• Carregando...
Imagem ilustrativa | Unsplash
Divulgação
Imagem ilustrativa| Foto: Unsplash Divulgação

Uma decisão judicial obrigou, em outubro de 2017, o município de Mococa (SP) a fazer uma cirurgia de laqueadura em uma mulher de 36 anos, moradora de rua na mesma cidade. A mulher é dependente química e mãe de oito filhos menores de idade. No início, ela até mostrou interesse em se submeter ao procedimento, mas depois voltou atrás. Mesmo assim, os médicos fizeram a laqueadura.

O caso foi revelado por Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas), em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo

Na ação civil pública com pedido de liminar do Ministério Público, o 2º promotor de Justiça de Mococa, Frederico Liserre Barruffini, argumenta que “não há dúvidas de que somente a realização de laqueadura tubária na requerida será eficaz para salvaguardar a sua vida, a sua integridade física e a de eventuais rebentos que poderiam vir a nascer e ser colocados em sério risco pelo comportamento destrutivo da mãe”. 

Nossas convicções:  O alcance da noção de dignidade da pessoa humana

“O juiz, sem sequer realizar uma audiência, nomear um defensor, ou exigir documentos que comprovassem o seu consentimento, determinou que a mulher fosse conduzida coercitivamente à cirurgia”, afirmou Vilhena em sua coluna. 

Em sua decisão, o juiz Djalma Moreira Gomes Júnior afirma que a mulher necessita fazer a cirurgia de laqueadura tubária, “pois é pessoa hipossuficiente, apresenta grave quadro de dependência química, sendo usuária contumaz de substâncias entorpecentes, além de ser mãe de cinco filhos, que já estiveram acolhidos na Casa de Acolhimento Bethânia, nesta cidade. E, a princípio, não tem condições financeiras de arcar com os correspondentes custos”. 

“Para coroar esse processo bizarro, a Justiça de primeiro grau determinou que [a mulher] fosse conduzida "coercitivamente" ao procedimento cirúrgico”, diz Vilhena em seu texto, e acrescenta: “A esterilização coercitiva, com finalidades eugênicas e apuração da raça, foi largamente empregada pelo regime nazista. A China fez uso da esterilização coercitiva em massa para conter a natalidade. Os Estados Unidos a empregavam para punir criminosos”. 

O juiz deu um prazo de 30 dias para que o município realizasse o procedimento cirúrgico, que não foi cumprido. A prefeitura alegou que o tempo seria muito curto para os parâmetros do Sistema Único de Saúde (SUS), e a mulher estaria grávida de seu sexto filho, informou o site Jota. Assim que a criança nasceu, a esterilização coercitiva foi feita, sem levar em conta a opinião da mulher.

“Essa é uma decisão horrível, que envergonha e constrange o judiciário”, afirmou Carlos Eduardo Nicoletti Camillo, professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “É uma situação realmente constrangedora que contraria a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Brasileira”, acrescentou.

Nossas convicções:  A dignidade da pessoa humana

O caso foi julgado em segunda instância, e o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou a decisão do juiz, mas a cirurgia já havia sido feita três meses antes. 

Leia também: Programa de esterilização de presos defendido por juiz levanta polêmica

A apelação do município de Mococa dizia que “é flagrante a ilegitimidade ativa do Ministério Público para propor a presente ação por violação ao disposto no artigo 2º, parágrafo único, da Lei nº 9.263/1996, bem como ao artigo 1º, inciso III, c.c. o artigo 5º, caput e inciso II, da Constituição Federal; o Sistema Único de Saúde já mantém o serviço de atendimento à mulher com orientação sobre métodos anticoncepcionais e até a esterilização, se esta for a melhor opção para o planejamento familiar, mas nunca em violação ao direito de liberdade de escolha da mulher, como se busca na presente ação”.

Constituição

Para Camillo, um dos aspectos que agravam essa situação é que o pedido foi feito por meio de ação civil pública. “A função do Ministério Público é voltada para questões coletivas. A ideia é a proteção a direitos que nos são tão caros, e dizem respeito a todas as pessoas”, disse.

