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367 mil baixas

De reveses econômicos à IA: o que está por trás dos cortes nas Big Techs

Cortes atingiram diversas áreas das empresas, como tecnologia e recursos humanos (Foto: Bigstock)

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Desde o início de 2022, o setor de tecnologia demitiu mais de 367 mil pessoas em todo o mundo. As Big Techs ou grandes empresas do ramo, como Amazon, Google, Meta - detentora do Facebook, Instagram e Whatsapp - e Microsoft lideraram a onda de cortes, com cerca de 81 mil baixas efetuadas entre novembro do ano passado e o início deste mês. As empresas justificam os desligamentos como consequência da avaliação errônea de cenário durante a pandemia, quando ampliaram as contratações, e do revés econômico atual, com altas nas taxas de juros e a desaceleração econômica, o que teria gerado uma necessidade de reestruturar os negócios diante do novo cenário.

Os números, porém, mostram que, à exceção da Amazon, as Big Techs tiveram ganhos bilionários em 2022, com algumas como a Meta superando patamares pré-pandemia. Esse dado, somado ao atual discurso dos CEOs focado em ganho de produtividade e eficiência, pode levar a uma das razões não divulgadas pelas empresas para fazer seus cortes: o uso sistêmico da inteligência artificial (IA) em processos internos.

Segundo o diretor de produtos (CPO) da Pix Force, Marcos Estevam, não é improvável que as grandes empresas já estejam usando inteligência artificial para acelerar atividades que, antes, eram de responsabilidade humana. “Quando você olha os quadros que foram dispensados, RH, recrutamento, tecnologia, vendas, marketing e comunicação, são de áreas em que a IA já atua. É possível, por exemplo, você criar uma ferramenta para gerar um código de programação. Ele não será espetacular, mas ao invés de cinco programadores, você precisará de apenas um ou dois para aperfeiçoá-lo. E isso pode acontecer nesses outros setores também, com análise de currículos, produção de textos”.

Ele destaca que as grandes empresas, muito provavelmente, não irão divulgar que estão utilizando a inteligência artificial dessa forma, já que o tema é bastante controverso e o peso das demissões ainda paira no ar. Somem-se o sucesso estrondoso do Chat GPT, criado pela Open AI, os questionamentos que suas funcionalidades e as de outros sistemas têm levantado, principalmente em relação à segurança e ética das pesquisas, a competição entre as empresas e a confusão está armada.

Erro de cálculo? 

Em 2022, a estimativa é que 165 mil cargos de trabalho tenham sido suprimidos em empresas de tecnologia. Neste ano, essa cifra já foi ultrapassada, chegando a mais de 202 mil baixas oficiais. Somente na última semana de maio, a Meta finalizou a segunda rodada de demissões mundo afora. No total, foram 21 mil cortes realizados pela empresa desde novembro de 2022.

Os dados não contabilizam os colaboradores terceirizados que sofreram os impactos do encerramento de contratos das Big Techs com agências prestadoras de serviços. Áreas como RH, recrutamento, tecnologia, negócios, vendas, marketing e comunicação amargaram os principais cortes.

Não faltaram comunicados oficiais e vídeos de CEOs assumindo a responsabilidade pelas decisões que conduziram as companhias a esse cenário. Em carta enviada aos funcionários do Google em janeiro deste ano, o CEO Sundar Pichai, afirmou que a empresa tinha visto um crescimento “dramático” nos últimos dois anos e que, para acompanhar e alimentar esse crescimento, fizeram contratações para uma realidade econômica diferente da atual.

O executivo refere-se ao aumento na taxa de juros e à desaceleração da economia norte-americana, duas das razões que explicam as quedas tanto nas compras do varejo, quanto na veiculação de publicidade paga, dois dos principais vetores de lucro de empresas como Apple e Google.

O argumento repetido à exaustão pelas empresas e comprado pela grande maioria da mídia especializada no setor evidencia o poder de persuasão de quem detém os meios de comunicação. Em entrevista à Gazeta do Povo, um ex-funcionário sênior da Meta no Brasil, que foi demitido pela companhia nas últimas rodadas e preferiu não se identificar, reafirmou a tese de que a onda de cortes se deveu às necessidades de reestruturar a empresa.

