O deputado José Guimarães (PT-CE) apresentou em fevereiro um projeto de lei que tornaria crime a "disseminação de informações falsas com a intenção de comprometer a credibilidade do sistema eleitoral", com pena de até cinco anos de reclusão.
A proposta mira quem questionar a credibilidade das urnas eletrônicas.
O projeto chama a atenção para o fato de que atualmente não existe tipo penal específico que proíba esse tipo de fala. No entanto, essa lacuna não tem impedido a decretação de cautelares criminais contra múltiplos investigados – como a desmonetização de canais de YouTube, a proibição de abordar o assunto em postagens (sob risco de decretação de prisão preventiva) e a censura de contas em redes sociais.
As decisões que atualmente instauram essas medidas tendem a ser proferidas sem a menção de tipo penal existente ou com referência a tipos mais amplos. Em tese, não serão afetadas pela eventual aprovação do projeto, porque a nova lei criminalizadora não retroage para atingir fatos pretéritos.
A repressão judicial à desinformação com relação às urnas começou em 2021, quando o ministro Luis Felipe Salomão, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), instaurou, de ofício, um procedimento administrativo para apurar supostas fraudes nos equipamentos – em reação à fala pública do então presidente Jair Bolsonaro, que afirmou ter "provas materiais" da ocorrência de fraude na eleição de 2018.
Salomão oficiou Bolsonaro para apresentar as provas. Porém, em 29 de julho, o ex-presidente fez uma live na qual, recuando ligeiramente de sua retórica anterior, disse não ter provas, mas apenas indícios, mostrando em seguida vídeos retirados da internet, trechos de reportagens e contagens de votos exibidas em uma emissora de tevê.
Após a live, o ministro Luís Roberto Barroso, enquanto presidente do TSE, apresentou notícia-crime contra Jair Bolsonaro ao ministro Alexandre de Moraes, relator do Inquérito 4.781 (conhecido como "Inquérito das Fake News").
Moraes acolheu o pedido, determinando a investigação contra o ex-presidente por diversos crimes, que incluiam calúnia, difamação e denunciação caluniosa.
Calúnia e difamação consistem, respectivamente, em atribuir a alguém a prática de fato criminoso ou ofensivo à reputação.
Já o crime de denunciação caluniosa consiste em "dar causa à instauração" de investigação ou outro procedimento "contra alguém", imputando-lhe ilícito de que o sabe inocente.
Na mesma transmissão, Jair Bolsonaro fez insinuações vagas contra Luís Roberto Barroso. Ele questionou o motivo de tanta "ferocidade" do ministro em negar o voto impresso, a ponto de comparecer pessoalmente ao Congresso para demover os parlamentares de votarem favoravelmente ao projeto que tramitava nesse sentido.
"Não quero acusá-lo de nada, mas algo de muito esquisito acontece", disse Bolsonaro.
A ausência de acusação específica dificulta a caracterização dos crimes de calúnia e difamação. No entanto, o ex-presidente aumentou o risco jurídico da fala ao mencionar uma pessoa específica (o ministro Barroso), visto que esses crimes exigem vítima identificada (justamente porque se destinam a proteger a reputação).
No caso de Bolsonaro, o TSE viabilizou a caracterização do crime ao instaurar procedimento de investigação em resposta às suas declarações. Contudo, o procedimento não foi instaurado "contra" Barroso ou qualquer outra pessoa específica, sendo destinado a apurar fatos em geral. Isso impede o preenchimento de todos os elementos do tipo penal.
Nesse sentido, haveria maior risco de Jair Bolsonaro ser enquadrado no tipo comunicação falsa de crime, que consiste em "provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe a ocorrência de crime ou de contravenção que sabe não se ter verificado".
Mas o ex-presidente não comunicou diretamente as autoridades, e sim fez insinuações para o público em geral.
Especificamente em propagandas eleitorais, como as inserções de rádio, é criminalizado, desde 1965, divulgar "fatos que se sabe inverídicos, em relação a partidos ou candidatos e capazes de exercerem influência perante o eleitorado".
Desde 2021, em reação ao novo ambiente de campanha das redes sociais, a proibição foi estendida também à divulgação "durante período de campanha eleitoral", mesmo que fora da propaganda. E foi incluída punição para "quem produz, oferece ou vende vídeo com conteúdo inverídico acerca de partidos ou candidatos".
Apesar da amplitude dos crimes, a exigência de que o fato diga respeito "a partidos ou candidatos" dificulta o enquadramento da divulgação de fatos inverídicos sobre urnas.
O que muda caso a proposta do PT seja aprovada
Se o projeto do deputado José Guimarães (PT-CE) for aprovado, a maioria das amarras dos crimes existentes deixará de existir.
Não será exigido que haja acusação contra a honra de indivíduo determinado, nem que o aparato do Estado tenha sido movido para investigar o fato. E nem mesmo que o divulgador saiba que o conteúdo é falso: basta que dissemine "informações falsas", a critério do julgador.
Para o advogado André Marsiglia, especialista na área de liberdade de expressão, há um risco na proposta, pois o Judiciário vem tratando de forma indistinta a informação e a mera opinião.
Um exemplo é o caso do apresentador Monark, que, em 2023, disse em seu canal na internet: "A gente vê o TSE censurando gente, a gente vê o Alexandre de Moraes prendendo pessoas. (...) Você fica desconfiado, que maracutaia está acontecendo nas urnas ali?".
O ministro Alexandre de Moraes reagiu à fala censurando Monark, impondo-lhe "abstenção de publicação, promoção, replicação e compartilhamento das notícias fraudulentas (fake news), objeto da presente decisão" – embora o apresentador jamais tivesse anunciado notícia fraudulenta, mas apenas expressado impressão subjetiva.
Marsiglia também alerta para o fato de o projeto não especificar o que quer dizer com "sistema eleitoral", conceito amplo que vai além do mero sistema de contagem de votos.
"O projeto pode atingir praticamente qualquer um que se manifeste criticamente sobre eleições", afirma o advogado.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.