Logo após a votação que elegeu a Assembleia Constituinte da Venezuela, a empresa responsável pelo sistema eleitoral do país, a Smartmatic, fez a denúncia: teria havido manipulação de resultados por parte do governo. Operando nos pleitos venezuelanos desde 2004 sem jamais ter apontado qualquer irregularidade, a Smartmatic causou surpresa por sua revelação, e também reacendeu dúvidas sobre o assunto: na Venezuela, como no Brasil, as urnas utilizadas são principalmente eletrônicas. Se a denúncia procede, estaríamos diante de uma tecnologia vulnerável?
Sediada em Londres, a Smartmatic se dedica a auxiliar na implementação e fiscalização de sistemas de votação eletrônicos ao redor do mundo. Com seu capital controlado de forma majoritária por um grupo de investidores venezuelanos e tendo participado das eleições do país há treze anos, desde os tempos de Hugo Chávez, a empresa costumava ser atacada pela oposição com suspeitas de colaboração com o chavismo – aumentando ainda mais a surpresa de observadores internacionais diante da denúncia de manipulação, por parte de oficiais do próprio governo, no pleito mais recente.
Desde sua fundação, em 2000, a Smartmatic já atuou em países como Bélgica, Estônia, Filipinas e também nas primárias do Partido Republicano dos Estados Unidos, no ano passado. No Brasil, a empresa venceu licitações para as eleições municipais de 2012 e 2016, bem como as eleições gerais de 2014. Há uma diferença fundamental, porém, entre o papel da Smartmatic nos casos venezuelano e brasileiro: enquanto no país de Nicolás Maduro a empresa participa do processo eleitoral inteiro, sendo a fabricante das urnas e tendo acesso aos resultados, no Brasil sua função foi simplesmente a de limpeza e manutenção de uma tecnologia já existente.
Utilizadas desde 1996, as urnas eletrônicas brasileiras foram desenvolvidas por uma subsidiária da empresa norte-americana Diebold. “Em cada país a Smartmatic fornece o serviço que for possível, para os quais ela foi contratada. Aqui no Brasil ela se responsabilizou pela manutenção das urnas antes das eleições, quando elas são recebidas dos fabricantes. Na Venezuela, têm acesso aos resultados e participam da totalização dos votos”, esclarece o engenheiro Amílcar Brunazo Filho, um dos membros do Comitê Multidisciplinar Independente (CMind), que busca realizar auditorias e testes de segurança dos sistemas eletrônicos utilizados no Brasil.
Diante da denúncia que fez após a votação ocorrida no último final de semana na Venezuela, a Smartmatic tem se manifestado oficialmente através de seus canais nas redes sociais. “Graças a uma tecnologia de votação bem desenhada, adulterações podem ser detectadas e eleições limpas garantidas”, argumentou Antonio Mugica, CEO da Smartmatic, em sua conta no Twitter. “Em sistemas manuais de eleições todos os tipos de adulterações acontecem com frequência, mas não são detectados”, defendeu.
Segundo a empresa, os resultados de 2017 não são confiáveis (diferentemente de pleitos anteriores) porque a apuração pela primeira vez não contou com a presença de representantes da oposição. Em outros anos, afirma a Smartmatic, os resultados divulgados pelo governo podiam ser checados facilmente pela empresa e pela oposição pois a documentação emitida pelas urnas era distribuída imediatamente aos participantes do pleito – isso não aconteceu na votação de domingo passado quando, pela ausência de observadores de oposição, só os números do governo foram conhecidos.
Sistema atrasado
Curiosamente, as urnas eletrônicas utilizadas na Venezuela, agora sob suspeita, são consideradas até mais avançadas do que aquelas adotadas há mais de duas décadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do Brasil. Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, pode-se considerar que atualmente existem três gerações de sistemas eletrônicos de votação em uso ao redor do mundo – e o adotado em território brasileiro ainda é parte da primeira geração, que não permite uma verificação dupla (digital e impressa) dos resultados.
As urnas brasileiras são do tipo DRE (Direct Recoring Electronic), que mantêm só o registro digital dos votos. Urnas de segunda geração, utilizadas na Venezuela, emitem também um comprovante impresso para conferência dos eleitores e verificação do resultado, enquanto as da terceira geração, já utilizadas na Argentina, emitem uma cédula com um chip, que contém no mesmo documento os registros digitais e impressos, permitindo uma auditoria mais rápida. Países como Alemanha, Holanda, Irlanda, Paraguai e Reino Unido já testaram urnas da mesma geração utilizada no Brasil (sem impressão do voto) e, por considerá-las pouco confiáveis, abandonaram o sistema.
“O Brasil é o único país que persiste em utilizar máquinas de votar que são puramente eletrônicas, que não têm nenhum registro físico do voto”, diz Diego Aranha, professor de ciência da computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador de uma equipe de trabalho da Universidade de Brasília (UnB) que, em 2013, revelou uma série de vulnerabilidades na tecnologia nacional. “O próprio TSE é contra a ideia da impressão do voto e faz propaganda contrária, alegando que voltariam as fraudes de manipulação de cédulas que existiam até os anos 90. Não há boa vontade para fazer a impressão dar certo”, lamenta Aranha.
