros protegem Israel: um, de concreto e arame farpado, separa os israelenses e palestinos, em Gaza e na Cisjordânia. O outro, feito com tecnologia, impede que os foguetes lançados pelos grupos terroristas atinjam o solo.

Quando os terroristas conseguem abrir uma brecha em um dos dois muros, o que se vê são as cenas como as de 7 de outubro.

Terror durante o dia sagrado

Uma das experiências mais marcantes da visita a Israel me voltou à memória depois dos ataques terroristas do Hamas. Foi o dia em que participei do jantar da noite de sexta-feira, que dá início ao shabbat (sábado) judaico. Os meus anfitriões, ortodoxos, levam o dia sagrado a sério: mesmo tarefas prosaicas como dirigir ou usar o celular. É o dia de repouso ao lado da família.

Os anfitriões me receberam com extrema cordialidade. As mulheres tratavam de finalizar o preparo da comida antes que o sol se pusesse e desse início ao shabbat. Fomos (a pé) à sinagoga antes do jantar. De volta à casa, o pai chamou cada filho e deu-lhes uma bênção seguida de um abraço carinhoso. A refeição começa com o compartilhamento do pão e do vinho. Depois do jantar, as crianças se encontram na rua para brincar -- embora passe das 21h.

Em milhares de lares israelenses, a paz sagrada do sábado foi destruída abruptamente pelos terroristas do Hamas na manhã de 7 de outubro.

A religião no centro

O conceito de um Estado religiosamente neutro é uma anomalia histórica: durante praticamente toda a história humana, a religião esteve no centro. Em Israel, a afiliação religiosa consta dos documentos oficiais. Dos dois lados do muro, essa demarcação é responsável por muitas das virtudes e alguns dos vícios de israelenses e palestinos.

Em Israel, os judeus são maioria e continuarão a sê-lo. Mas a diversidade israelense é muito maior do que pode parecer. Dentre os judeus, existem dois grupos étnicos principais, com raízes distintas: os sefarditas (que retornaram a Israel depois de se radicar em outros países do Oriente Médio e do Norte da África) e os asquenazes (vindo sobretudo do centro e leste da Europa).

Além disso, um número expressivo de israelenses é de negros com origem na Etiópia (e uma conexão longínqua, embora comprovada, com o povo judeu). Eles são especialmente numerosos nas Forças Armadas.

Do ponto de vista religioso, a variedade é ainda maior: há judeus liberais, ortodoxos, sionistas e “ultra-ortodoxos.” Há também os seculares, que simplesmente não têm religião. Há ainda os muçulmanos (14%), os cristãos (2%) e os drusos (2%), uma minoria curiosa cuja religião parece uma mistura entre o Cristianismo, o Islamismo e crenças pagãs.

Israel parece ter encontrado o ponto de equilíbrio entre ser um estado judaico e, ao mesmo tempo, permitir que outros grupos coexistam dentro de suas fronteiras.

Na Palestina, a situação é diferente.

O desaparecimento dos cristãos palestinos

A Palestina não é o Irã. Em plena capital da Autoridade Palestina, Ramala, vi um jovem com o rosto de Jesus Cristo tatuado no braço, caminhando tranquilamente pela rua enquanto usava uma camisa sem mangas.

Os cristãos são tolerados no território palestino, mas tolerância não significa igualdade de condições. As autoridades da Palestina parecem desconfortáveis com a presença de não-muçulmanos em seu território.

Os cristãos eram 11% da população da Palestina em 1922. Hoje, são 1%. Em Belém, por exemplo, os cristãos eram 84% dos moradores em 1922. Em 2007, passaram a 22%. É verdade que a hostilidade não é explícita que muitos deles saíram por razões econômicas, mas cristãos palestinos dizem, com frequência, ser tratados como cidadãos de segunda classe. Uma pesquisa feita em 2020 por uma organização independente mostrou que 43% dos cristãos da Palestina acreditam que os muçulmanos não os querem lá. Quase metade deles afirma serem discriminados por muçulmanos quando procuram empregos.

O 1% de cristãos deve se tornar uma fração ainda menor no futuro próximo.

Encontro com um terrorista

Outra lição que aprendi na viagem é a de que boa parte dos líderes palestinos não quer a paz. Eles não buscam um acordo que devolva áreas conquistada por Israel nas guerras travadas contra os árabes. Querem, isto sim, que Israel deixe de existir “do rio ao mar” (do rio Jordão ao Mediterrâneo, o que simplesmente significa toda a extensão de Israel).

