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Ativismo judicial

Depois de criminalizar a transfobia, STF já fala em pessoas intersexo e assexuais

Ministros durante a sessão plenária do STF
Ministros durante a sessão plenária do STF (Foto: Carlos Moura/SCO/STF)

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No dia 22 de agosto, o STF anunciou em sua página oficial que o tribunal passara a considerar “ofensas contra pessoas LGBTQIAPN+” como configurando crime de injúria racial.

Este foi o desenvolvimento mais recente de um processo que começou em 2012, quando a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) empreendeu ações buscando, em suas palavras, “obter a criminalização” da “homofobia e transfobia”. Como a ABGLT poderia perseguir tal objetivo?

Ora, a Constituição é clara a respeito. O ato de criminalizar condutas é, por definição, ameaça do ato mais violento que se permite ao Estado praticar de forma lícita contra cidadãos nacionais. Em consideração a este fato, a Constituição coloca prudentemente nas mãos do Poder Legislativo, e nas de mais ninguém, o poder de criminalizar condutas, mediante lei: “não há crime sem lei anterior que o defina” (regra da reserva legal). Embora o direito seja famoso por ser a área em que não há regras absolutas e toda pergunta tem como resposta “Depende”, trata-se, o que é significativo, de rara regra sem exceção.

Assim, o caminho natural dado à ABGLT para perseguir o seu objetivo parecia pacífico: peticionar ao Congresso Nacional e mobilizar a opinião pública em seu favor. No entanto, em vez disso, a associação dirigiu-se ao Supremo Tribunal Federal.

2019: STF criminaliza a homofobia e a transfobia

Numa quebra do tabu da reserva legal, o STF acolheu o pleito da ABGLT em 2019 (MI n.º 4.733) e operou a primeira criminalização judicial da história brasileira. A ação foi julgada conjuntamente com a ADO 26, na qual o tribunal determinou que as orientações sexuais e identidades de gênero passassem a ser consideradas “raças”, de modo a viabilizar a incidência do crime de racismo. Isto torna a primeira criminalização judicial ainda mais ousada, por ter assumido justamente a forma de um crime anormalmente draconiano da legislação, imprescritível e inafiançável.

Todavia, o tribunal registrou que este arranjo deveria ser apenas temporário, enquanto o Congresso Nacional não elaborasse lei no mesmo sentido que o que já fora estipulado pelo tribunal. O reconhecimento da necessidade de lei nova sugere que o tribunal não entendesse, realmente, que a Lei do Racismo era aplicável, mas apenas que trazia uma hipótese comparável. Isto configuraria o que se chama de analogia em matéria de direito, e é o que autoriza a interpretação de que o tribunal tenha criado novo crime.

A analogia em prejuízo do réu nunca fora, até então, admitida no direito penal. Se assim não fosse, um vendedor de banca de revista, por exemplo, não teria nem mesmo a segurança de pôr cigarros à venda sem correr o risco de ser inesperadamente capturado pela polícia e receber uma longa pena de prisão por tráfico, bastando que as autoridades envolvidas fossem da opinião de que o tabaco seja análogo à maconha ou à cocaína, para os fins que o direito pretendia ao proibi-los. A vedação à analogia em prejuízo do réu — como esta — deriva sobretudo de uma consideração de justiça.

2023: STF estende a decisão para o crime de injúria racial

Quando a decisão do STF foi proferida em 2019, determinando a aplicação da Lei do Racismo (referente à prática de “discriminação” ou de “preconceito”) aos casos de homofobia e transfobia, o crime de injúria racial (referente a insultos) não fazia parte daquela lei, de modo que não foi compôs a decisão do STF. Contudo, em janeiro de 2023, veio a Lei Antipiadas (Lei n.º 14.532/23), que entre outras inovações, retirou a injúria racial do Código Penal e inseriu-a na Lei do Racismo, com o objetivo de endurecer o seu tratamento.

Àquela altura, o legislador já estava, evidentemente, consciente do desejo do STF, já expresso, pela criminalização da homofobia e da transfobia. No entanto, quatro anos depois, o Congresso Nacional passou por todo o trabalho de aprovação de nova lei e, mesmo assim, de forma significativa, escolheu não mencionar orientação sexual ou identidade de gênero, preferindo manter na Lei do Racismo apenas os grupos originais.

