O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes presta concurso para professor titular da Universidade de São Paulo, no centro de São Paulo (Brasil), no dia 11 de abril de 2024: “democracia militante”| Foto: EFE/ Isaac Fontana
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As decisões do ministro do STF Alexandre de Moraes nos inquéritos sob sua relatoria vêm levantando, entre especialistas, comparações com a teoria da “democracia militante”, também chamada de “democracia defensiva”.

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Criada em 1937 pelo filósofo alemão Karl Loewenstein (1891-1973), a teoria foi resumida pelo próprio autor como uma técnica para derrotar o fascismo usando suas próprias armas. Segundo Loewenstein, a “salvação” da democracia dependia da adoção de uma democracia “disciplinada ou – não tenhamos medo da palavra – autoritária”.

A teoria da democracia militante nunca foi citada por Moraes em suas decisões. No entanto, quando o ministro era presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o tribunal foi sede do seminário “Democracia defensiva: experiência da Alemanha e do Brasil”, que contou com discurso do ministro. Além disso, a expressão “democracia militante” apareceu em citação dentro da tese apresentada pelo ministro para concorrer a vaga de professor da USP em abril.

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A teoria de Loewenstein apresenta diversos paralelos com a atuação do ministro.

1) Ativismo judicial para combater ameaças

Em discurso no seminário, Moraes afirmou ter sido necessária, no Brasil e em outros países, uma “nova leitura” da Constituição “no sentido finalístico” (por oposição a uma leitura literal e formalista do texto) para proteger a democracia: “Não é possível que a Constituição permita a utilização sem limites de determinadas liberdades para a própria democracia e o Estado de direito serem rompidos.”

As palavras ecoam as de Loewenstein, que advertia contra o legalismo excessivo (por ele chamado de “fundamentalismo democrático”) e dizia que “A democracia e a tolerância democrática vêm sendo usadas para a sua própria destruição. Sob o manto dos direitos fundamentais e do Estado de direito, a máquina antidemocrática pôde ser construída e posta em movimento.”

Ao defender a estratégia de “democracia militante”, Loewenstein focava sobretudo na atuação do Legislativo, restringindo direitos por meio de lei. No entanto, ele também defendia uma atuação proativa do Judiciário, criticando as cortes de justiça por, às vezes, darem espaço de respiro ao fascismo por meio de interpretações ditas “legalistas”. Por exemplo, como modelo positivo, citou os tribunais superiores da Tchecoslováquia por “sabiamente” fazerem vista grossa para inconstitucionalidades evidentes em leis que ampliaram os poderes do Executivo, num momento em que ele considerava essas leis úteis para o combate ao fascismo. 

2) Cerco a críticas e a fake news

Loewenstein considerava justificável, em nome da defesa da democracia, afastar garantias como a imunidade parlamentar ou as liberdades de expressão, de imprensa e de reunião. Segundo ele, “o vasto arsenal da técnica fascista” para destruir democracias incluía armas sutis como “vilificar, difamar e, por último, mas não menos importante, ridicularizar o Estado democrático, suas instituições políticas e suas personalidades de maior destaque”. Seria desejável cortar o mal pela raiz. 

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Essa ideia tem paralelo nos inquéritos conduzidos por Moraes, como o das Fake News ou o das Milícias Digitais, nos quais até mesmo críticas relativamente brandas contra os ministros do STF – inclusive as feitas por parlamentares, que, no Brasil, gozam de imunidade sobre as palavras e têm o papel constitucional de fiscalizar o STF – são frequentemente tratadas como criminosas. A alegação tem sido de que as críticas constituem suposto ato preparatório para uma derrubada da democracia, começando pela descredibilização das instituições. Com base nisso, parlamentares e cidadãos já foram interrogados em delegacia, alvejados por operação de busca e apreensão ou censurados nas redes sociais, entre outras medidas.

Na crítica do jornalista Glenn Greenwald, Moraes “acredita que ele é a própria democracia, e que qualquer questionamento ou fala crítica a ele é um ataque criminoso à legitimidade do Estado e, portanto, à democracia”.

O próprio Loewenstein admitia que a liberdade de expressão era a área “mais espinhosa” de intervenção da democracia militante, porque frequentemente “o ataque se apresenta sob o disfarce da crítica política legítima das instituições existentes”. Loewenstein reconhece que a linha divisória é nebulosa e que um critério jurisprudencial de distinção ainda estava pendente de ser descoberto. 

Apesar disso, ele acreditava que o risco maior para a democracia estava na “leniência”. Por isso, elogiava que as democracias da época estivessem reformando seus códigos penais para criminalizar críticas ácidas que “ofendem a dignidade das autoridades em exercício e dos órgãos públicos”, assim como o ato de “circular falsos rumores” – num paralelo com a atual discussão, no Brasil, sobre as “fake news”, também alvo frequente da atenção do ministro Moraes.

