Não foram poucas as pessoas que diante da obra de Petra Costa, Democracia em Vertigem, tiveram como reação imediata a indignação diante da narrativa da autora. Vários foram os escritos buscando contestar a narrativa e muitos dos dados.
Como bem lembraram os apoiadores de Democracia em Vertigem, porém, um documentário não é necessariamente um retrato isento da realidade. Um documentário é, segundo os que defendem a obra, a visão da autora sobre estes fatos. Eis aí a beleza da obra, responder a uma questão humana, para além dos números e manchetes: afinal, o que pensam os herdeiros das grandes empresas protagonistas da corrupção no Brasil?
Ignore que Petra tenha descoberto o que são pedaladas fiscais apenas quando já estava envolvida na construção do documentário. Atenha-se ao argumento apresentado pelos seus apoiadores e com o seu viés (lamento se você acredita que pode abrir mão deles para assistir o documentário), assista, ou reveja o filme.
Como eu já havia sido alertado por vários spoilers antes de assistir, busquei entender de onde surgiu essa visão pessoal que levou Petra a gravar o documentário.
Como pensam os filhos da elite
O resultado é que poucas vezes vi uma obra tão boa. Nunca antes na história deste país vimos de maneira tão clara como pensam os filhos da elite que joga com a democracia brasileira.
Imagine que você descubra que seu avô, aquele mesmo dos almoços de domingo, financiou a construção do maior crime ambiental da história recente do país em nome de alguns bilhões desviados. Imagine que você descubra que seus cursos em Nova York, que sua educação primorosa ou que seus pequenos mimos tenham tido origem em conchavos, fraudes e desvios de recursos públicos? Como você, leitor, reagiria?
Como bem cita Tolstói em Anna Karenina, "todas as famílias felizes se parecem, todas as famílias infelizes são infelizes a sua maneira". Ressaltando que não cabe a mim julgar a felicidade alheia e muito menos imputar qualquer erro pessoal cometido pela empresa de seu avô, é extasiante observar Democracia em Vertigem como um todo e entender nos mínimos detalhes como se dá essa relação familiar. Observar o amor entre o pai empreiteiro e a filha revolucionária por si só já renderia um belo romance.
A luta entre o amor familiar e a criação da sua própria personalidade, nos mostra um mundo inteiramente novo. Uma realidade inalcançável para a maioria dos brasileiros.
Na busca por se tornar "Petra a cineasta" e não mais "Petra, a herdeira da empreiteira que financiou o mensalão tucano e petista", a diretora deixa escapar de maneira inconsciente seus maneirismos.
A escolha por retratar os pais presos pela ditadura e o seu exílio (ainda que pudessem visitar a família no Brasil tranquilamente), dá o tom da narrativa. Na época da prisão, seu avô paterno era presidente da Assembleia de Minas Gerais, enquanto o avô materno negociava a construção de Itaipu, a maior obra da ditadura, na qual a mãe viria a trabalhar organizando um projeto para reassentar os indígenas e demais colonos removidos para a empreitada. Tais fatos ficam de fora, conforme a escolha da editora.
Nesse ritmo por produzir e editar a própria vida e de seus familiares, Petra foi além.
Na busca pela estatueta dourada, Petra incorporou outros aspectos ao seu filme. Trata-se de um discurso de preservação dos povos indígenas do meio ambiente contra aqueles que os ameaçam (não aqueles removidos por Belo Monte para garantir a reeleição da ex-presidente, mas outros indígenas, caro leitor).
Petra por Petra
Revelando sua própria bolha, a autora demonstrou, em entrevistas posteriores, que desconhecia qualquer possibilidade real de vitória de Bolsonaro até 3 dias antes das eleições e que desconhecia a face daqueles que ela julga "responsáveis" por tal onda, atribuindo-a aos evangélicos (cuja maior parcela é formada por mulheres e negros).
Veja, mais uma vez, não é sobre Bolsonaro, Dilma, PT ou o que quer seja. A história é sobre Petra, sobre seus pais, sobre como ela gostaria de ser vista. Indignar-se com bravatas ou invencionismos políticos não tem qualquer sentido aqui. Não é nem mesmo a história do país que está sendo reescrita, e sim a história familiar de Petra Costa. O pai, ex-secretario de Aécio e ex-deputado pelo PMDB, agora é um valente guerreiro contra a ditadura. A mãe, pobre menina rica, agora é alguém que abriu mão de tudo (ok, quase tudo) em nome de um ideal.
Entre a Savassi, o Leblon e Nova York, há por parte de Petra Costa uma incessante busca por aprovação, não por parte da parcela que financiou os desvios de seu avô que lhe garantiram o status social que tem, mas justamente daqueles que facilitaram estes desvios.
Petra Costa acredita seguir um caminho correto (que novamente, não tenho o menor interesse em julgar, do contrário estaria aqui escrevendo mais um texto sobre os erros factuais do documentário) e, por conta disso, traduz sua formação em um filme para apreciação daqueles de quem busca aprovação.
O resultado de tudo é que, ao contrário das filhas de Marcelo Odebrecht, dos dramas de pai e filho (há notícias de Marcelo e seu pai, Emílio, sequer se falam), das conversas entre as herdeiras de Sebastião Camargo e seu autoexílio em Londres e das disputas de poder envolvendo a família Batista e sua luta por continuar a existir após o Petrolão, Petra nos revela uma face limpa e honesta da maneira como se vê no mundo.
Da elite para a elite sobre a elite
Nesta obra da elite sobre a elite e para a elite, percebemos que até mesmo aqueles que vivem pequenos conflitos familiares podem dormir o sono dos justos, desde que para isso vistam a roupa de militante social. No fundo, essa busca por redenção é o que torna o documentário especial.
Eis uma obra que merece ser vista, retratando dilemas pessoais, dramas familiares, sensação de pertencimento da elite e que, por uma infeliz coincidência, tem como pano de fundo o erário público e a história daqueles que se esbaldaram com nossos impostos.
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