Na China, 1984 já está acontecendo, ainda que com 25 anos de atraso. O romance do escritor britânico George Orwell, publicado em 1948, descrevia um futuro distópico em que um ditador controlava todos os cidadãos utilizando câmeras onipresentes. O governo chinês já tem 170 mil câmeras espalhadas pelo país, e nos próximos três anos pretende colocar em funcionamento outras 400 mil. Elas estão recebendo tecnologia capaz de reconhecer rostos, de forma a mapear o comportamento de cidadãos — e também identificar criminosos (no caso da China, uma ditadura socialista, alguém pode ser tachado como criminoso apenas por ser opositor ao governo, é bom lembrar).
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Em portas de supermercados e lojas, em aeroportos e estações de transporte público, policiais posicionam escâneres para fazer o reconhecimento facial de cada pessoa. O sistema já permite que qualquer pessoa, de qualquer canto do país, tenha sua vida inteiramente documentada a partir do momento em que ele deixa sua casa.
É essa tecnologia que um grupo de políticos eleitos em 2018 pretende conhecer para implementar no Brasil. Eles estão na China, em viagem para entender como funciona – e quanto custa – o sistema de reconhecimento facial do país. Entre os integrantes da comitiva estão a senadora eleita Soraya Thronicke (PSL-MS) e os deputados federais eleitos Felício Laterça (PSL-RJ), Daniel Silveira (PSL-RJ), Tio Trutis (PSL-MS), Bibo Nunes (PSL-RS), Charlles Evangelista (PSL-MG), Marcelo Freitas (PSL-MG), Sargento Gurgel (PSL-RJ), Aline Sleutjes (PSL-PR), Luis Miranda (DEM-DF) e Carla Zambelli (PSL-SP).
Cortesia da ditadura chinesa
A viagem foi paga pelo governo chinês e vai ajudar a embasar um projeto de segurança pública que a bancada do PSL no Congresso Nacional pretende apresentar já em fevereiro. Em sua página de Facebook, um dos líderes da iniciativa, o deputado e delegado Felício Laterça comentou a viagem. “Estamos buscando em toda parte do mundo o que há de mais moderno para melhorar a segurança da nossa população, e o nosso estado será referência em tecnologia na segurança pública”, ele afirmou.
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Para um cidadão que perguntou sobre as intenções de viajar para um país ditatorial e comunista para conhecer uma tecnologia de controle social, Laterça respondeu: “Regimes totalitários já existem em bastantes regiões do nosso país e principalmente em nosso estado [ele é deputado pelo Rio de Janeiro], basta entrar onde é território de tráfico e milícia. O que buscamos é melhorar a segurança dos cidadão e diminuir a violência”.
O filósofo Olavo de Carvalho, apontado como guru intelectual do governo Bolsonaro, comentou a viagem em um vídeo em que se refere aos políticos.
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“A firma que representa isso, a Huawei, é altamente suspeita e representantes dela já foram presos na Polônia, no Canadá e nos Estados Unidos, por suspeita de espionagem. Ora, instalar esse sistema nos aeroportos brasileiros é entregar ao governo chinês as informações sobre todo mundo que mora no Brasil. Vocês estão fazendo uma loucura, vocês estão entregando o Brasil à China. Vocês são idiotas, meu Deus do céu? Vocês têm ideia da tecnologia chinesa de controle comportamental? Vocês são um bando de caipiras.”
Câmeras espiãs
Olavo faz referência à polêmica envolvendo a fabricante de telefonia Huawei, cujos celulares de ponta são vendidos no mundo ocidental a preços baixíssimos.
Recentemente a empresa chinesa passou a ser acusada de utilizar a tecnologia dos smartphones para fazer espionagem, a ponto de os diretores das principais agências de segurança dos Estados Unidos, o FBI, a CIA e a NSA, pedirem aos cidadãos, em que não utilizem mais aparelhos da fábrica chinesa.
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Em sua conta do Twitter, por sua vez, Carla Zambelli afirmou — contra todas as evidências — que a China não é uma ditadura. “Há 9 partidos na China. Há 5 religiões nas diferentes Assembleias do país. Uma visita vale mais que mil palavras”.
A verdade é que a China se utiliza, sim, da tecnologia de monitoramento com câmeras e reconhecimento facial para monitorar o comportamento dos cidadãos. O sistema permite até mesmo identificar gestos e expressões, e permite indicar não só o nome da pessoa, como também sua etnia e a religião que ela pratica – uma medida estratégica para um país que tenta controlar o movimento separatista de origem muçulmana na província de Xinjiang. O total de pessoas presas e executadas em função deste tipo de monitoramento não é divulgado.
