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O último ano foi de vitórias para o ativismo pelos direitos humanos de pessoas com problemas mentais e a favor de propostas teóricas e de terapia alternativas à psiquiatria. Em maio de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou novas Diretrizes sobre serviços comunitários de saúde mental: promovendo abordagens centradas na pessoa e baseadas em direitos. As diretrizes são em geral bem alinhadas com muitos dos objetivos dos ativistas e mencionam iniciativas favorecidas por eles, como grupos de apoio entre pares como a Casa Afiya, no estado americano de Massachusetts, onde desde 2012 pessoas em crise psicológica são recebidas e cuidadas de forma não-medicamentosa por funcionários que também têm histórico de problemas similares.
A Casa Afiya é tratada em detalhes e de forma majoritariamente positiva no livro The Mind and The Moon, de Daniel Bergner, publicado este mês nos Estados Unidos. Em tradução livre, o título completo é A Mente e a Lua: A História do Meu Irmão, A Ciência dos Nossos Cérebros e a Busca por Nossas Psiquês. No momento, a obra está no topo das vendas na categoria de psicofarmacologia. O jornal The New York Times publicou um longo texto elogiando o livro. O autor é prata da casa: é escritor contribuinte da New York Times Magazine.
Caroline aceita as vozes em sua cabeça
Bergner chega à Afiya tratando da história de vida de Caroline Mazel-Carlton, uma de três pessoas biografadas no livro. Ela ouve vozes intrusivas desde criança e usou os serviços da Casa Afiya, além de integrar o seu quadro de funcionários com “vivência” em transtornos psiquiátricos. Na escola, uma voz de mulher dentro de sua cabeça ordenava que Caroline não levantasse a mão se a professora fizesse uma pergunta. Outra voz narrava todos os seus movimentos com um tom de escárnio.
Caroline teve uma adolescência atribulada tomando antipsicóticos, estabilizadores de humor, antidepressivos, calmantes da classe do Diazepam, e estimulante para o déficit de atenção. Os remédios a fizeram engordar, perder e arrancar cabelo, tremer mãos e braços. As vozes eram reduzidas a algo em uníssono, mas abafado, o que ela achava pior que ouvir as vozes separadas. Recorrendo à literatura como terapia, desenvolveu grande habilidade linguística, o que a levou à universidade. Chegou a estudar um pouco de neurociência, “vou aprender por que sou doida”, disse. Mas ao mesmo tempo se prostituía por drogas ilícitas. Depois de um aborto, uma voz intrusiva dizia que arrancaria os seus dedos um a um. Foi presa três vezes, na última por furtar para comprar drogas. As coisas se apaziguaram só quando foi para uma fazenda psiquiátrica ao pé dos Apalaches. Mais calma no campo, cuidando de ovelhas, resolveu abandonar todos os medicamentos.
Perdeu peso, o cabelo cresceu de volta, e ela se encontrou no fim da primeira década do novo milênio, com menos de 30 anos, empregada em uma profissão recém-criada: “especialista par de apoio”, alguém que ajuda outras pessoas com problemas mentais porque tem experiência com eles. A profissão trouxe novas ideias de ativismo e partilha do estresse dos seus pares. Em uma ocasião em que “se internou” na Casa Afiya, ela estava ouvindo uma voz que ordenava que matasse pessoas antes que fosse morta por elas: era a voz mais antiga e o episódio foi engatilhado por um evento estressante em que Caroline tentou ajudar um paciente choroso atado a uma maca na ala psiquiátrica de um hospital estadual. “Eles” eram os funcionários que a retiraram do quarto. O tratamento que Caroline pediu na Afiya: que um funcionário tocasse a música Free Bird da banda de rock Lynyrd Skynyrd. Ela se emociona ao contar a história, por lembrar que o funcionário confiou que ela soubesse o que precisava naquele momento.
