Na década de 80, quando conduziu a abertura econômica da China, o presidente Deng Xiaoping afirmava: o ideal era “esconder o brilho (as capacidades) do país, e ganhar tempo”. A China, afinal, era a superpotência do futuro. Agora, ao fim do 19º Congresso do Partido Comunista da China (PCC), celebrado entre 18 e 24 de outubro em Pequim, o futuro parece ter finalmente chegado.
Confirmado para um novo mandato de cinco anos, o líder chinês Xi Jinping foi alçado ontem à condição de ditador mais poderoso do país desde Mao – e já não parece disposto a esconder brilho algum. A inclusão da sua doutrina na Constituição do PCC marca um afastamento das ideias de Xiaoping e a promessa de assumir, cada vez mais, a posição de um país ocupando aquilo que Xi denominou “o centro do cenário mundial”.
“A bandeira do socialismo com características chinesas agora tremula alta e orgulhosa para que todos vejam”, declarou Xi Jinping na quarta-feira passada, no pronunciamento de três horas e meia que abriu o Congresso.
Suas ambições ficaram evidentes desde o princípio: embora o discurso afirmasse ser necessário um afastamento da polarização da Guerra Fria, as ideias apontavam claramente na direção de afirmar a China como um modelo alternativo ao capitalismo ocidental.
“O caminho, a teoria, o sistema e a cultura do socialismo chinês continuaram a se desenvolver, abrindo um novo caminho para que outros países em desenvolvimento alcancem a modernização”, afirmou Xi.
Mas, se até agora a postura oficial da China era seguir o legado de Xiaoping, colocando-se como uma nação pobre e trabalhando pelo futuro, Xi Jinping não teme propagandear o sucesso econômico de seu país. Seu discurso referiu-se ao país como uma “grande potência” ou uma “potência forte” em 26 ocasiões. “Será uma nova era”, garantiu, insistindo que o socialismo chinês “oferece uma nova opção para outros países e nações que querem acelerar seu desenvolvimento ao mesmo tempo em que preservam suas independências: oferece a eles a sabedoria chinesa e a abordagem chinesa para resolver os problemas da humanidade”.
Globalmente, é o momento mais ambicioso desde que o PCC começou a celebrar seus congressos, ainda na clandestinidade: o primeiro encontro, em 1921, reuniu 13 delegados em Xangai e precisou terminar na cidade vizinha de Zhejiang após a polícia perseguir os integrantes do partido. Mais da metade dos membros ali presentes acabaria sendo morta ou expulsa do país nos anos seguintes.
Após a Revolução de 1949, porém, os congressos se tornaram um dos momentos fundamentais na vida pública chinesa. Desde a morte de Mao, os congressos são celebrados a cada cinco anos, e hoje o PCC é provavelmente a maior organização política do mundo: conta 90 milhões de filiados e, na prática, é a única sigla capaz de alcançar o poder no país que caminha a passos largos para ter a maior economia do mundo. É controlando essa superpotência que Xi Jinping pode agora estar eternizando seu governo.
Líder sem concorrência
Até esta terça-feira (24), apenas quatro nomes eram citados como guias políticos e ideológicos na Constituição do PCC – que, na prática, rege o funcionamento da China. Além de Karl Marx e Vladimir Lenin, somente Mao (que governou entre 1949 e 1976) e Xiaoping (1978-1989) eram mencionados. Este último, aliás, só havia recebido a honraria após sua morte, em 1997.
Aos 64 anos, Xi Jinping tem sua doutrina reconhecida como parte da ideologia oficial, algo que não acontecia desde os dias do maoísmo, e uma seção inteira da Constituição agora é reservada àquilo que foi intitulado como “Pensamento de Xi Jinping para o socialismo com características chinesas em uma nova era”. As ideias do governante serão de ensino compulsório desde as escolas primárias até a universidade.