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Esse é o lado mais perigoso de uma tecnologia já muito bem desenvolvida nas principais metrópoles chinesas, onde já é possível sacar dinheiro, pagar compras, fazer check-in em aeroportos ou entrar num trem apenas posicionando o rosto diante de uma câmera.
Tecnologia presente no Brasil
À parte as críticas à viagem, a tecnologia de reconhecimento facial já existe aqui no Brasil. Diferentes empresas desenvolvem softwares e aparelhos capazes de identificar a identidade de pessoas a partir da imagem de seus rostos. A Haganá, por exemplo, fornece o sistema SIGAH. Implementado em smartphones, ele permite fazer o escaneamento do rosto e pode ser utilizado em portas de bares e condomínios, para liberar o acesso de pessoas autorizadas, ou mesmo em escolas, onde as pessoas autorizadas a buscar uma criança poderiam ser liberadas por uma catraca desbloqueada com a imagem de seus rostos.
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Em Belo Horizonte, a empresa Ortep fornece um escâner de rostos chamado Face Access, que já é utilizado em empresas, bancos, comércio e academia, e o FaceLock, uma fechadura que libera o acesso a, por exemplo, a porta do condomínio, apenas para pessoas com os rostos cadastrados. “Desenvolvemos aparelhos para empresas e locais de grande acesso de público, que precisam controlar e monitorar o acesso”, explica Júlio Cézar de Souza, gerente comercial da companhia.
Já a Enterprise Consultoria trabalha com projetos de segurança pública. Fundada em 1984, a empresa de Fortaleza busca atender a demandas de secretarias e órgãos públicos. “Recebemos encomendas e buscamos parcerias com desenvolvedoras do Brasil e do mundo em busca de soluções”, explica o fundador da companhia, Francisco Cavalcante. O mais novo projeto da empresa é um óculos idêntico ao utilizado por policiais chineses, que, de longe, parecem óculos escuros, mas conta com uma câmera ligada a um banco de dados que utiliza inteligência artificial para fazer reconhecimento facial.
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“Buscamos na China um grupo de empresas parceiras, com quem desenvolvemos um servidor de inteligência artificial em português. Agora estamos criando uma atualização do sistema, que vai deixá-lo 20 vezes mais rápido”.
Com o modelo, um policial poderia acessar a ficha corrida de qualquer pessoa que estivesse passando diante dele na rua. Desenvolvido ao longo de 2018, a pedido das Forças Armadas, que pretendem utilizá-lo em áreas perigosas do Rio de Janeiro, o aparelho ainda não foi disponibilizado. “Neste ano vamos apresentá-lo para diferentes órgãos, de todo o Brasil”, diz Francisco Cavalcante. “Esse programa não precisa ser aplicado apenas a óculos, ele também pode ser utilizado por qualquer município brasileiro que tenham sistemas de videomonitoramento”.
Os perigos da tecnologia
Os riscos de adotar o monitoramento com câmeras e reconhecimento facial são enormes para a democracia. Um artigo de Anna Mitchell e Larry Diamond, pesquisadores da Universidade Stanford, chama a atenção para os riscos da adoção indiscriminada da tecnologia. “O governo reúne uma enorme quantidade de informação através de câmeras. Se você comete um crime, ou simplesmente atravessa a rua fora da faixa, algoritmos de reconhecimento facial vão cruzar sua imagem com um banco de dados nacional. Não vai demorar muito para a polícia aparecer na sua porta. O experimento social que a China está realizando apresenta uma grave ameaça para a liberdade de expressão para para os direitos humanos”.
Além de representar um grave risco para a democracia e os direitos civis, as câmeras de segurança não são eficazes para combater a criminalidade. Um estudo realizado pela Universidade de Leicester indicou que os pontos da cidade britânica onde foram instaladas câmeras não são menos seguros do que os demais locais da cidade, a não ser em um único quesito: as câmeras ajudaram a identificar e evitar casos de estacionamento em lugares proibidos.
No mais, mesmo quando o vídeo flagrou assaltos, por exemplo, o sistema não foi capaz de garantir a prisão mais rápida - e muitas vezes, nem mesmo a identificação do suspeito, que geralmente encobre o rosto.
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