Mais que uma ex-paciente e ex-funcionária na casa, Caroline hoje é membro e líder influente de uma rede de grupos de autoajuda que quer desestigmatizar as alucinações auditivas: o Movimento de Ouvintes de Vozes (MOV). Ele começou nos Países Baixos nos anos 1980, se espalhando para o Reino Unido e se tornando popular nos Estados Unidos na última década. A regra nos grupos é não julgar e ter empatia. O que a psiquiatria chama de alucinações, os grupos do MOV chamam de realidades não-consensuais. Os participantes acreditam que abandonar o sigilo e o isolamento é terapêutico. Na sala de estar da Casa Afiya, uma faixa diz “Ter Múltiplas Verdades. Saber que todos têm a própria visão precisa do modo como são as coisas”. As vozes, para eles, devem ser interpretadas, de forma que sua mensagem não seja tomada literalmente, mas como a expressão das necessidades da cabeça em que estão.
Desenfatizando a psiquiatria
Na Afiya, que tem apenas três quartos, pessoas com dificuldades mentais a partir de 18 anos podem ficar por até sete noites. Não há cercas, enfermeiros, médicos, guardas, regras restritivas ou reuniões obrigatórias. Remédios psiquiátricos não são proibidos, se já prescritos. “Todos que trabalham na Afiya se identificam como tendo vivência com alguma combinação de estados emocionais ou alterados extremos, diagnósticos psiquiátricos, trauma, em situação de rua, tendo passado pelo sistema de saúde mental ou outros, assistência do governo, vícios, sobreviventes de abuso etc.”, como informa em seu site a organização Wildflower Alliance, dona da casa. Os serviços são gratuitos.
A Wildflower Alliance informa que é “essencial para o nosso trabalho reconhecer e desfazer injustiças sistêmicas como racismo, sexismo, capacitismo [preconceito e discriminação contra deficientes], transfobia, transmisoginia e opressão psiquiátrica”. O maior patrocinador da organização é o Departamento de Saúde Mental do estado. O livro de Bergner entrevista psiquiatras e conta a história dos medicamentos usados por eles, como o lítio, cuja ação foi descoberta por acidente e ainda não é completamente compreendida. Mas a ênfase do trecho escolhido pelo New York Times é nas alternativas à “psiquiatria biológica”. Fora o excerto, a resenha de Christine Kenneally publicada no jornal tem como título “Os Limites da Psiquiatria Biológica”.
Não é a primeira vez que o grande jornal de Nova York se envolveu em polêmicas favorecendo críticos da psiquiatria. Em 2015, publicou um artigo de opinião de Tanya Luhrmann, uma antropóloga da Universidade de Stanford, em que ela dizia que a noção de doença mental da maioria dos psiquiatras americanos estava errada e promovia uma nova perspectiva que rejeitava a “centralidade do diagnóstico” a favor de uma visão em que a linha que separa a experiência normal da doença mental não é tão nítida. Jeffrey Lieberman, ex-presidente da Associação Psiquiátrica Americana, replicou à época no site Medscape que o texto de Tanya era “incrivelmente inculto, desinformado, confuso” e reclamou que o jornal se recusara a publicar sua réplica. Tanya treplicou no Facebook à irritação do psiquiatra: “Ora ora. Devo estar fazendo algo certo”.
Novos ventos na OMS e no CFP
As novas diretrizes da OMS são francas a respeito de conhecidas prescrições potencialmente exageradas e desnecessárias de antidepressivos, bem como a eficácia contestada desses medicamentos e problemas que eles causam, como potenciais efeitos negativos da interrupção de seu uso. A OMS conclama os países a “implementarem uma abordagem sistemática de obter o consentimento livre e informado para todas as intervenções em saúde mental, com consideração por todas as pessoas usando os serviços e respeito pelo direito das pessoas de recusarem qualquer uma ou todas as intervenções”. Não recomenda o abandono das drogas psicotrópicas, mas reclama que em muitas partes do mundo os psicotrópicos são postos “no centro das respostas de tratamento para pessoas com problemas de saúde mental e deficiência psicossocial”.
