Enquanto as reformas econômicas e o pacote de segurança pública apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, monopolizam os holofotes, a bancada da família se prepara para emplacar projetos caros à base de apoio do presidente Jair Bolsonaro (PSL). O primeiro projeto que deve ganhar destaque, por já estar em estágio mais avançado de tramitação, é o Projeto de Lei (PL) 478/2007, o chamado Estatuto do Nascituro, de relatoria do deputado Diego Garcia (Pode-PR).
Nesta terça-feira (4), Garcia protocolou um novo projeto para a criação de um serviço de assistência à maternidade e à primeira infância, considerado um passo adiante ao Estatuto. O primeiro desafio a ser vencido são as comissões temáticas da Câmara, que terão seus presidentes escolhidos nas próximas semanas. Integrantes das equipes veem afinidades entra as bancadas e o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH), mas se preocupam com eventuais decisões do STF sobre o aborto.
Nossas convicções: Defesa da vida desde a concepção
O Estatuto do Nascituro já passou pelas Comissões de Seguridade Social e Família (CSSF) e de Finanças e Tributação (CFT). Quando estava pronto para ser votado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), em 2017, uma manobra patrocinada pelo deputado Glauber Rocha (PSOL-RJ) remeteu o projeto à Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMulher), onde o deputado Garcia foi designado relator pela então presidente Shéridan Oliveira (PSDB-RR).
Embora tenha apresentado relatório aprovando o projeto em setembro do ano passado, a matéria não foi colocada em pauta pela então presidente Ana Perugini (PT-SP). A votação agora depende do desarquivamento do Estatuto e da nova presidência da Comissão. O principal objetivo do PL 478/2007, prioridade da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família e apoiado pela bancada evangélica, é explicitar que o direito brasileiro protege o ser humano desde a concepção – nascituro é o nome que se dá, tecnicamente, ao ser humano ainda em gestação.
Nossas convicções: O alcance da noção de dignidade da pessoa humana
No parecer apresentado à CMulher, o deputado sintetiza os direitos que o Estatuto garante ao nascituro: atendimento em igualdade de condições com crianças já nascidas; atendimento pré-natal; o direto de ser tratado para minimizar eventuais deficiências, mesmo se não houver expectativa de vida após o nascimento; vedação de qualquer discriminação; prioridade na adoção; direito de receber doações e heranças; e o de ter um curador designado para cuidar de seus interesses, quando estes entrarem em conflito com os direitos dos pais ou quando a mãe for interditada legalmente.
O ponto mais controverso do projeto, no entanto, é a previsão do pagamento de um auxílio a mulheres grávidas em decorrência de violência sexual que escolham não abortar seus filhos. O projeto prevê que “na hipótese de a mãe vítima de estupro não dispor de meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde do desenvolvimento e da educação da criança, o Estado arcará com os custos respectivos até que venha a ser identificado e responsabilizado por pensão o genitor ou venha a ser adotada a criança, se assim for da vontade da mãe”.
Afinidades
A previsão foi apelidada pejorativamente de “bolsa estupro”, mas na verdade é um auxílio para mães em situação de vulnerabilidade que escolham não abortar. O Código Penal é claro ao prever que os abortos em caso de estupro e risco de vida para a mãe não são condutas louváveis – elas apenas deixam de ser punidas pela lei. Em dezembro, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, reconheceu que a expressão “bolsa estupro” falsifica a intenção do projeto, mas admitiu a possibilidade de a previsão polêmica ser retirada dele, que se transformaria em um “Estatuto das Grávidas”.
Nossas convicções: A valorização da mulher
A nova equipe do ministério ainda não chegou a um consenso sobre esses pontos. A prioridade no momento é trabalhar pelas metas dos 100 dias de governo, que incluem a regulamentação de partes da Lei Brasileira de Inclusão, o lançamento de uma campanha nacional de prevenção ao suicídio e à automutilação de crianças e a regulamentação da educação domiciliar, o chamado homeschooling. Apesar de a meta prever a edição de uma Medida Provisória (MP) sobre o tema, a equipe ainda se a iniciativa não deveria ser do Congresso Nacional.
Integrantes das equipes do ministério e da bancada de defesa da vida e da família, porém, reconhecem que as afinidades temáticas são muitas. Em entrevista à Gazeta do Povo, o deputado Filipe Barros (PSL-PR), que apesar de apensas 27 anos já tem uma longa estrada na agenda de costumes, afirmou que a ala conservadora do PSL está se organizando para fazer valer a vontade das urnas na Câmara. Barros vai pleitear a presidência da Comissão de Direitos Humanos.
“Nós sabemos que o conceito de direitos humanos é uma criação, acima de tudo, judaico-cristã e, posteriormente, conceitualizado depois da formação dos Estados Unidos. O conceito de direitos humanos diz respeito à proteção do indivíduo contra ações arbitrárias do Estado”, disse o deputado. “Mas depois o conceito foi desvirtuado como uma suposta proteção das minorias, e digo isso porque a esquerda usa as minorias como massa de manobra para impor pautas políticas como aborto e ideologia de gênero”, afirmou.