“A emenda na constituição do partido confirma a aspiração de Xi Jinping a se tornar o Mao Tsé-Tung do século 21 – ou seja, um líder supremo sem restrições de tempo de permanência no cargo ou idade para aposentadoria”, disse Willy Wo-Lap Lam, professor da Chinese University of Hong Kong, em entrevista ao Washington Post.
Atualmente, a prática usual do PCC é dar uma aparência de democracia ao regime comunista chinês, restringindo as presidências a dois mandatos e impondo uma aposentadoria compulsória aos políticos que completam 68 anos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os dois antecessores de Xi Jinping, Jiang Zemin (1989-2002) e Hu Jintao (2002-2012).
As limitações também foram a maneira que o PCC encontrou para se eternizar no poder sem ficar à mercê de um mesmo líder, como havia ocorrido na época de Mao. No entanto, após as determinações do Congresso encerrado ontem, muitos analistas suspeitam que Xi Jinping pode subverter a forma como o Partido Comunista vem funcionando nas últimas décadas e se efetivar como um ditador vitalício aos moldes do velho líder da Revolução Chinesa. Seu novo mandato, por exemplo, acabará em 2022, quando ele estiver com 69 anos e, em tese, não poderá concorrer a um terceiro período no governo. Xi, porém, não dá sinais claros de que apontará um sucessor.
Por muito tempo, a escolha óbvia para suceder Xi Jinping parecia ser Sun Zhengcai, Secretário do PCC em Chongqing, megalópole de 30 milhões de habitantes conhecida como a “Chicago do Yangtzé”, um dos maiores centros econômicos da China. Zhengcai, porém, foi expurgado intempestivamente em julho deste ano, após denúncias de corrupção. Em seu lugar, assumiu Chen Min’er, velho amigo e protegido do atual presidente chinês desde o início dos anos 2000. Muitos acreditam que Xi Jinping poderia estar formando Min’er como um eventual sucessor-fantoche.
No final da manhã desta quarta-feira (madrugada no Brasil), após a conclusão do Congresso, o governo chinês apresentou também o novo Comitê Permanente do Politburo, órgão composto por sete membros e instância mais poderosa abaixo do presidente. Considerado um bom indício de possíveis sucessores, o novo Comitê Permanente confirmou a ideia de que Xi ainda não está formando um líder forte para o futuro: o membro mais jovem tem 60 anos, o que significa que nenhum deles poderia concorrer a dois mandatos se fosse nomeado presidente em 2022.
Desafios da “nova China”
As posturas delineadas por Xi Jinping também apontaram os desafios para a manutenção do que chamou de “sonho chinês”. Analistas internacionais acreditam que o fortalecimento do líder supremo do PCC pode ser uma maneira de garantir mão dura para evitar uma quebra da economia, sobretudo após temores de que a bolha imobiliária chinesa possa estar próxima do colapso. O próprio Xi, em uma das frases mais citadas de seu longo pronunciamento, indicou que a nova política reforçará a ideia de que “casas são para viver, não para especular”.
Xi também deu a entender que a China buscará manter seu crescimento econômico acelerado nas próximas décadas, mas não mais a qualquer custo: sua nova plataforma estaria centrada também na solução do grave problema de poluição causado pela indústria pesada chinesa, modernizando os procedimentos e as fábricas, e também na elevação da qualidade de vida da população. O líder comunista afirmou que seu objetivo é garantir o país como uma sociedade “moderadamente próspera” em 2020, caminhando a passos rápidos para se afirmar como um “líder global” até 2050.
Embora a China tenha hoje a segunda maior economia do mundo – com um PIB que supera até mesmo o dos Estados Unidos quando se usa o critério da paridade do poder de compra –, a riqueza ainda não colocou a qualidade de vida da sua população nos patamares das ricas nações europeias e norte-americanas. Em termos de renda per capita, por exemplo, o Banco Mundial coloca a China apenas na 70ª posição entre 175 países (o Brasil é 73º nesse ranking), com cerca de 27% da renda média dos EUA. A China também aparece apenas na 90ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU (o Brasil é 79º), apesar da melhora nas últimas décadas.
