Em 23 de dezembro de 1991, o presidente da República Fernando Collor sancionou a lei 8.313, responsável por arrecadar recursos tanto para iniciativas culturais louváveis, como o Museu da Língua Portuguesa, quanto para outras bem questionáveis, como shows de funk. Naquela data entrava em vigor a famosa – e polêmica – Lei Rouanet.
A norma “restabelece princípios da Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e dá outras providências”, afirma em seu cabeçalho.
As maiores conquistas e polêmicas da Lei Rouanet
No artigo 18, apresentava um novo mecanismo de investimento em projetos culturais: “Com o objetivo de incentivar as atividades culturais, a União facultará às pessoas físicas ou jurídicas a opção pela aplicação de parcelas do Imposto sobre a Renda a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a projetos culturais apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas de natureza cultural, de caráter privado, como através de contribuições ao FNC, nos termos do artigo 5º inciso II desta Lei, desde que os projetos atendam aos critérios estabelecidos no art. 1º desta Lei, em torno dos quais será dada prioridade de execução pela CNIC.”
O apelido faz referência a Sérgio Paulo Rouanet, um diplomata, filósofo, tradutor e professor universitário carioca que hoje tem 84 anos. Ele foi o responsável pela elaboração da lei porque, na época, ocupava o cargo de secretário da cultura do presidente Fernando Henrique Cardoso.
“A lei foi aprovada por um governo liberal e prevê um mecanismo de mínima ingerência estatal, de forma que a política cultural seja organizada pelo mercado”, explica Fabio de Sá Cesnik, advogado especialista em políticas de financiamento cultural. “A Lei Rouanet surgiu depois que Collor extinguiu os órgãos de fomento público direto para a cultura, como a Funarte e a Embrafilme”. A proposta, diz Fabio, era simples: “O estado avalia se o orçamento é compatível e está no âmbito das artes, mas não pode interferir no projeto. Qualquer ingerência é considerada, pelo artigo 22, uma irregularidade legal”.
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Lei Sarney
No século 19, o estado sustentou a construção de instituições culturais, como Biblioteca Nacional, em 1811, e a Ópera Nacional, em 1857. O investimento foi ampliado e organizado em 1937, quando o governo Getúlio Vargas criou institutos dedicados ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, à Música e ao Livro. Foi só nas décadas de 1940 e 50 que a iniciativa privada começou a participar mais ativamente – o empresário Franco Zampari, por exemplo, fundou a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, enquanto que Francisco Matarazzo Sobrinho criou o MAM de São Paulo. Mas eram iniciativas individuais, sem suporte estatal. Até os anos 1980, o incentivo fiscal era concedido para o agronegócio, a área de serviços e a indústria.
A primeira lei federal de incentivo fiscal para a realização de atividades artísticas surgiu em 1986 – era a Lei Sarney, número 7.505, que estabelecia que as empresas podiam utilizar a renúncia fiscal para patrocinar ações realizadas por produtores artísticos com registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural (CNPC). O problema da lei é que a prestação de contas só acontecia ao fim do projeto. Com a Rouanet, o monitoramento dos gastos começa na etapa de pré-projeto. Com a vantagem de que projetos de longo prazo não dependem mais de mudanças provocadas pela alternância de presidentes e ministros, por exemplo.
Com a Lei Rouanet, só consegue financiamento quem apresenta uma proposta interessante aos patrocinadores desde o início. O governo autoriza o artista e o produtor a buscar patrocínio, mas não dá nem ajuda a buscar dinheiro. Essa característica ajuda a entender por que 80% dos projetos aprovados são executados nas regiões mais ricas e populosas do país, onde a visibilidade é mais garantida para o empresário, em especial a Sudeste, enquanto que apenas 0,8% são dedicados a projetos exibidos na região Norte. Recentemente, essa regra foi alterada e aumentou o teto para projetos integralmente realizados nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
O mecanismo de captação sofreu ajustes e alterações ao longo dos anos. A mudança mais recente, de acordo com comunicado enviado pelo Ministério da Cultura, “desburocratizou e tornou a Lei mais atraente para proponentes e patrocinadores. Houve vários avanços na gestão, como a prestação de contas online. Com isso, em 2017, o número de projetos apresentados cresceu 12%; e o de projetos aprovados, 17%”.
Regras claras
A lei prevê três formas de financiamento para eventos ou obras: o mecenato, o Fundo Nacional de Cultura e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico. A maior parte dos recursos disponibilizados provém do mecenato, em que pessoas e empresas atuam como patrocinadores ao investirem em atividades culturais, como exposições, festivais de música e produção de livros. Segundo o Ministério da Cultura, essa renúncia fiscal chegou, em 2017, a R$ 1,4 bilhão (veja a evolução dos valores no quadro). Ao longo da existência da lei, a renúncia alcançou aproximadamente R$ 10 bilhões. “A cada R$ 100 mil reais investidos para os projetos são recolhidos aproximadamente R$ 400 mil reais, que retornam para sociedade, parte em outros setores, como educação, saúde e segurança pública”, afirma Luiz Gustavo Barbosa de Azevedo, especialista em planejamento tributário pela Fundação Getúlio Vargas.
O processo de captação de patrocínio funciona da seguinte forma: o produtor cultural inscreve seu projeto no site oficial. Ele precisa apresentar um plano de execução e divulgação e explicar qual será a contrapartida que oferecerá ao público. Os avaliadores do Ministério da Cultura têm 90 dias para analisar o projeto. Depois o repassam para profissionais da área, que fazem uma nova avaliação de viabilidade.
