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Em entrevista na manhã desta quarta-feira (21), o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, fez uma previsão que chamou de “notícia boa”: a de que a imprensa vai “reocupar boa parte do espaço que perdeu para as plataformas digitais e para as mídias sociais”.
O motivo? O advento da inteligência artificial, que recentemente se tornou capaz de produzir imagens e vídeos fictícios (chamados de deep fakes) visualmente indistinguíveis de situações verdadeiras captadas por câmeras.
Em outras palavras, o cidadão que antes se informava por imagens e vídeos que recebia pelo WhatsApp já não vai mais poder confiar nos seus próprios olhos, e terá de voltar a contar com a imprensa para saber se a informação é verdadeira ou falsa.
Os deep fakes são retorno à Idade da Pedra
No aspecto descritivo, o ministro está correto. Os analistas que tratam como grande incógnita o que o futuro traz com os deep fakes revelam apenas a própria falta de imaginação, porque bastaria olhar para o passado.
A humanidade passou 200 mil anos sem sequer poder contar com fotografias e vídeos. Afora as raras situações em que o indivíduo em questão estivesse presente para testemunhar uma situação com os próprios olhos, seu único meio de se inteirar do que acontecia era confiando na palavra alheia.
Ocorre que a palavra alheia sempre teve a mesmíssima característica dos deep fakes futuristas: pode ser verdadeira, mas pode também ser meia-verdade ou, ainda, mentira completa. Assim, a variável que emergia como suprema no passado, e voltará a reinar no futuro, é a credibilidade da fonte.
Isso traz muitas consequências; entre elas, tende a gerar uma maior hierarquização e menor democratização.
A era da informação direta e o seu fim
Com alguma ironia, é possível dizer que a inteligência artificial é ameaça antidemocrática, mas no sentido oposto ao que tem estado em voga entre ministros do TSE.
Atualmente, e em que pesem opiniões em contrário, vídeos difundidos em massa no WhatsApp são democráticos. Se um fato de interesse público é documentado por vídeo (o que agora pode ser feito por milhões de cidadãos, armados de câmeras, antes muito mais restritas) e não há a possibilidade de deep fakes, as imagens resultantes falam por si e são igualmente acessíveis a todos, até mesmo às crianças. Toda a pompa e prestígio de uma autoridade ou um jornalista sucumbem diante de um vídeo que os desminta ou lhes cause embaraço.
É a era da informação direta: o intermediário que antes derivava prestígio e ascendência sobre os demais cidadãos do fato de deter acesso exclusivo à informação agora vê seu prestígio se esvair. O que, às vezes, produz muito ressentimento contra as tecnologias que ocasionaram esse acontecimento.
Para a sorte dessas pessoas, no entanto, as filmagens e fotografias genuínas feitas pelos cidadãos correm o risco, num futuro próximo, de se misturarem a um mar de imagens falsas, e delas se tornarem indistinguíveis, exceto pela credibilidade da fonte que as endossar.
Inevitavelmente resultará um retorno à era da credibilidade, que, como no passado, será inerentemente menos democrática e mais favorecedora de uma elite comunicacional, pouco numerosa. Ao contrário da capacidade de interpretar imagens, a credibilidade e prestígio social são bens escassos.
Também é escasso o acesso às fontes com credibilidade, como testemunhas oculares de um evento. O acesso às fontes relevantes sempre foi o bem mais precioso de um jornalista. Assim, é provável que a imprensa tradicional recupere parte da força perdida com o advento da internet.
Isso é bom?
Vendedores de guarda-chuva se beneficiam de uma tempestade que arruína um bloco de carnaval; engarrafadores de água mineral se beneficiam da poluição dos rios; e os profissionais da imprensa se beneficiam da poluição do ambiente informacional por deep fakes. Em todos esses casos, trata-se claramente de soluções para o que não deixa de ser um problema.
Por isso, cabe indagar por que o presidente do STF chamou de “notícia boa” o fortalecimento da imprensa em meio à tempestade de deep fakes.
A explicação se deu momentos depois em sua fala, e gira em torno de uma qualidade superior que o ministro atribui à imprensa como fonte de informação do público: “a imprensa tem uma editoração, tem um filtro sobre o que aquilo que vai ao ar, e é muito mais fácil responsabilizar um órgão de imprensa do que você responsabilizar alguém na rede social.”
A restrição das fontes de informação favorece o autoritarismo
Uma das consequências da restrição do poder comunicacional é que, como aludido pelo ministro, é sempre mais fácil, para as autoridades de um país, fiscalizar um pequeno número de agentes do que milhões. Por um lado, isso pode favorecer a repressão legítima de crimes, em benefício da sociedade. Mas, por outro lado, a restrição estatal do discurso é usada para o mal com mais frequência do que para o bem, de modo que a maior facilidade de controle também deve ser vista pelo prisma negativo.
Por exemplo, o rádio, por sua natureza tecnológica, admite apenas um número limitado de estações, ao contrário da mídia impressa (que existia antes) ou da internet (que veio depois), potencialmente infinitas, e por isso mais plurais. Quem estiver em busca de pontos de vista minoritários ou pouco convencionais tem muito mais chance de encontrar o que procura num podcast da internet do que no aparelho de rádio.
Justamente pelo número limitado de estações é que, até hoje, o rádio é operado sob regime de concessão, porque se julgou conveniente o controle pelo Estado para a alocação do recurso limitado — controle este que pode ser usado de diversas formas. É ilustrativo que a rádio Jovem Pan, de orientação ideológica contrária ao atual governo, esteja sob ameaça de cassação do seu funcionamento como punição pelo conteúdo veiculado, enquanto os canais de internet do mesmo grupo, que veiculam o mesmo conteúdo, não sofrem a mesma ameaça.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais