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The Family - Netflix

De Reagan a Obama: A organização que influencia a política dos EUA nos bastidores

Doug Coe com Ronald Reagan
Doug Coe com Ronald Reagan (Foto: Reprodução Netflix)

Será que existe uma organização super poderosa, quase invisível aos olhos do público, tentando ganhar cada vez mais poder político a nível internacional? Essa é a pergunta que a série documental "The Family: Democracia Ameaçada", da Netflix, tenta responder. Com realização de Jess Moss e produção de Alex Gibney, a história contada é baseada no livro "The Family: The Secret Fundamentalism at the Heart of American Power" (A Família: O Fundamentalismo Secreto no Coração do Poder Americano), publicado em 2008 pelo jornalista norte-americano Jeff Sharlet.

De início, até parece sinopse de livro do Dan Brown. Nos Estados Unidos, o jornalista Jeff Sharlet, com seus 20 e poucos anos, se infiltra em um grupo de jovens que vivem em uma casa de fraternidade dedicada a estudos sobre Jesus e atendem a uma organização política que opera silenciosamente nos corredores da Casa Branca, do Congresso dos Estados Unidos e em outros países importantes no cenário internacional exercendo sua influência a fim de conquistar cada vez mais poder. Se você for membro do grupo, estará isento de julgamentos mesmo que seja um abusador sexual, marido infiel, político corrupto ou um tirano. Os integrantes do "clube"? Líderes mundiais, presidentes, congressistas e até mesmo ditadores.

"A Família" é, na verdade, a The Fellowship Foundation, uma organização cristã e política fundada em 1935 pelo norueguês Abraham Verede para espalhar os ensinamentos de Jesus no mundo político. Mesmo que a atuação de instituições religiosas na política acabe sendo alvo de críticas e tenha sido mostrada na série como um demérito, vale lembrar que Estado laico não é o mesmo que ateu, sendo legítimo que existam representações políticas expressando também sua religião.

Desde o primeiro episódio é dito que o grupo prega uma visão distorcida do Cristianismo e da figura de Jesus Cristo. "A Família" até editou sua própria versão da Bíblia onde estão reunidos apenas os livros de Mateus, Marcos, Lucas, João e os Atos dos Apóstolos. As outras passagens bíblicas não dizem nada para a Irmandade e portanto foram descartadas.

De acordo com a série, a ideia central do grupo sobre lideranças é que "algumas pessoas são mais escolhidas por Jesus do que as outras".

Os discípulos de Cristo seriam vistos como superiores aos outros, portanto escolhidos. E aqueles que são escolhidos também não precisam ser submetidos a julgamentos. Eles também seriam adeptos da ideia de que "a pobreza é resultado de um sistema econômico de Deus". Parece — e é — uma visão pouco ortodoxa dos ensinamentos bíblicos.

O que é verdade?

A organização ficou conhecida por ser responsável pelo National Prayer Breakfast, um evento famoso ao público norte-americano que reúne lideranças políticas, religiosas e humanitárias dos Estados Unidos e do mundo para uma oração nacional, como diz o nome do evento, mas é, na prática, um festival de lobby e networking muito bem frequentado.

Desde que o evento foi criado, em 1953, o presidente dos EUA sempre participa, não importando se é democrata ou republicano. O primeiro a participar foi o republicano Dwight Eisenhower. Os eventos dos últimos dois anos acabaram ganhando mais notoriedade pela presença da russa Maria Butina, o que chamou a atenção da imprensa norte-americana.

Para ela, o National Prayer Breakfast era um ponto importante para conhecer figuras influentes. Acusada de espionagem para beneficiar o Kremlin influenciando na política norte-americana, Butina foi condenada nos Estados Unidos a 18 meses de prisão após confessar em 13 de dezembro de 2018 que conspirou contra os Estados Unidos em favor da Rússia, que nega o crime.

"O homem mais poderoso de Washington do qual ninguém ouviu falar"

Além do National Prayer Breakfast, lideranças se reúnem constantemente nas residências mantidas pelo grupo. Uma delas fica em Arlington, na Virgínia, e serve como uma casa de fraternidade para jovens que trabalham com a organização. É nessa residência que o jornalista Jeff Sharlet se infiltrou e viveu por um período. A outra casa da Família fica em Washington DC e serve de estadia para congressistas ligados à Irmandade que querem viver em uma espécie de "fraternidade universitária" enquanto possuem cargo eletivo.

O nome de maior destaque da organização até hoje é Doug Coe, que entrou para a Irmandade em 1959 e acabou sendo o sucessor de Vereide, se tornando o principal líder da Família até 2017, quando faleceu. De acordo com a série, ele ficou conhecido como "o homem mais poderoso de Washington do qual ninguém ouviu falar".

Mas Coe não era tão oculto como a publicidade da série quer que você acredite. Ele aparece em diversas fotos ao lado de figuras importantes e presidentes norte-americanos como Ronald Reagan, Bill Clinton e George W. Bush, sendo até referenciado por Reagan.

É público que Coe exerceu influência sobre muitos políticos, independentemente do partido, funcionando como uma espécie de consultor ou conselheiro. Isso é dito na própria série, por Doug Hampton, ex-assessor do Senado. Ele diz: "Era do conhecimento de todos no Capitólio que a influência do Doug era grande. As presidências mudam. Os gabinetes trocam de mãos, as organizações mudam, mas Doug está lá há 50 anos. Então nós formamos uma rede de relações em Washington que transcendia os partidos políticos, transcendia o tempo, por assim dizer".

Em 2003 Hillary Clinton, que segundo o New York Times frequentou a Irmandade durante anos, se referiu a Coe como “um mentor e guia espiritual genuinamente amoroso com qualquer pessoa, que queira aprofundar seu relacionamento com Deus e oferecer o presente de serviço a outras pessoas necessitadas, independentemente de partido ou fé".