Melhorar outros índices, no entanto, não parece estar na agenda do PCC. Atualmente, a China é apenas a 136ª colocada entre 163 países analisados no Índice de Democracia da revista Economist, e ocupa o 176º lugar entre 180 nações no ranking de Liberdade de Imprensa elaborado pela organização Repórteres Sem Fronteiras. “A barganha do governo nos últimos 25 anos ou mais foi: esqueça suas liberdades políticas, nós vamos autorizar que vocês fiquem ricos”, disse Fraser Howie, autor do livro Red Capitalism (“Capitalismo Vermelho”), em entrevista ao canal de TV Bloomberg. Essa política não parece ter data para terminar.
Xi Jinping tentará, agora, vencer o desafio de manter um crescimento econômico que até hoje foi sustentado por escassas proteções trabalhistas, ao mesmo tempo em que melhora a qualidade de vida dos chineses, aumenta a classe média e reduz as flagrantes disparidades entre as áreas rurais e urbanas do país. Tudo isso, claro, sem recuar um centímetro no autoritarismo do regime: o líder chinês garantiu que seu governo respeitará a abertura ao mercado, mas que a autoridade do PCC não deve ser questionada.
Superpotência
Xi efetivamente indicou que, na realidade, o que deve acontecer é uma participação ainda maior do governo na economia, controlando mais empresas, além de manter o atual domínio sobre setores estratégicos. Suas falas prometem aumentar a abertura a investidores estrangeiros além de garantir uma maior liberdade ao mercado para definir os preços, particularmente no sistema financeiro.
Para Xi, o mercado deve ter um “papel decisivo” nas políticas do país. Isso não representa, porém, que o Estado não será um participante ativo na forma como o mercado opera. Desde 2013, o governo chinês vem aumentando o controle e até mesmo fundindo empresas para formar estatais ainda maiores e mais poderosas. Especialistas sugerem que boa parte das empresas chinesas consideradas formalmente como privadas têm algum nível de participação do governo, graças aos mecanismos de partilha acionária em prática no país.
O presidente apontou ainda na direção de que os governos regionais de todos os níveis e os secretariados locais do Partido Comunista devem atuar como se fossem um mesmo gabinete. É mais uma distinção quanto aos preceitos de Deng Xiaoping, que em suas reformas na década de 80 havia procurado garantir uma separação – que na prática nunca chegou a ser totalmente atingida – entre o Partido e as instâncias do governo.
“Xi está a caminho de se tornar o líder mais poderoso da China, mas ele ainda não chegou ao topo”, disse Wu Qiang, comentarista político residente em Pequim e ex-professor de ciência política da Universidade Tsinghua, em entrevista à revista Time. Ao longo do próximo mandato, interpreta Wu, “Xi vai institucionalizar seu poder no Partido. No fim, ele pode até se livrar do politburo e se tornar o verdadeiro ‘Presidente’ da China”.
Tudo isso enquanto expande seu poderio militar. Xi Jinping afirmou que seu país jamais buscará políticas expansionistas, mas não tolerará que a arena internacional tome decisões que prejudiquem os interesses chineses – neste caso, quer que a China esteja preparada para dar uma resposta enérgica. Com poderio nuclear desde os anos 60, o regime comunista agora quer garantir sua supremacia na região da Ásia e do Pacífico: até 2050, a ideia é ter se equiparado aos Estados Unidos tanto em termos econômicos quanto militares, passando a ter a palavra final sobre o que acontece no Oriente.
Novo Mao: o comunista mais forte do mundo fica ainda mais poderoso //bit.ly/2yJsfwc
Publicado por Ideias em Quarta-feira, 25 de outubro de 2017
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