3) Luta contra o poder da tecnologia

Loewenstein acreditava num suposto apelo emocional irresistível do fascismo junto às massas, e impossível de ser vencido pelos grupos mais racionais da sociedade, que detinham a visão correta. Na sua metáfora, era “o terrível encanto do olhar de basilisco do fascismo”, fazendo referência a um réptil mitológico que, conforme a lenda, causava magicamente a morte dos que o olhavam no olho.

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Usando metáfora parecida, o ministro Alexandre de Moraes já disse que, no Brasil contemporâneo, a “lavagem cerebral” realizada pela extrema direita “transformou as pessoas em zumbis”.

Nos dois casos, o efeito hipnótico seria parte de uma estratégia friamente calculada por grupos que buscavam o poder e estariam manipulando as massas desavisadas usando novas tecnologias disruptivas – no caso de Loewenstein, o rádio; no caso de Moraes, as redes sociais.

Para Loewenstein, a democracia liberal só seria uma filosofia adequada aos “aristocratas políticos entre as nações”, que estariam perdendo a batalha para as novas massas mobilizadas. Esses homens racionais, representantes da democracia, não tinham, segundo Loewenstein, chance de ganhar de volta as massas disputando no terreno da emoção. 

Por isso, segundo Loewenstein, “a democracia precisa ser redefinida. Ela deve consistir – pelo menos por um período de transição, até que a sociedade consiga se ajustar às condições da era tecnológica – na aplicação de autoridade disciplinada por homens de inclinação liberal”.

Na ausência da possibilidade de convencer as massas pela persuasão, a democracia devia, na visão de Loewenstein, impor-se pela força (na visão dele, a mesma arma usada pelo fascismo).

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4) Centralização de poder

Um Judiciário e um parlamento independentes são normalmente tratados como pilares da democracia liberal, na medida em que oferecem contraditório aos outros órgãos do Estado, evitando, assim, a excessiva concentração de poder.

No entanto, em comum, Alexandre de Moraes e Loewenstein enxergam riscos dessa descentralização de poder, que consideram como potencial obstáculo para a salvação da democracia.

Loewenstein atribuiu a queda da Alemanha para o nazismo, em parte, à atuação deficiente de juízes e tribunais “hiperlegalistas” ou (segundo ele) “rebeldes” ao redor do país, que teriam, propositalmente ou não, dado impunidade aos nazistas.

Uma lógica parecida é apresentada por ministros do STF ao justificar a manutenção do controverso Inquérito das Fake News, relatado por Moraes: a suposta omissão dos órgãos de justiça em perseguir e julgar crimes contra os ministros do STF poria as instituições em risco inaceitável, tornando imperativo que o tribunal agisse por conta própria para reprimir os crimes e impedir a impunidade que poderia resultar se os casos fossem deixados para os ritos comuns. “Todos, absolutamente todos aqueles que pactuaram covardemente com a quebra da democracia [...] serão devidamente investigados, processados e responsabilizados", garantiu Moraes em discurso sobre os atos de 8 de janeiro de 2023.

Como resultado, juristas têm frequentemente criticado os inquéritos relatados por Moraes como atribuindo uma espécie de “competência universal” ao STF para julgar crimes que supostamente atentam contra a democracia.  

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Loewenstein também atribuía ao parlamento alemão parte da culpa pela vitória do nazismo: o parlamento teria se omitido em renovar leis temporárias que seriam úteis para perseguir o nazismo, aprovando, em vez disso, regras que, na opinião dele, eram brandas demais. A pá de cal para a democracia alemã teria sido o impasse político produzido pelo pluralismo de partidos no parlamento; como os defensores da democracia não foram capazes de obter a maioria, qualquer lei a ser aprovada demandaria consenso com outros grupos – ou, nas palavras de Loewenstein, “qualquer emenda constitucional dependia justamente do apoio dos grupos contra os quais era pretendida”. 

De forma similar, o grande número de assentos conquistados pela direita no Congresso brasileiro vem resultando na frustração de projetos governistas vendidos como meios de garantir a democracia – por exemplo, o PL 2.630/20 (“PL das Fake News”). Em discurso proferido em janeiro de 2024, Moraes pontificou: “Nós, democratas, não podemos compactuar com a continuidade dessa ausência de regulamentação [das redes sociais]”.

O ministro tem repetidamente dito, inclusive em decisões judiciais, que, se o parlamento não aprovar a regulação das redes sociais, o STF e o TSE imporão novas regras por conta própria. De fato, meses após o discurso, o TSE aprovou nova resolução que instituiu regras parecidas com as que tinham sido rejeitadas pelo Congresso, gerando críticas de especialistas por avançar sobre competências do Legislativo.

Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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