“No momento da pandemia, não tinha como ter um planejamento, uma visão ampla. Então, as empresas fizeram suas avaliações com as informações disponíveis no momento, a partir das quais não era possível prever a situação atual, em que é preciso operar essas mudanças”, destacou.

O ex-colaborador também afirmou que o anúncio antecipatório de novos cortes, realizado em março deste ano, apesar de causar uma certa tensão e ansiedade, já que os nomes de quem seria dispensado não foram divulgados, teve um impacto positivo, pois foi uma oportunidade para as pessoas se orgazinarem caso fossem dispensadas.

Menores, mas nem tanto 

Mesmo assim, em 2022, à exceção da Amazon, as Big Techs tiveram ganhos bilionários. A Meta, por exemplo, lucrou US$ 28,94 bilhões. De fato, houve uma queda em relação ao recorde de US$ 46,75 bilhões de 2021 - ainda que fosse pretensioso esperar manter o ritmo de pandemia para sempre. Ainda assim, o lucro do ano passado superou os ganhos da empresa em 2018, US$ 24,91 bilhões, e em 2019, US$ 23,98 bilhões. E a Meta não está só, confira no infográfico:

Conforme apurado pelo site TradeMap e reportado primeiramente pela CNN, apenas nos dois primeiros meses de 2023, Apple, Amazon, Meta e Microsoft tiveram um incremento em seu valor de mercado de US$ 1,11 trilhão, tendo saltado de US$ 6,17 trilhões para US$ 7,28 tri. Desde então, suas ações seguem subindo. Portanto, mesmo que não tenham se equiparado aos ápices já alcançados, não se pode negar que os negócios sigam lucrativos para as Big Techs.

Ano da eficiência?

Diante das supostas perdas, uma das estratégias adotadas pelas empresas é aumentar a produtividade. Mark Zuckerberg, por exemplo, escolheu o mote "Ano da Eficiência" para caracterizar 2023. Essa tendência parece afetar não somente a Meta, mas as demais empresas do setor. Para tanto, além dos cortes, as companhias anunciaram concentração de investimentos em determinadas áreas, como o desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial. Os novos direcionamentos, inclusive, serviram para justificar a extinção de certos núcleos.

Uma antiga colaboradora da Meta, que também preferiu não se identificar, relatou sobre o que presenciou com o encerramento de programas e iniciativas. “Alguns desses projetos apoiavam micro e pequenas empresas e foi tudo encerrado. É uma pena, pois são empreendedores que cresceram, por exemplo, no Instagram e que fizeram essa rede social crescer. Mas, mesmo com os programas ativos, alguns empreendedores reclamavam de quedas nas visualizações e compras em razão dos algoritmos”, contou à Gazeta do Povo.

Ela ainda conta que as primeiras demissões, em novembro do ano passado, foram totalmente inesperadas, com funcionários em viagem que não tinham acesso a suas contas corporativas e ao chat da empresa, e que não sabiam como iriam voltar para casa. “Havia eventos programados, pessoas foram demitidas antes de palestras, reuniões e tiveram que ser substituídas na última hora. Foi bastante confuso e o processo como um todo foi muito pouco humano, sem qualquer consideração pelos trabalhadores nesse primeiro momento”, comentou.

Outro ponto destacado por quem trabalhou nessas empresas e que parece ter sido comum nos cortes das Big Techs foi a aleatoriedade nas demissões. Há diversos exemplos nas redes sociais de ex-funcionários que postaram sobre a falta de análise da eficiência e produtividade individual para a escolha das baixas.

Um perfil identificado como Layoffs [demissões, em inglês] no Twitter, publicou uma mensagem denunciando a falta de critério da Meta na hora de analisar as demissões. Segundo o autor, sua demissão não considerou performance ou salário, mas o fato de ser um trabalhador remoto. Na postagem, o funcionário demitido fala sobre a dificuldade de se adaptar novamente ao mercado, mesmo com boas referências, e que os salários oferecidos são 50% inferiores a seu patamar anterior. A publicação original, cujo print foi repostado pelo perfil The Random Recruiter [O Recrutador Aleatório] no dia 24 de maio, no entanto, não está mais disponível.