Ou seja, já não se pode cogitar de “mora legislativa”, como disse o STF: o que se tem é opção política de um poder eleito. Tampouco se pode falar em “omissão” inconstitucional, porque, embora a Constituição brasileira seja a terceira mais longa do mundo em palavras, não traz mandado de criminalização de homofobia ou transfobia (como faz, de forma explícita, para o racismo).

Apesar disto, o STF proferiu, em agosto de 2023, decisão extemporânea dentro do MI n.º 4.733, que fora julgado em 2019, determinando que o novo crime de injúria racial recém-editado pelo legislador também fosse aplicado à homofobia e à transfobia, assim como fora feito antes com os crimes originais da Lei do Racismo. Pode-se dizer que o tribunal tenha operado uma analogia sobre a analogia anterior.

Novas expansões?

Aberta a porteira da criminalização judicial, não é possível prever até onde a tendência chegará. Se até mesmo a orientação sexual pode ser impropriamente considerada uma “raça” para fins de criminalizar sem lei, é de se perguntar quais outros crimes serão pleiteados no Judiciário.

Por exemplo, o esboço inicial de uma Lei da Politicofobia (PL 2.720, que hoje tramita no Senado) pretendia criminalizar quem insultasse ou ofendesse a dignidade de políticos lato sensu (chamados de “pessoas expostas politicamente”) em razão desta condição (abrangendo vários cargos, inclusive ministros do STF) ou quem insultasse ou ofendesse a dignidade de réus ou condenados criminais. Após repercussão negativa, as disposições concernentes à injúria foram retiradas, sendo mantida a criminalização de outras formas de discriminação. Mas há um notório e crescente fenômeno no Congresso de transferência estratégica de temas espinhosos para o STF, cujos membros, ao contrário dos congressistas, são imunes a retaliações pelo voto popular. Se a injúria homofóbica foi criada recentemente por analogia com o crime de discriminação, poderia a injúria politicofóbica também ser criada por analogia com o crime (já aprovado pela Câmara) de discriminação politicofóbica? Ou, pior, poderia a condição de político ou ministro do STF (ou a de réu ou condenado criminal) ser considerada “raça” para fins de aplicação da Lei do Racismo?

Por enquanto, os sinais de expansão dizem respeito apenas ao que se considera abrangido dentro de homofobia ou transfobia. Na ação original, em 2012, a ABGLT (de forma coerente com a época e com o próprio nome da associação) fez referência apenas à sigla “LGBT” – lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Já em 2019, ao julgar a ação, o STF mencionou, em acórdão redigido pelo ministro Edson Fachin (embora fora da parte dispositiva, ou seja, sem força decisória), “violência dirigida a pessoa gay, lésbica, bissexual, transgênera ou intersex” – fazendo referência às pessoas nascidas com características biológicas mistas associadas ao sexo masculino e ao feminino.

Quatro anos depois, em 2023, o mesmo ministro Fachin, em resposta a embargos de declaração (pedido de esclarecimento sobre como interpretar a decisão original), proferiu o entendimento de que o julgamento de 2019 deveria ser entendido como já tendo criminalizado também as injúrias (e não apenas a discriminação ou preconceito) contra “indivíduos da comunidade LGBTQIA+” – passando a incluir, em sua linguagem (propositalmente ou não), os queer, as pessoas intersexo e os assexuais (representados pelas letras QIA), embora estes grupos não tivessem sido antes mencionados no pedido original de 2013, nem no dispositivo criminalizador do acórdão. O tribunal pleno acolheu o pedido “nos termos do voto do Relator” (Fachin).

Mais preocupante ainda é a presença do sinal “+” na sigla, que significa que o rol é aberto — sem que haja nem mesmo uma definição de qual característica abstrata uniria as letras da sigla e limitaria as futuras a serem incluídas. Um exemplo vem do setor de comunicação do próprio STF, que, como já dito, e extrapolando a decisão noticiada, anunciou que ela se referia às pessoas “LGTBQIAPN+”, passando a incluir, assim, “pansexuais” e “não-binários”. Da mesma forma, abre-se margem para que novas criminalizações sejam feitas sem aviso, conforme os caprichos de intérpretes — e com a possibilidade de aplicação da punição a casos anteriores, uma vez que, ao contrário da lei, decisões judiciais podem retroagir.

Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

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