As diretrizes da organização também recomendam que, entre as abordagens psicossociais de tratamento (alternativas às da psiquiatria biológica) haja programas governamentais como a oferta de emprego. Citam também 22 iniciativas alternativas à internação psiquiátrica como a Casa Afiya. Falando ao New York Times, a ex-terapeuta e pesquisadora Michelle Funk, que lidera a iniciativa da OMS de revisão de diretrizes em saúde mental, diz que os médicos “não podem colocar o seu conhecimento especializado acima do conhecimento e experiência das pessoas que eles estão tentando ajudar”.
É notável que há um setor de profissionais e teóricos da saúde mental que faz interseção com modas politicamente corretas e identitárias do atual progressismo. Os termos “problema mental” ou “doença mental”, por exemplo, são rechaçados e trocados por um jargão com palavras como “neuroatípico”, “neurodivergente” e “neurodiversidade”, com frequente sugestão de que este vocabulário é o único moralmente aceitável. Até mesmo o Conselho Federal de Psicologia, no Brasil, adotou ao menos em parte esse jargão, falando em “psicofobia” como preconceito ou discriminação contra “neuroatípicos” (portadores de problemas mentais). A inspiração em termos do ativismo como “homofobia” e “gordofobia” (sem qualquer relação com o uso antigo de “fobias” como medos irracionais de antes na área) é óbvia.
Do ponto de vista dos fatos sobre saúde mental, esse alinhamento com a esquerda é de se estranhar, pois um resultado encontrado repetidamente em pesquisa é que, quanto mais à esquerda está uma pessoa, maior é a chance de ela ter problemas mentais. Em um estudo com amostra de mais de 11 mil pessoas, o pesquisador de psicometria Emil Kierkegaard, do Instituto Ulster pela Pesquisa Social em Londres, descobriu que pessoas de extrema esquerda têm 150% mais chance de ter problemas mentais que os politicamente mais moderados. Além disso, 66% dos “extremamente progressistas” têm mais problemas de saúde mental que a média dos “extremamente conservadores”. Isso não quer dizer que é a ideologia política que causa ou cura esses problemas, mas que por algum motivo ter convicções progressistas é algo que ocorre mais junto com problemas mentais do que ter convicções conservadoras.
Quando se consideram bons hábitos mentais da terapia cognitivo-comportamental, por exemplo, fica ainda mais evidente que a politização da psicologia a favor do progressismo é contraditória. No livro Terapia Cognitivo-Comportamental na Prática Psiquiátrica (2009), de Paulo Knapp, psiquiatra gaúcho falecido aos 66 anos em janeiro passado e pioneiro dessa terapia no Brasil, há uma lista de distorções cognitivas a serem corrigidas na terapia psicológica, entre elas:
- Emocionalização: pensar que algo é verdadeiro porque tem um sentimento forte a respeito.
- Polarização tudo-ou-nada: ou algo é perfeito, ou não vale a pena.
- Leitura mental: presumir saber o que outros estão realmente pensando.
- Hipergeneralização: perceber em evento isolado um padrão universal não garantido por ele.
- Rotulação: colocar um rótulo rígido em si mesmo ou nos outros, em vez de classificar a situação ou comportamento.
- Vitimização: recusa ou dificuldade de se responsabilizar pelos próprios sentimentos, culpando outros por eles.
O outro lado
Joseph Pierre, médico psiquiatra e professor de ciências clínicas do Departamento de Psiquiatria e Ciências Biocomportamentais na Universidade da Califórnia em Los Angeles, é o tipo de pessoa que não seria convidada para reuniões de grupos do Movimento de Ouvintes de Vozes. Ele tem especialidade no tratamento de pessoas com transtornos mentais severos, entre eles esquizofrenia, transtorno bipolar, depressão maior e vício em drogas. Contudo, ele não pensa que o MOV está em conflito necessário com a psiquiatria.
Joseph vê pontos em comum: “a ideia de que a psicose está distribuída por uma variação contínua de severidade que poderia incluir tipos diferentes de experiências é geralmente bem aceita tanto dentro do Movimento de Ouvintes de Vozes quanto na psiquiatria”, diz em seu blog hospedado no site da revista Psychology Today. O conflito começa quando partes dos dois lados fazem generalizações exageradas sobre o outro lado e insistem que a mesma coisa funcionará para todos os casos, sejam medicamentos ou auxílio psicossocial.