Segundo o ex-funcionário sênior da Meta, de certa forma, saber que a medida não estava vinculada à eficiência do trabalho foi um até uma espécie de consolo para quem saiu. De acordo com relatos, algumas pessoas compararam a demissão ao fim de um relacionamento tóxico. No entanto, fora o pouco tato emocional, os depoimentos são de que as empresas têm cumprido à risca suas obrigações trabalhistas, de acordo com a legislação de cada país.

Inteligência Artificial x humanos 

Se eficiência parece ser o novo mantra das Big Techs, a impressão de dentro nem sempre confirma essa visão. De acordo com o ex-funcionário sênior da Meta, as decisões e processos se tornaram mais morosos desde que as baixas começaram. "A incerteza no ambiente de trabalho faz com que as pessoas fiquem muito mais cautelosas na hora de tomar decisões, os novos rearranjos não estavam tão certos, então houve uma diminuição significativa no ritmo diário.”

Passada a ventania e arrumada a casa, outro mote utilizado sem reservas, o que se espera, pelo menos segundo o discurso dos CEOs, é a retomada da produtividade. Se por um lado, houve a diminuição no número de trabalhadores, por outro, é bastante provável que o volume de trabalho dos que ficaram aumente. E, para tanto, será preciso otimizar a produção. E é por trás desse aparente “ganho” de produtividade e eficiência que pode estar o uso sistêmico da inteligência artificial em processos internos, substituindo a mão de obra humana.

A carta aberta do Future of Life Institute [Instituto para o Futuro da Vida], um dos principais desdobramentos críticos à escalada no desenvolvimento da IA, questiona os avanços desordenados nessa área. A iniciativa, encabeçada por Elon Musk, dono do Twitter e fundador da Neurolink, Steve Wozniak, um dos fundadores da Apple, entre outros, afirma que "os sistemas contemporâneos de IA para as tarefas gerais estão se tornando competitivos para os humanos (…) Sistemas poderosos de IA devem ser desenvolvidos apenas quando estivermos confiantes de que seus efeitos serão positivos e seus riscos serão administráveis".

Não deixa de ser um tanto estranho que Musk encabece a iniciativa, já que a linha de produção de suas fábricas da Tesla são, em sua maioria, robotizadas. Outro ponto que também pode levantar suspeitas é a escalada do valor da Neuralink, iniciativa do empreendedor de implantes cerebrais de microchips, que saiu de US$ 2 bilhões, há dois anos, para US$ 5 bilhões neste mês, conforme reportado pela Business Insider. Em maio, a companhia recebeu autorização do Food and Drug Administration, a Anvisa dos Estados Unidos, para testar seus chips em seres humanos.

Sem pausas 

Como era de se esperar, o pedido de uma pausa de seis meses nas pesquisas em sistemas avançados de IA encontrou resistências, como o investidor em capital de risco, Marc Andreessen, que também publicou sua larga defesa em favor do desenvolvimento da inteligência artificial sem restrições. Outra carta aberta, desta vez, publicada pela Anthropic, startup fundada por antigos membros da Open AI e cujo lema é o uso responsável da IA, atesta algumas das preocupações de Musk.

No entanto, a empresa e seus apoiadores apostam nos ganhos que podem ser alcançados por meio de pesquisas realizadas dentro de parâmetros de segurança. Inclusive, advoga pela necessidade de criação de uma "organização com o conhecimento institucional para integrar as mais recentes pesquisas de segurança em sistemas reais o mais rápido possível".

Para tanto, Marcos Estevam analisa que “seria preciso uma equipe robusta, composta por pessoas de diferentes países, culturas e realidades a fim de refletir sobre ética e os avanços da inteligência artificial". Mas, ao contrário da celeridade que Anthropic confere ao processo, ele afirma que todo esse cuidado demandaria um tempo bem maior para o desenvolvimento dos sistemas de IA. E perder tempo é justamente o que as Big Techs não podem, ou não querem, fazer, já que na cartilha da eficiência, tempo é dinheiro.

"Se pensarmos que algumas das áreas em que as demissões ocorreram foram justamente essas, de segurança e ética nos avanços com a IA, vemos que essa pausa e reflexão aprofundadas não vão acontecer”, aposta Estevam.

A assessoria da Meta foi procurada e não respondeu aos questionamentos sobre os processos de demissão.

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