O artigo 226 da Constituição Federal, em seu parágrafo 7º, diz: 

Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

"A perspectiva dessa esterilidade mediante ação civil pública realmente choca a dignidade da pessoa humana. É a prática de um ato que é absurdamente ilegal", disse Camillo. Para ele, a condução coercitiva é outro aspecto agravante. “A condução coercitiva é uma medida penal, que ficou mais conhecida recentemente no episódio da Lava Jato. A prática chegou a ser questionada para as pessoas que estavam respondendo processo criminal, imagina a perspectiva para quem sequer está respondendo processo criminal”, comparou.

Direitos fundamentais

Essa decisão judicial, e também algumas reações a ela, se baseou na preocupação de que a mulher continuaria a ter filhos sem poder criá-los adequadamente. A preocupação é importante e legítima, considera Camillo; “mas precisamos respeitar os direitos e garantias fundamentais. Não é tomando esse tipo de atitude que se vai cumprir o bem”.

O professor sugere que o ideal seria ter ouvido a opinião da moradora de rua, respeitar a sua dignidade humana e perguntar se ela concordava com o procedimento. “Se ela dissesse em pleno juízo, de maneira consciente, que essa seria a sua vontade, ainda assim eu gostaria que o Ministério Público estivesse do lado dela para saber se essa foi a sua vontade, e não ser autor de uma ação contra ela”, opinou.

O caso recebeu críticas de diversos grupos de defesa dos direitos humanos e também gerou reações de apoio em comentários de pessoas preocupadas com o bem-estar da crianças que a mulher já tem ou que viesse a ter.

Nossas convicções:  Ética e a vocação para a excelência

“Podemos dizer que talvez o Ministério Público estivesse bem intencionado, que o juiz agiu de boa-fé, que todas as pessoas envolvidas queriam fazer o melhor para esta mulher, que estava na rua. Mas de uma coisa nós podemos ter certeza: nenhuma das ações que foram tomadas contra essa mulher eram, essencialmente, medidas que exprimiam a justiça na sua integralidade”, afirmou Camillo.

Contestações

O procedimento para que ela não pudesse mais ter filhos ocorreu em 14 de fevereiro. A Defensoria diz que a mulher não foi devidamente ouvida no processo e que houve ilegalidade. O procedimento também foi contestado pela prefeitura local e por decisão em segunda instância do Tribunal de Justiça. O juiz do caso alega que a mãe consentiu. 

Para Paula Santana Machado Souza, coordenadora-auxiliar do núcleo especializado de promoção e defesa dos direitos da mulher da Defensoria de São Paulo, todos os procedimentos relacionados a planejamento familiar são de livre decisão de homens e mulheres e, por isso, houve ilegalidade. 

"Não encontramos respaldo na legislação para o que foi feito. Laqueadura tem de ser via saúde e, se o pedido for negado, a pessoa pode entrar com ação. O que não pode é um terceiro ator, o Ministério Público, entrar com pedido." 

A defensora afirmou que Janaína assinou documento informando que concordava com a cirurgia, mas que isso ocorreu em um processo que nem deveria existir. 

"Ela era acompanhada pela rede e não encontramos o porquê para ter sido judicializado. Inclusive não consta uma negativa do município em prestar esse atendimento. Mesmo tendo o suposto consentimento dela, não valida o processo, pois ele não deveria existir", afirma. 

Nossas convicções: A valorização da mulher

Por meio de um texto que divulgou, o juiz Gomes Junior disse que, na visão dele, a laqueadura foi consentida, sem que Janaína oferecesse resistência, e que o documento que confirma o fato está no processo e "foi também subscrito pela diretora de serviços da Vara, na presença da psicóloga forense". 

Gomes Junior afirmou que, durante o trâmite da ação, Janaína foi ao cartório e "expressamente manifestou ciência e concordância com a pretensão de laqueadura". "Cabe ressaltar que Janaína foi ouvida por diversas oportunidades, por mim, em audiências sobre seus filhos", afirma.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]