Para Amílcar Brunazo, um dos entraves à implantação de tecnologias mais seguras no Brasil seria o fato de que, contrariando o que ocorre em outros países, aqui os administradores do processo eleitoral também são membros da Suprema Corte: “os juízes do TSE também são parte do STF. Eles têm superpoderes: quando se entra com uma ação contra o administrador alegando que ele não fez seu papel direito, quem acaba julgando é o próprio administrador, que vira juiz”, sustenta.
Auditorias independentes
Recentemente, em Las Vegas, uma das maiores conferências de segurança digital do mundo, a Defcon, colocou trinta urnas eletrônicas do tipo utilizado nos Estados Unidos (de segunda geração) à disposição dos hackers que participavam do evento. “Não sobrou pedra sobre pedra”, destaca Diego Aranha. Todas as máquinas de votação adquiridas pelos organizadores foram invadidas, muitas delas em poucos minutos. De acordo com Aranha, um experimento do tipo é muito difícil no Brasil: as auditorias periódicas das urnas são sempre realizadas sob a observação do TSE, com restrições que os especialistas consideram impossíveis de superar no pouco tempo concedido pelo tribunal – ao mesmo tempo em que não refletiriam as condições reais de uma eventual invasão.
Apesar das dificuldades, mesmo assim foram detectadas falhas de sigilo e segurança no sistema brasileiro. Em 2009, descobriu-se que o teclado da urna eletrônica emitia frequências de rádio específicas de acordo com o voto do eleitor, quebrando assim o sigilo da escolha. Em 2012, no primeiro teste em que os pesquisadores tiveram acesso ao código-fonte do sistema, bastaram cinco minutos para o sigilo do voto ser quebrado: determinando a hora da “zerésima” (documento impresso pela urna quando é ligada), era possível descobrir os votos e a ordem em que foram realizados. Em 2016, também em testes, verificou-se que, em caso de troca de urna por algum problema, haveria possibilidade de um mesário manipular os resultados do boletim de urna e encaminhar para totalização resultados fraudados, que o sistema reconheceria como legítimos. “Foi o primeiro ataque à integridade dos resultados realizado com sucesso”, resume Aranha.
A detecção de vulnerabilidades apresenta um risco mas não significa que as eleições já realizadas no Brasil tenham sido fraudadas – não há registros de manipulação dos resultados. A reportagem não conseguiu contato com Giuseppe Janino, secretário de tecnologia da informação do TSE. Em 2014, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, Janino disse à BBC Brasil que um ataque real era visto como impossível pelos gestores das eleições brasileiras: “as barreiras existentes no sistema eletrônico de votação tornam a urna inviável de ser fraudada. Na prática, não há como fraudar o sistema sem ser detectado”.
Garantia da unicidade do voto
O TSE encaminhou nesta semana uma nota à Gazeta do Povo em relação ao assunto, após publicação do colunista Rodrigo Constantino. O órgão sustenta que as urnas eletrônicas brasileiras foram projetadas por técnicos a serviço da Justiça Eleitoral e são produzidas, sob a sua direta coordenação, por empresas selecionadas por meio de processos licitatórios públicos e de ampla concorrência.
“O contrato que foi celebrado entre a Justiça Eleitoral brasileira e a empresa Smartmatic tinha como escopo o recrutamento, a contratação e o treinamento de aproximadamente 14 mil profissionais, que trabalharam exclusivamente no suporte técnico-operacional das eleições de outubro de 2014. Coube a esses profissionais o trabalho de preparo e de manutenção das urnas, assegurando que todas estivessem em perfeito estado de funcionamento no dia das eleições”, diz o TSE, no comunicado.
O tribunal também assinala que o resultado das eleições de 2014 foi objeto de auditoria solicitada pelo PSDB, na qual não foram encontradas irregularidades que comprometessem a fidedignidade do resultado divulgado.
Além disso, ao sistema eletrônico de votação, ainda de acordo com o TSE, está sendo incorporado o sistema biométrico de identificação do eleitor. Igualmente digital, esse sistema garante a individualidade do eleitor e a unicidade do voto, eliminando a possibilidade de inscrições repetidas ou múltiplas. Fica impedido, assim, sustenta o tribunal, que ocorram fraudes como a que recentemente foi denunciada na Venezuela. “O sistema eletrônico de votação adotado no Brasil foi concebido – e é gerido inteiramente – pela Justiça Eleitoral do país. Ele utiliza meios próprios e criptografados de comunicação e transmissão de dados, não tendo qualquer contato com redes públicas, como a Internet. Em mais de 20 anos de trajetória, o sistema foi reiteradamente testado e provado isento de quaisquer formas de manipulação ou fraude.
Reforma Eleitoral
Os especialistas defendem que o país avance na direção de passar a imprimir comprovantes de votação, para checagem de resultados e transparência do processo. A Reforma Eleitoral de 2015 (Lei nº 13.165) determinou que, a partir de 2018, as eleições brasileiras deverão implementar o sistema gradativamente. A estimativa é que cerca de 35 mil das 600 mil urnas utilizadas no país já conte com impressora.
Na prática, após concluir seu voto, o eleitor poderá visualizar seu comprovante em papel, que depois será depositado em um espaço inviolável acoplado à urna eletrônica, para ser utilizado em eventuais recontagens dos resultados.