Para o psiquiatra, “já que os grupos [do MOV] oferecem apoio inerente a qualquer interpretação de ouvir vozes, a participação pode encorajar os membros a rejeitar o tratamento médico ou psiquiátrico completamente, especialmente os medicamentos”. Na opinião dele, para além do ceticismo dos psiquiatras, na verdade são as famílias que são mais veementes na crítica aos grupos de autoajuda.
Além disso, a função dos grupos do MOV e dos médicos não é exatamente a mesma, já que os grupos podem receber pessoas que ouvem vozes que não receberiam um diagnóstico psiquiátrico (por si só, ouvir vozes não é suficiente para diagnóstico de transtorno), enquanto os médicos têm maior probabilidade de receber pacientes que não gostam de ouvir vozes nem têm interesse em explorar o significado delas. No caso de um diagnóstico de um transtorno bem definido como a esquizofrenia, a opinião do dr. Pierre é que grupos de apoio “não constituem tratamento adequado por si sós”, mas ele reconhece que muitos psiquiatras se apressam demais a receitar medicação quando o paciente apresenta alucinações auditivas (ouvir vozes) não acompanhadas por outros sintomas. Em um artigo acadêmico de 2010, ele compara ouvir vozes à tosse. Tossir por si só não é uma doença, pode até ser parte do funcionamento normal do organismo, por exemplo rejeitando o influxo de saliva nas vias aéreas.
Para diagnóstico de esquizofrenia, o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria, em quinta edição, exige que o sintoma de ouvir vozes ou ter visões seja acompanhado de pelo menos um outro sintoma de uma lista com delírio, fala desorganizada, comportamento desorganizado ou catatônico e outras disfunções afetivas e sociais. Além disso, os dois sintomas que servem de critério diagnóstico mínimo devem persistir por ao menos um mês.
Não há um “transtorno de alucinação” no DSM para pessoas que só ouvem vozes, não são perturbadas por isso e não sofrem com aspectos negativos concomitantes. Logo, aqueles que dizem que a psiquiatria estigmatiza ouvir vozes por si só são contraditos por um dos principais manuais da psiquiatria — ainda que psiquiatras individuais possam fazê-lo por conta própria.
Filósofos da mente como Colin McGinn, britânico autor de introdução à área que já lecionou em universidades como a de Oxford e a de Miami, acreditam que um aspecto da nossa vida psicológica, a consciência, jamais será entendido — seria uma fronteira intransponível para o conhecimento. É natural que o cérebro e a mente, por sua complexidade fronteiriça ao incognoscível, sejam difíceis de tratar quando há sofrimento mental, já que são difíceis de entender.
Romantização de transtornos psiquiátricos
Na rede social de vídeos curtos Tiktok está havendo um grande interesse em autodiagnóstico de estados mentais incomuns cujo status como transtorno é controverso. Na categoria de vídeos sobre “transtorno de identidade dissociativa”, que é o que sobrou da mais antiga ideia largamente caída em descrédito das “múltiplas personalidades”, muitos alegam ter mais de uma pessoa dentro da própria cabeça. Alguns foram pegos simulando a síndrome de Tourette (em que portadores verdadeiros têm tiques ou vocalizações fora de seu controle, às vezes de palavrões) e expostos pelas próprias famílias. É notório que o grupo de supostos transtornados famintos de atenção tem grande interseção com sinalizações progressistas (como pronomes de gênero) e o novo fenômeno aparente de contágio social de identidades LGBT.
Escrevendo em 2014 no site Teen Ink, um adolescente com doenças mentais já lamentava essa tendência de a desestigmatização se transformar em romantização. “Deixem-me deixar bem claro: a doença mental não é uma coisa bela. Alguém com doença mental pode ser uma bela pessoa, mas a doença em si é uma tortura silenciosa. A doença mental não é uma curiosidade. Parem de romantizar e embelezar! É hora de lançar luz na verdade dolorosa”.