De fato, em entrevista à Gazeta do Povo no início de janeiro, a secretária nacional da família, Angela Gandra Martins, deixou claro que a posição do ministério do governo Bolsonaro é de que a vida começa na concepção e que sua secretaria zelará para que todas as políticas públicas tenham três focos: a projeção econômica e social da família, a conciliação trabalho-família e a solidariedade intergeracional, ou seja, o estabelecimento de relações solidárias entre as gerações mais velhas e mais jovens.
Próximos passos
O PL protocolado por Garcia caminha nessa direção ao prever a criação de um serviço de assistência à maternidade e à primeira infância. O Estatuto do Nascituro já prevê que “o nascituro deve ser destinatário de políticas sociais que permitam seu desenvolvimento sadio e harmonioso e o seu nascimento, em condições dignas de existência”. Essa é uma demanda que ganha força no movimento pró-vida para mostrar que os opositores do aborto não sejam vistos como despreocupados com as mães e as crianças já nascidas.
Como a Lei da Primeira Infância, aprovada em 2016, define a primeira infância como o “o período que abrange os primeiros 6 (seis) anos completos ou 72 (setenta e dois) meses de vida da criança”, sem delimitar o início da vida, o deputado considera que o nascituro está abrangido pela proteção. “Cada vez mais se fala na importância de estímulos para os bebês ainda durante a gravidez. Os cuidados com a primeira infância devem abranger a gestação desde seu início”, disse Garcia à Gazeta do Povo.
O PL inclui na Lei 8.742/1993, a Lei do Serviço social, um mecanismo de proteção e atendimento à maternidade e à primeira infância. O projeto prevê a “oferta de apoio, orientação, acompanhamento e encaminhamento multidisciplinar à gestante em situação de vulnerabilidade social e à primeira infância”, com o objetivo de “contribuir para o fortalecimento dos vínculos familiares e sociais e para o desenvolvimento de ações e estratégias que permitam a conciliação entre vida familiar, pessoal, profissional e comunitária”.
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A ideia é fortalecer a assistência social nessa área, integrando e orientando a rede de saúde pública já existente, mas pode haver oposição da equipe econômica em razão do forte ajuste fiscal. O projeto prevê também a possibilidade de os centros pró-vida, que acolhem mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade, serem integrados à rede de saúde como auxiliares. O texto prevê ainda a oferta de alojamento temporário para mulheres grávidas em situação de dificuldade. Segundo o deputado Diego Garcia, é o caso de famílias que expulsam mulheres grávidas de casa.
Corrida contra o tempo
Além da importância do tema, deputados e movimentos pró-vida correm contra o tempo para se adiantar ao Supremo Tribunal Federal (STF), que discute uma ação que pode descriminalizar totalmente o aborto até a 12ª semana de gestação. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 foi alvo de disputas audiências públicas em outubro do ano passado. A deputada estadual eleita Janaina Paschoal (PSL-SP) e a atual secretária nacional da família, Angela Gandra Martins, fizeram exposições contra a descriminalização. A ação aguarda liberação da relatora, ministra Rosa Weber, e depois estará liberada para inclusão na pauta pelo presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli.
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Embora interlocutores próximos tenham dúvidas de que Toffoli paute a ADPF 442 durante sua gestão, movimentos pró-vida viram com preocupação a inclusão em pauta, para julgamento em maio, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5581, proposta em 2016 pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) e que pede, entre outras coisas, a descriminalização do aborto para casos em que as gestantes estiverem infectadas pelo vírus zika.
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A Anadep argumenta que “há consenso científico de que o vírus zika causa a microcefalia e a síndrome de Guillain-Barré” e que, “durante a gravidez, [as gestantes] são submetidas a intenso sofrimento psicológico, já que não têm como saber especificamente como o vírus zika pode afetar a gravidez e sua própria saúde”. A Advocacia-Geral da União contestou o pedido, afirmando que “no presente caso, diversamente dos precedentes ora invocados [ADPF 54], não se verifica a inviabilidade do embrião ou do feto cuja mãe tenha sido infectada pelo vírus Zika, mas a possibilidade de danos neurológicos e impedimentos corporais”.
Reação
A preocupação com a descriminalização do aborto é o principal combustível para o PL 4.754/2016, de autoria da bancada evangélica e que deve ser desarquivado em breve. O projeto, apoiado por muitos movimentos pró-vida e influenciadores digitais conservadores, altera a Lei 1.079/1950, tipificando como crime de responsabilidade dos ministros do STF “usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo”. Apoiadores do projeto veem-no como antídoto ao ativismo judicial.
“É urgente discutir o projeto de lei que criminaliza o ativismo judicial”, afirmou o deputado Felipe Barros. “Hoje o STF quer impor à sociedade pautas que não são de competência do Judiciário, mas do Legislativo, e a sociedade está esperando do Congresso o debate moral”, disse.