Muitas dessas lideranças justificam o terrorismo com sofismas. Cada pergunta sobre a imoralidade de se matar civis é respondida com outra pergunta sobre a suposta imoralidade da ocupação israelense. Esses líderes tratam os judeus (todos eles) como invasores. Uma das figuras com quem conversamos negou até mesmo os achados arqueológicos que comprovam a existência de uma população judaica na região nos tempos bíblicos.

Também vi um ex-líder de uma organização terrorista, que renunciou ao método mas não às ideias, ser tratado como uma espécie de herói por causa do seu passado, e não apesar dele. Mais sofismas: para ele, a violência é a única forma de resistir à "ocupação" (leia-se: a existência de Israel), e a culpa pela morte de judeus é do Estado israelense.

Fronteira de Israel com a Síria
Em antiga instalação do Exército da Síria, pichação em inglês diz "Nós nascemos para morrer".| Gabriel de Arruda Castro

Aliás, embora a maioria dos palestinos não se envolva com grupos terroristas, é difícil saber até onde vai o apoio tácito ao terror.

O grupo em que eu estava participou de uma reunião com o prefeito de Hebron (cidade histórica onde estão os restos mortais de Abraão). Só depois nós descobrimos que o político de palavras mansas havia participado de um ataque terrorista que matou seis judeus em 1980 (cinco deles eram estudantes entre os 20 e 21 anos de idade). Tayseer Abu Sneineh, aliás, admite o crime e passou sete anos na cadeia. Isso não o impediu de se eleger.

É razoável pedir que Israel ceda o controle dos territórios palestinos em que hoje se faz presente de uma forma ou de outra. Mas, mesmo que isso aconteça, a maior parte das lideranças palestinas não ficará satisfeita.

A tendência homogeneizante parece ser parte integral da doutrina islâmica. Cristãos sírios, turcos, iraquianos, iranianos e egípcios integravam uma rica tradição oriental que foi praticamente apagada do mapa — por conversões forçadas ou violência direta nos últimos séculos. E a mais promissora tentativa de evitar essa tendência enfrenta sérios problemas. O Líbano, criado para ser uma espécie de refúgio cristão no Oriente Médio depois do genocídio armênio, enfrentou uma guerra civil e hoje tem maioria muçulmana.

Israel não quer ser o Líbano.

Os judeus não dão a outra face. Essas foram, literalmente, as palavras de um guia israelense que explicava como seu povo reagiu depois de um massacre em Hebron em 1929. A reação aos ataques de 7 de outubro pode parecer agressiva demais, já que bombardeios aéreos, por mais precisos que sejam, acabam por causar a morte de civis. Os judeus reconhecem que esse é um problema grave e que é necessário minimizá-lo ao máximo. Mas Israel não deixa de agir por isso.

Talvez isso ajude a explicar a sobrevivência de Israel, um milagre sem paralelos na história humana. Nenhum outro povo manteve sua identidade mesmo depois de ter enfrentado mais de 18 séculos de exílio. As cenas dos judeus ortodoxos caminhando com seus muitos filhos, todos enfileirados e bem arrumados, deixam uma marca profunda quando se tem em mente o horror do Holocausto e a tentativa de erradicar a existência desse povo.

Conexão brasileira

Os progressistas brasileiros, americanos e europeus que afirmam se solidarizar com o povo palestino se sentiriam menos em casa na Ramala do que em Tel Aviv, com suas praias, casas noturnas, restaurantes e jovens jogando futevôlei. Sim, futevôlei. Na verdade, não é difícil encontrar uma bandeira do Brasil nessa parte da cidade.

Mas a influência brasileira na região vai além do futevôlei e das caravanas de turistas evangélicos e católicos.

Em uma das visitas à Palestina, fomos apresentados a um jovem cristão palestino que resolveu se tornar um ativista contra o terror. A história é a seguinte: um tio do rapaz, muçulmano, emigrou para o Brasil. Em uma das visitas à Palestina, falou do Evangelho para o sobrinho, que começou a pesquisar mais sobre o Cristianismo e então se converteu. Hoje, ele estuda nos Estados Unidos e pretende convencer outros palestinos de que o radicalismo só causa miséria e violência. Se conseguir, o Brasil terá tido uma pequena participação nisso.

Até lá, o povo israelense vai depender das suas Forças Armadas para evitar que o sonho dos líderes terroristas se concretize.

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