O ponto em que a série nos coloca em dúvida sobre a figura de Doug Coe é quando assistimos a gravação de um discurso em que ele fala, aparentemente, em uma reunião privada da Irmandade. Não há data no vídeo e seu conteúdo revela um pouco sobre algumas referências questionáveis de Coe:

"(...) Jesus Cristo, quando ele organiza, cria uma organização invisível. Ao olhar para seu corpo, você não vê seu fígado, músculos e seu cérebro de fora. Ele criou a melhor organização e colocou uma pele linda por cima. Se analisar a Máfia, também usam o mesmo tipo de organização. Tudo que é visível é transitório. Tudo que é invisível é permanente e dura para sempre. Quanto mais fizer sua organização invisível, mais influência ela terá. (...) Os vietcongues, Hitler, Mussolini e os Camisas Negras... o que se repete em todos os juramentos é "juramos estar totalmente unificados até na morte". Era uma confraria, um compromisso".

Outro exemplo que poderia levantar dúvidas sobre o comprometimento do grupo com sua fé cristã é trazido por Doug Hampton quando ele revela o caso extraconjugal de sua então esposa com o senador John Ensign, seu amigo e irmão da "Família". Hampton conta que mais tarde descobriu que traições dessa natureza eram recorrentes no grupo, e mesmo sendo contra a doutrina seguida, não havia nenhuma consequência para quem "fraquejasse".

Outro fato questionável é o controverso envolvimento do grupo com o regime do ex-ditador da Líbia Muamar Kadafi. E, por último, o fundador do grupo, Abraham Vereide, "era fascinado pelo nazismo e pelo seu poder", de acordo com Sharlet.

Um documento exibido na série mostra que em 1946 Abraham chegou pedir autorização ao Departamento de Estado dos EUA para ir até as prisões pós-guerra nas quais tinham prisioneiros nazistas de alto escalão para "buscar homens que podiam ser mudados e usados para o bem". Abraham fez uma espécie de "apadrinhamento" para ajudar Von Neurath, um dos grandes criminosos do nazismo preso nos EUA, a conseguir tratamento dental. Vereide, assim como Coe, também parece ser uma figura controversa.

Muita influência, pouco segredo

""Donald Trump discursa no National Prayer Breakfast de 2018, em Washington DC

No fim do dia, "A Família" nem é tão secreta como a série vende, se tratando de um grupo notoriamente influente nos EUA desde os anos 50. Em 2010, a revista New Yorker fez uma reportagem investigativa  sobre a fraternidade de C. Street, sua ligação com a The Fellowship Foundation e sobre quem era Doug Coe, revelando que a atuação política da organização nunca foi invisível, apesar do grupo "evitar publicidade para suas atividades".

"A fraternidade de C Street era conhecida por ser associada a um ministério chamado Fellowship, uma entidade não denominacional que patrocina o "National Prayer Breakfast", café da manhã anual de oração nacional. Mas o trabalho mais significativo da Irmandade é seu ministério invisível para líderes políticos, que remonta à era do New Deal. Ao longo dos anos, pequenos grupos de oração inspirados pela Irmandade realizaram reuniões semanais no Pentágono, no escritório da Procuradoria-Geral, em vários esconderijos do Congresso dentro do Capitólio e na própria Casa Branca. A Irmandade ofereceu socorro a Bill Clinton e Al Gore, a Dwight Eisenhower e Marion Barry e a muitos dos criminosos de Watergate. D. Michael Lindsay, um sociólogo da Universidade Rice que estudou as maneiras pelas quais os evangélicos se tornaram parte da elite americana, ficou surpreso com o que descobriu sobre a Irmandade. "Eles são a força espiritual mais significativa na vida dos líderes — especialmente líderes em Washington — de qualquer entidade que eu conheça", diz ele. "Eles são mencionados com mais frequência nas entrevistas que conduzi do que em qualquer outro grupo. Eles tiveram uma influência mais sustentada ao longo das décadas do que qualquer outra entidade. Não há nada comparável a eles", diz trecho da reportagem da revista New Yorker.

""Doug Coe (à esquerda) e o então presidente George H. Bush

Na ocasião da morte de Doug Coe, em 2017, o New York Times fez uma matéria sobre ele e escreveu que "Coe foi considerado por muitos líderes políticos e empresariais como um mentor espiritual" e que "muitos em sua órbita, incluindo presidentes e membros do Congresso de ambos os principais partidos, o descreveram como um organizador silencioso que usava a espiritualidade para construir relacionamentos, geralmente com aliados improváveis".

Após o lançamento da série da Netflix, a NBC fez uma reportagem sobre o National Prayer Breakfast afirmando que "embora o evento anual seja supostamente organizado por membros do Congresso, na verdade é organizado e dirigido por uma organização cristã evangélica chamada The Fellowship Foundation" e que "é considerado uma oportunidade para a elite política de Washington, DC e visitantes de internacionais deixarem de lado as diferenças partidárias e refletirem em um propósito mais elevado".

Com a repercussão do documentário da Netflix, a The Fellowship Foundation emitiu nota dizendo que "embora a série documental da Netflix desvirtue o trabalho da Irmandade e tente retratar as pessoas de fé de uma maneira ruim, nós somos encorajados pela frequência que os espectadores são introduzidos e desafiados pela figura de Jesus, que é o núcleo da nossa missão e mensagem".

Apesar da trama parecer bem exagerada, há alguns fatos verídicos apresentados sobre a atuação do grupo que vão contra a visão cristã e pelo menos valem uma reflexão: a sua fé poderia estar sendo usada por políticos apenas como uma forma de identificação para conquistar sua confiança como meio de chegar no poder e se manter nele?

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