Se aprovado, o responsável pelo projeto começa a buscar patrocínio – nos últimos 25 anos, foram mais de 48 mil propostas aceitas. É comum que o projeto não consiga nenhum patrocínio, ou consiga menos do que foi autorizado. Em paralelo à busca por dinheiro, o produtor tem um prazo para finalizar o projeto. Depois que ele é veiculado, o autor precisa prestar contas sobre o dinheiro que recebeu e que gastou.
Mas, se o estado determina as regras para que produtores culturais e empresas cumpram, como se explica que a Lei Rouanet permita que artistas consagrados realizem shows e eventos com o apoio de incentivo fiscal que, em tese, poderia ser dedicado a artistas que realmente precisam de apoio financeiro (veja exemplos no quadro)?
Um dos motivos é que produtores mais organizados conseguem apresentar bons projetos e já conhecem o caminho das pedras para encontrar patrocínio. Afinal, um cantor popular, com presença constante na imprensa e na televisão, oferece maior garantia de retorno do que um artista menos conhecido. “Aos olhos do patrocinador não somente a política fiscal interessa, mas também a exposição comercial da marca. Por isso, projetos com artistas renomados possuem a maior capacidade de atrair investimentos”, afirma Luiz Gustavo Barbosa de Azevedo.
Ainda assim, o advogado Fabio de Sá Cesnik considera que algumas iniciativas polêmicas se justificam. “A Maria Bethânia fazendo leitura de poemas e disponibilizando gratuitamente num site pode ajudar a difundir a poesia. O mesmo vale para um show aberto, para milhares de pessoas que não teriam como pagar o ingresso para ver o artista”.
Denúncias
Para identificar casos de abusos e uso indevido do mecanismo de fomento, a Câmara dos Deputados conduziu uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Concluída em maio de 2017, ela pediu providências para melhorar os mecanismos de controle e encaminhou para o Ministério Público casos suspeitos de desvios, principalmente empresas que apresentam documentação incompleta ou irregular e mesmo assim conseguem autorização para buscar patrocínio. De fato, no ano passado, o Ministério Público Federal denunciou 32 pessoas, envolvidas em desvios de R$ 21 milhões.
Mais recentemente, em abril e junho, duas operações da Polícia Federal apreenderam documentos e identificaram casos de desvios em Cuiabá, São Paulo, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro e Brasília.
Sinal de que a lei não funciona? “As denúncias surgiram de dentro do próprio ministério. Também existem desvios no Bolsa Família, na educação ou no SUS, e ninguém fala em extinguir os programas por isso”, responde Fabio de Sá Cesnik.
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Para Carlos Paiva, especialista em gestão pública e ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do MinC (2015-2016), o modelo baseado apenas em incentivo fiscal apresenta limitações, é encontrar outros canais para patrocinar a cultura. “O Brasil tem mais de 3 mil museus e menos de 3% deles conseguem algum tipo de apoio da Rouanet. E o Museu Nacional estava dentro dos 3% que conseguiram algum tipo de apoio, infelizmente insuficiente. Este é o nível de exclusão desse modelo baseado apenas no incentivo fiscal”.
Paiva lembra que o modelo nacional não é comum. “Há muitos países que utilizam incentivo fiscal como instrumento de política cultural, porém nenhum igual ao sistema brasileiro, com 100% de incentivo fiscal sem contrapartida privada. O normal é que a empresa ou o indivíduo participe, em média, com 50% de recursos próprios”, afirma. “Nestes países a seleção de apoio por comissões de especialistas predomina. No Brasil, quem tem mais poder para investir em cultura é o empresário, que tem como prioridade promover sua marca, que não é o objetivo de uma política cultural”.
Prós e contras
As maiores conquistas alcançadas com apoio da Lei Rouanet...
- Museu da Língua Portuguesa (SP)
- Projeto Criança para o Bem (DF)
- Museu do Futebol (SP)
- Passo do Frevo (PE)
- Museu Inimá de Paula (MG)
- Museu Cais do Sertão (PE)
- Sede da Fundação Iberê Camargo (RS)
- Orquestra Criança Cidadã (PE)
... e as maiores polêmicas provocadas pela lei
2005: Apesar de cobrar mais do que o salário mínimo da época pelos ingressos, o Cirque Du Soleil conseguiu autorização para captar R$ 9,4 milhões. Depois do caso, a lei mudou. Atualmente, 30% dos ingressos de atividades patrocinadas por intermédio da lei têm que ser gratuitos, e outros 20% não podem custar mais do que R$ 75.
2011: A cantora Maria Bethânia aprovou a captação de R$ 1,34 milhão para a produção de um blog de poesias. Com a repercussão, a artista desistiu do projeto.
2011: Shrek, O Musical, uma apresentação de teatro que percorreu o Brasil, recebeu autorização para captar R$ 17,8 milhões.
2013: O documentário “O Vilão da República”, que pretende contar a trajetória de José Dirceu, conseguiu autorização para captar R$ 1,5 milhão.
2013: A cantora Cláudia Leitte conseguiu a liberação para captar R$ 5,8 milhões para realizar 12 shows nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste.
2013: A lei aprovou a realização de um “um painel artístico de difusão cultural nos segmentos da música, dança e artes cênicas” dentro do Club A, um clube de elite em São Paulo. Valor autorizado: R$ 5,7 milhões.
2014: O cantor Luan Santana pediu para captar R$ 4,6 milhões para bancar uma turnê. Recebeu autorização para coletar R$ 4,1 milhões.
2014: Apesar de prometer distribuir gratuitamente apenas 10% dos ingressos, o teatro infantil Peppa Pig conseguiu autorização para captar R$ 1,7 milhão.
2015: O funkeiro MC Guimê foi autorizado a captar R$ 516 mil para gravar um show em São Paulo e produzir um DVD com o resultado.